“A fogueira tá queimando em homenagem a São João”…

São João dormiu,
São Pedro acordou;
Vamos ser compadres,
Que São João mandou.

Passei o feriado de São João parte em Caruaru, parte em Campina Grande. Nesta última cidade – interior da Paraíba -, fiquei sabendo que, este ano, o Ministério Público proibiu que fogueiras fossem acesas e determinou o pagamento de uma multa para quem as acendesse. Após uma enorme confusão, esclareceu-se que a tradição junina não estava proibida; o problema eram os comerciantes que vendessem “madeira extraída de árvores nativas e que não tivessem a permissão da legislação ambiental para ser comercializada”.

Muitas pessoas, hoje em dia, não sabem o que é tradição. O povo de Campina Grande, sabe. Conversei com algumas pessoas – lá nascidas e lá criadas – e elas me disseram de uma maneira muito simples: “nossos avós faziam assim”. E algumas dessas pessoas já eram avós…

Sinceramente, eu não morro de amores por fogueiras. A fumaça irrita meus olhos, o calor me incomoda um pouco, não consigo ficar muito tempo perto delas. Mas eu já fui criança, e lembro-me de que minha avó fazia fogueiras todos os anos, e que eu adorava montar a fogueira durante o dia, lutar para acendê-la de noite (às vezes chovia e a madeira molhava) e assar milho depois que o fogo baixasse e sobrassem apenas as brasas. Lembro-me de que a simples idéia de não acender a fogueira na véspera de São João seria capaz de fazer a minha avó ter um infarto – segundo ela, se não tivesse fogueira “dava [mau] agouro”. Lembro-me de ter escutado que se acendiam fogueiras porque Santa Isabel, quando São João nasceu, acendeu uma fogueira para avisar à Virgem Maria – Ela morava distante – que o menino havia nascido.

É claro que é superstição associar a existência ou não das fogueiras à sorte ou ao azar, e eu nunca vi em lugar nenhum que Santa Isabel tivesse avisado à Virgem Maria do nascimento de São João por meio de uma fogueira (o relato bíblico, aliás, deixa entrever que a Virgem estava na casa de Zacarias quando João Batista nasceu). Mas isso é o de menos: o importante é que nossos avós faziam assim! Salvo engano, é de Isaac Newton a célebre frase “standing on the shoulder of giants” – algo como “[enxerguei mais longe] estando (i.e., “porque estava”) sobre os ombros de gigantes”. Os “gigantes” foram os que o precederam. Os nossos avós podem até não ser gigantes e, provavelmente, não o são mesmo; mas, se desprezarmos os seus ombros, ser-nos-á possível escalar outros maiores?

Enxerga-se mais longe quando se respeita o que deixaram os antigos; e aprende-se a respeitar o legado dos antigos desde pequeno. Aprendendo a fazer fogueiras com os nossos avós. Há uma sábia pedagogia nestas tradições populares: ainda que fazer fogueiras seja, em si, uma coisa de pouca ou nenhuma importância, o ensinamento que se esconde por trás disso é precioso: guarde aquilo que lhe foi transmitido pelos seus antepassados. E, quem não aprende a guardar as coisas pequenas e irrelevantes, como será capaz de guardar as coisas grandes e importantes? As fogueiras não são importantes! O que é importante é aprender a respeitar os costumes dos antigos – e, isso, as fogueiras de São João ensinam.

E há ainda os compadres de fogueira! Isso não é da minha época e eu só aprendi em Campina Grande, nestes últimos dias. Compadres são uma espécie de familiares, unidos por laços não de sangue, mas de amizade. O padrinho do seu filho é o seu compadre – e, etimologicamente, um “compadre” é um “co-padre”, ou seja, alguém que é uma espécie de pai (padre) junto com (co) outra pessoa. Estes compadres eu já conhecia. Ser compadre é, de certo modo, fazer parte da família. Um dia, creio, duas pessoas quiseram ser compadres e nenhuma das duas tinha filhos para que um pudesse ser o padrinho do filho do outro. Os compadres de fogueira devem ter surgido assim.

Na noite de São João, dois [ou mais] amigos que querem ser compadres “selam” este compromisso repetindo os versinhos em epígrafe enquanto pulam juntos a fogueira de São João. A partir daí, são compadres para sempre, passam a “fazer parte da família”, manifestam publicamente e assumem um “compromisso de amizade” que perdura a vida inteira. “É mais fácil acabar um compadre de batismo” – dizia o paraibano que me explicava essas coisas, na noite de São João – “do que acabar um compadre de fogueira”. E, se não for mais permitido acender fogueiras de São João… como é que as pessoas vão virar compadres? “Quando ele [o sujeito responsável pela proibição das fogueiras] chegar no céu” – continuava o mesmo paraibano – “São João vai dizer: aqui não entra não. Quem mandou acabar com os meus compadres?”. E ria.

Vão dizer que isso é besteira, e que ninguém precisa “pular fogueira” para ser amigo, e que não há nenhum “poder mágico” em versinhos que produza ex opere operato laços de amizades, e tantas coisas mais. É verdade. Mas o poder não está no “ritual”, e sim no respeito à “instituição” do compadrio – e isso também se aprende com os avós. Sempre é possível fazer estudos sociológicos e antropológicos profundos para explicar os laços que unem os compadres… mas, para estudá-los in loco, é mais fácil procurá-los nos amigos pulando juntos as fogueiras juninas. Amizade é outra coisa que se aprende por tradição. E temo que não sejam capazes de aprender isto os que não aprendem, com os avós, a montar fogueiras…

Sancte Ioannes Baptista,
ora pro nobis.

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