Por que o Papa defende a Tradição?

Artigo publicado na FOLHA (aqui para assinantes e aqui de segunda mão): “Bento XVI resgata tradicionalismo”. A reportagem contém boas informações, mas também algumas besteiras que ameaçam confundir os fiéis quanto à situação atual que atravessa a Igreja. Passo a fazer alguns ligeiros comentários.

[E]m 30 de junho de 1988, o bispo francês Marcel Lefebvre (…) consagrou quatro bispos (…). Ao mesmo tempo, um decreto fulminante de Roma excomungava Lefebvre (morto em 1991) e aqueles novos bispos.

Está errado. Primeiro, porque a Ecclesia Dei não é um “decreto”, e sim um “motu proprio”. Segundo, porque o motu proprio não excomunga Lefebvre (a excomunhão é latae sententiae, segundo o Direito Canônico); apenas declara que ele incorreu em excomunhão automática quando sagrou os bispos sem mandato apostólico.

Seminários da Fraternidade Santa Pio 10 (…)

Mon Dieu! Ninguém revisa as traduções da Folha? O nome da Fraternidade é São Pio X!

Tipicamente europeu, esse modelo de igreja autoritária, antiecumênica e antimoderna, dominada pela figura do santo padre encarregado do sagrado, foi exportado.

O que a reportagem chama de “autoritária” é a Igreja onde o Papa detém a Suprema Autoridade de Governo e de Ensino; “antiecumênica”, é a Igreja que afirma não haver salvação fora d’Ela; “antimoderna”, é a Igreja que se recusa a ser antropocêntrica e permanece teocêntrica. Em suma: é a Igreja Católica de sempre.

Vítima de um jogo interminável de disputas, Bento se viu pressionado a anular as excomunhões de junho de 1988.

Do jeito que o negócio está escrito, dá a entender que o Papa já levantou a excomunhão de Lefebvre! E isso  – a menos que o repórter saiba o que o Papa fez antes que o Vaticano divulgue – não aconteceu.

Em todas as religiões, a liturgia é a expressão de uma fé. Ela não pode ser dissociada da doutrina. Acontece que a direção foi determinada há mais de 40 anos, no concílio Vaticano 2º, mantido por Paulo 6º e João Paulo 2º.

Este é o ponto mais interessante da história toda. É verdade que a Liturgia expressa a Fé e que, portanto, segundo o velho adágio católico, lex orandi, lex credendi: a norma da oração é a norma da Fé. Mas acontece que a Fé da Igreja é, por definição, imutável; de modo que a Liturgia – na essência – também o é. Assim sendo, a Reforma Litúrgica do século XX, não obstante as opiniões de rad-trads e de modernistas, não modificou a Fé da Igreja.

A reportagem, todavia, diz o contrário. Diz que o Vaticano II determinou uma direção para a Igreja, e esta direção – dá a entender o texto – é oposta àquilo que a Igreja sempre ensinou. O texto é adepto da tese segundo a qual o Vaticano II criou uma nova igreja; tese já incontáveis vezes repudiada por Roma.

Hoje, reina em Roma um neoconservadorismo incentivado não tanto pelo papa quanto por grupos que nunca renunciaram à igreja autoritária do passado. A reintegração dos cismáticos corre o risco de ser efetuada ao preço de uma erosão das conquistas dos últimos 40 anos. Seria o triunfo póstumo de Lefebvre.

Vejam a acusação insidiosa: o Papa defende a Tradição não porque ele é o Papa e tem como dever guardar a Tradição, mas… por estar sendo “incentivado” pelos cismáticos da FSSPX! Bento XVI seria um “traidor” da Igreja, mancomunado com cismáticos! A idéia é completamente esdrúxula, mas ameaça encontrar quem a ouça – afinal, hoje em dia, tem tanta gente que engole cada besteira…

A Reforma Litúrgica não modificou a Fé da Igreja – é uma impossibilidade teológica. “Retornar à Igreja pré-conciliar” é uma expressão destituída de significado, pois não se pode retornar a uma coisa que não foi nunca abandonada. A Igreja é a Igreja; pode-se retornar ao latim, pode-se retornar ao báculo com cruz grega, pode-se retornar aos genuflexórios na hora da comunhão, pode-se retornar às vestes papais; mas nem vestes papais, nem genuflexório, nem báculo com cruz grega, nem latim são a Igreja! Se estas coisas ajudam a fazer a Fé da Igreja – a Fé imutável – mais conhecida neste mundo, então que sejam largamente utilizadas! É isto que o Papa está fazendo. O que não podemos é permitir que os cismáticos, só por conservarem algumas coisas da Igreja que abandonaram, “levem os louros” e “assumam a responsabilidade” por estas coisas das quais a Igreja sempre pôde dispôr da maneira que Lhe aprouvesse, posto que, por direito, a Ela – e somente a Ela – pertencem.