Quando Saramago chorou…

Fui assistir ontem ao Ensaio sobre a Cegueira. Terminei no início da semana de reler o livro homônimo que inspirou o filme. Talvez eu não tenha sensibilidade cinematográfica alguma, mas fiquei bastante impressionado com a discrepância que existe entre uma obra e outra! Não encontrei Saramago na película; reconheci, sim, um monte de cenas cuja leitura recente ainda estava bem nítida na minha memória, passando com uma velocidade vertiginosa na sala escura, não raro incompreensíveis para quem está assistindo ao filme sem ter lido o livro e, em todos os casos, menos impressionantes – muito menos! – do que elas quando postas no papel.

Para dizer porque – na minha opinião – Saramago não está no filme, eu preciso voltar um pouco e dizer como é que Saramago está no livro. O escritor português (que tem até um blog) é ateu convicto e, no meu entender, o Ensaio é um grande tratado de irreligião, ou de anti-religião. O quadro apocalíptico apresentado pelo escritor ao longo da leitura perturbadora é um grande “experimento” que o português se permite fazer com a humanidade. Para começo de conversa, os personagens não têm nome; são esterótipos, são amostras, são cobaias. São genéricos, universais. Parece uma parábola, diz um cego no meio do romance (Saramago, José; “Ensaio sobre a Cegueira”, Companhia das Letras, 11ª reimpressão, 1999. p. 129. Doravante, as páginas citadas são desta referência) – uma parábola onde a cegueira é, na verdade, súbita iluminação.

Afinal, por que esta cegueira é branca, ao invés de negra? Por que é luz? Por que é luminosa? A idéia é repetida diversas vezes ao longo do livro (Como uma luz que se apaga, Mais como uma luz que se acende, p.22; a cegueira não era viver banalmente rodeado de trevas, mas no interior de uma glória luminosa, p. 94; tinham uma luz dentro das cabeças, tão forte que as cegara, p. 240; eles diluem-se na luz que os rodeia, é a luz que não os deixa ver, p. 260; etc), parecendo assim indicar qual o sentido da parábola: a cegueira é um instrumento utilizado para apresentar o homem tal e qual ele é (só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são, p. 128), é um bisturi manejado pelo narrador para pôr a descoberto a essência humana. Que, no livro, não tem nada de bonita (a luz e a brancura, ali, cheiravam mal, p. 96-97).

O longo circo de horrores, roubos, fome, violência, execuções sumárias, estupros e tudo o mais são, portanto, o homem posto a descoberto, trazido à luz, à luz da cegueira branca: quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos, p. 243. Se é verdade que há esperança no livro, personificada principalmente pela mulher do médico que nunca perde a visão, ela é insignificante ante a magnitude do horror: ela está sozinha, diante de um mundo de cegos, e é completamente incapaz de deter a marcha inexorável deste mundo rumo à barbárie.

Não consigo tirar da cabeça uma outra impressão de que tenho, um outro aspecto da cegueira de Saramago, que parece deixar entrever uma crítica mais áspera à religião. Há estes dois aspectos dos cegos, sem dúvida alguma: ao mesmo tempo em que a cegueira permite aos cegos verem a realidade humana tal e qual ela é, eles são de facto cegos e, por conseguinte, não vêem. A cegueira é, como já disse, uma espécie de “iluminação espiritual atéia”; mas parece-me que a metáfora se aplica também à – na opinião de Saramago – cegueira dos que têm Fé. Afinal, não é ela “luz”, “iluminação”, etc? Não são estas palavras que os religiosos aplicam à visão sobrenatural? Jogando com uma “dupla metáfora”, o escritor português parece querer dizer isso: a cegueira sob o aspecto físico é metáfora dos que têm a Luz da Fé, ao mesmo tempo em que a cegueira sob o aspecto metafórico – da “iluminação” que lhes permite ver a essência humana – é a anti-Fé, a anti-Esperança, a anti-Caridade (o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos, p. 135). Os que têm Fé são cegos; se vissem realmente, se fossem iluminados, veriam que o mundo é mau, radicalmente mau, intrinsecamente mau; em suma, que Deus não merece ver, p. 302. Ao longo do livro, os cegos de Saramago ora vêem, ora não vêem – penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem, p. 310 – comportando-se como metáforas, ora da cegueira da religião, ora da iluminação anti-religiosa. O narrador evidencia ora o fato de que estão cegos, ora o fato de que vêem as coisas como elas são: ora a Fé, ora a Descrença. Por um lado, a Luz provoca cegueira e, por outro, somente a cegueira permite ver.

A Descrença, a cegueira vista sob o aspecto iluminativo, é mais clara na obra. No entanto, a Fé, a contrapartida, a iluminação vista sob o aspecto de provocar cegueira, parece-me particularmente clara nas últimas frases do livro, quando a mulher do médico olha para o céu: A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava, p. 310. A mulher levantou os olhos para o céu, para o Céu, e teve a impressão de estar cega: abaixou os olhos, olhou para a cidade, para o Mundo, e viu que ainda via. A cegueira branca confunde-se com olhar para o céu, com ter os olhos fitos no Alto, de modo que foi necessário à mulher “baixar os olhos”, afastá-los do Céu, afastar-se da Fé, para ver.

No filme, entretanto, nada disso é facilmente perceptível. Primeiro, porque as cenas passam muito depressa, não deixando que o espectador tenha fôlego para pensar sobre o que está vendo (no livro, ao contrário, são as digressões feitas pelo narrador que constituem a melhor parte da narrativa); segundo, porque a trilha sonora é extremamente irritante, com musiquinhas alegres e lúdicas até mesmo nas piores cenas, aliviando-as bastante e dando-lhes um ar de “descontração” que, em absoluto, não existe no livro – o livro é tenso. Terceiro, porque nenhuma cena do filme consegue causar o mesmo impacto que no livro. As piores, como o estupro das mulheres, os cães devorando um cadáver, a igreja com as imagens vendadas, não conseguiram transmitir para a película o horror e o desconforto que elas provocam nos longos parágrafos de Saramago. Até um aspecto que perpassa o livro inteiro – a sujeira – é minimizado no filme: algumas manchas, papéis voando, e é tudo. No livro, quase se sente o mau cheiro.

Tudo isso fez com que o filme pudesse ser interpretado às avessas do livro, como notou e comentou um amigo meu quando o assistiu. Uma das primeiras cenas vistas no cinema mostra a mulher do médico perguntando o que é agnosia – uma doença, que o oftalmologista imagina poder explicar a cegueira súbita – e se tem alguma coisa a ver com agnosticismo, com ignorância, com descrença. A agnosia existe no livro, mas a sua ligação com o agnosticismo, não; é característica exclusiva da película. E então, subitamente, eis o tratado anti-religioso convertido em forte apologia da Fé: em um mundo de agnósticos, em um mundo onde todos fossem privados da Luz da Fé, a degradação moral é inevitável, como é inevitável para os cegos transformarem-se em animais. E então surgem as imagens das grandes tragédias da humanidade, dos milhões de mortos do comunismo e do nazismo, da degradação moral de nossos dias que só se agrava quanto mais as pessoas são “cegas” por não terem Deus, porque são descrentes.

E o tiro, então, sai pela culatra, e o ensaio anti-religião transforma-se em clara evidência do abismo onde se cai quando não se tem religião. Saramago chorou ao ver o filme; na minha opinião, não chorou por ter-se comovido, nem de alegria, como disse. Ao contrário, chorou por sentir-se traído, chorou de decepção ao ver no filme exatamente o contrário do que havia escrito.