Erro de valoração

Eu tenho apreço pelos católicos que “defendem a Tradição”, mesmo quando estou sinceramente convencido de que eles estão fazendo grandes besteiras. Não dá para “deixar passar” todas as coisas que eles fazem, apontando os seus canhões contra as coisas santas que eles tomam pelas causadoras dos problemas que a Igreja hoje atravessa; sempre me bate uma profunda angústia quando eu imagino todo o bem que estas pessoas poderiam fazer se militassem ao lado da Igreja mas, desgraçadamente, hoje se lançam em combate contra Ela, numa luta inglória fadada certamente ao fracasso, porque a Igreja não pode ser destruída, e será infalível e miseravelmente reduzida a pó qualquer obra humana que tencione colocar-se contra Ela. Nestes “defensores da Tradição”, o que me incomoda tremendamente é aquilo que eles poderiam ser, mas não o são…

Foi neste sentido que fiquei verdadeiramente feliz ao ser tornado público o decreto que levantava as excomunhões dos quatro bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X. O momento era de alegria, posto que pessoas zelosas pela Sã Doutrina, sedentas pela maior glória de Deus e pela salvação das almas, de uma envergadura intelectual espantosa, poderiam, enfim, militar ao lado da Igreja contra os Seus inimigos que, hoje em dia, são tão numerosos. É forçoso reconhecer que há menos divergências entre um “rad-trad” e um católico do que entre um católico verdadeiro e um “católico self-service” dos que parecem ter virado o padrão de catolicismo nos dias atuais. Nada melhor do que se esforçar sinceramente para sanar estas divergências e congregar, em torno do Papa, aquelas pessoas que estão sinceramente dispostas a dar a vida pelo Sucessor de Pedro.

No entanto, como eu comentei sábado último e como era evidente, as feridas abertas durante os anos de separação não podem ser simplesmente cicatrizadas por meio de documentos vindos de Roma. O caminho, infelizmente, parece ainda ser longo e cheio de espinhos; para trilhá-lo como convém, é fundamental que nos concentremos naquilo que é realmente importante, sem perder tempo com questões secundárias e sem alfinetadas inúteis que não contribuem para a exaltação da Santa Madre Igreja e para a solução da crise que, hoje, atormenta a Esposa de Nosso Senhor.

Refiro-me, em particular, à questão da excomunhão de Dom Lefebvre e Dom Mayer. É sinceramente frustrante ver as pessoas ligadas à FSSPX darem tamanha importância a isto, como se fosse conditio sine quae non para que qualquer outra coisa venha a ser feita! Não têm a mesma ordem de importância a Lex Orandi, a Lex Credendi e os atos jurídicos do Santo Padre; a questão da santidade da Missa Gregoriana e da imutabilidade da Fé Católica não estão no mesmo patamar da questão da existência ou não de uma excomunhão com a qual foram fulminados dois bispos há duas décadas. E isto, a julgar por algumas colocações que são feitas, não parece, absolutamente, estar bem claro na cabeça dos “defensores da Tradição”.

É absolutamente necessário separar o que é essencial do que é secundário. É essencial afirmar com muita clareza que a Fé Católica e Apostólica não pode ter mudado ao longo dos últimos quarenta anos; é essencial afirmar que o rito com o qual a Santa Igreja ofereceu à Trindade Santa, ao longo dos séculos, o Sacrifício do Corpo e Sangue do Senhor, não pode ser senão santo, e reclamar o seu lugar na Igreja dos nossos dias. No entanto, não é essencial fazer uma “justiça” (bem discutível) à memória de dois homens simplesmente porque, no passado – entre outras coisas bem discutíveis -, ambos lutaram por aquilo que reconhecemos ser essencial.

A Fé é essencial na Igreja, a Liturgia é essencial na Igreja. Mas pessoas particulares não são. A Igreja precisa sem dúvidas manter a Sua identidade, mas a Igreja não depende de Dom Lefebvre, é Dom Lefebvre quem depende da Igreja. Esta verdade óbvia parecer ser, no entanto e infelizmente, sistematicamente ignorada por algumas pessoas que parecem condicionar o seu serviço à Igreja à declaração de nulidade das excomunhões de 1988. Quem faz isso comete um erro crasso no valor que atribui às coisas das quais a Igreja precisa. E os resultados são péssimos.

Dir-me-ão que é questão de Justiça limpar a memória de pessoas que consumiram a sua vida a serviço da Igreja de Cristo, e com isso eu concordo completamente. Acontece que, como eu já disse, esta justiça é bastante discutível; Dom Lefebvre não foi excomungado por defender a Fé da Igreja, e sim por fazer ouvidos surdos às súplicas desesperadas do Santo Padre (que é quem possui autoridade e graça de estado para discernir o que é melhor para a Igreja) e, expressamente à revelia dele, cometer o ato objetivamente ilícito de sagrar quatro bispos sem ter mandato pontifício para tanto. É preciso deixar muito bem claro que a defesa da Missa e da Fé da Igreja não está intrinsecamente relacionada à justiça ou injustiça de uma pena imposta por causa de uma sagração episcopal objetivamente ilícita. Podem dizer que foi somente devido às “atitudes heróicas” do bispo francês que, hoje, nós podemos ter o que temos, mas esta futurologia do passado é também discutível, porque eu posso dizer (e acho sinceramente) que, não fossem as atitudes extremadas de alguns membros da hierarquia católica, as discussões sobre a Fé da Igreja e a manutenção da Missa Gregoriana teriam sido bem menos traumáticas. Mas esta discussão – e é exatamente o que estou tentando dizer aqui – não é a mais relevante no momento, pois o que realmente interessa é como as coisas são, e não como elas poderiam ter sido.

É também perfeitamente possível e lícito argumentar que havia um estado de necessidade (subjetivo, óbvio), e pode-se concordar com esta discussão, mas o que não se pode fazer é considerar que tal debate tem a mesma importância da defesa intransigente da Fé, porque não tem. É muito mais importante e necessário defender a Fé. As duas coisas não são necessariamente excludentes, mas no caso concreto são sim, porque todos estão de acordo com a importância de se defender a Igreja mas nem todos estão de acordo sobre as atitudes de Dom Lefebvre. E a primeira coisa é fundamental, enquanto a segunda é secundária. Provoca-me profunda angústia ver que, no meio do incêndio, há pessoas que condicionam o trabalho de apagá-lo à discussão prévia sobre uma decisão já tomada, perdendo tempo com isso, enquanto o fogo consome tudo, as almas são perdidas, o Inferno faz festa e Satanás zomba de Nosso Senhor.

Que o Espírito Santo nos faça dar a cada questão a importância que ela tem; que nós não percamos o senso das proporções. Que aproveitemos o momento propício para defender a Igreja de Cristo, sem arroubos passionais e sem colocar pré-condições que não sejam absolutamente necessárias para aquilo que precisa ser feito. Há muito trabalho a fazer para que nós possamos nos dar ao luxo de perder tempo com discussões que não sejam absolutamente essenciais.