Mais sobre os castigos temporais de Deus

Recebi alguns comentários interessantes no meu texto de ontem sobre o Haiti e os castigos de Deus. Vou falar mais algumas coisas sobre o assunto; primeiro, sobre o caso particular da tragédia recente e, depois, sobre a pergunta mais geral: Deus castiga?

Sobre o Haiti, vou ser lacônico: o Julio Severo está errado. Simplesmente não é verdade, antes de mais nada, que “[a] religião oficial do Haiti (…) é o vodu”. A wikipedia diz que a religião oficial de Estado é o Catolicismo Romano. Sobre esta informação, é importar ressaltar que a Constituição do Haiti de 1987 não diz isso; no entanto, tampouco fala em voodoo. De onde foi que o Julio Severo tirou que é esta a religião oficial do Haiti?

Ainda que fosse, isto por si só não é motivo suficiente para inferir que o terremoto no país foi um castigo divino por causa da feitiçaria praticada pelo povo. Já disse que Deus não “funciona” com o determinismo de uma lei física de causa-e-efeito do tipo “se o povo é mau, então vou mandar uma catástrofe”. Ou, por acaso, todos os lugares do mundo onde se praticam feitiçaria sofreram catástrofes naturais? Ou todas as catástrofes naturais do mundo ocorreram em lugares onde se praticam feitiçaria?

Dito isto, passemos para o caso mais geral. Que Deus castiga, imagino que seja ponto pacífico e não necessite de mais discussão. O que parece estar ainda em litígio é: as tragédias naturais podem ser castigos de Deus?

E, sinceramente, não vejo como seja possível responder “não, não podem” a esta pergunta. Pelos motivos os mais diversos. Em primeiro lugar, há exemplos, nas Escrituras, de tragédias naturais que são castigos de Deus. E um único contra-exemplo bastaria para derrubar a regra.

Além disso, há o testemunho da Liturgia. Pus aqui as orações antigas da missa votiva para ocasiões de terremoto, e elas são peremptórias: “tais flagelos são castigos da Vossa mão”. E nós rezamos conforme nós cremos.

Fiz questão de olhar no missal de Paulo VI e lá tem uma missa pro tempore terraemotus. Infelizmente, ela foi terrivelmente mutilada, tendo sobrado somente a colecta – que é uma mistura das três orações da missa antiga – e, mesmo assim, todas as referências à ira de Deus e aos castigos foram simplesmente suprimidas. No entanto, durante mil e novecentos anos rezou-se dizendo que os terremotos eram castigos da mão de Deus; lex orandi, lex credendi. Da (infeliz) supressão das orações no Novus Ordo Missae não segue que a doutrina da Igreja tenha “mudado”.

Há, além disso, a questão mais geral da Providência Divina. Nós sabemos que nem um pássaro cai por terra sem a vontade de Deus (Mt 10, 29); como, em sã consciência, podemos postular que uma cidade inteira caia em ruínas sem o consentimento do Onipotente? É óbvio que Deus sempre pode evitar as tragédias, e é empírico que Ele, às vezes, não as evita. Aliás, Deus poderia perfeitamente ter criado a terra de tal maneira que não houvesse movimento de placas tectônicas ou que estes movimentos não provocassem na superfície os estragos que provocam. Se há tragédias, é porque aprouve a Deus que houvesse. E, se aprouve a Deus que houvesse, é porque há algum propósito nelas, ainda que nós não o conheçamos – do contrário, teríamos que admitir que o mero acaso, afinal, tenha precedência sobre os desígnios de Deus, ou que os desígnios de Deus sejam aleatórios e sem sentido. Ora, se nós admitimos que há um sentido nas coisas que acontecem, e admitimos não conhecer os desígnios do Deus Altíssimo, baseados em quê excluiríamos a priori o castigo divino – já sabemos que Deus castiga! – dos motivos possíveis pelos quais o Todo-Poderoso permitiria uma catástrofe natural qualquer?

Ainda: que há “castigos temporais infligidos por Deus” é doutrina definida pelo Concílio de Trento (Trento, Sessão XIV, Cap. 9). Qual a natureza destes castigos o Concílio não diz; mas diz que são temporais. Deus, portanto, inflige também castigos que não são espirituais. Se são temporais, então suas causas imediatas são naturais; ainda assim, são castigos infligidos por Deus. Ora, se há coisas que possuem causas naturais e, mesmo assim, são castigos de Deus, por qual motivo deveríamos excluir os efeitos dos movimentos das placas tectônicas – ou quaisquer outras catástrofes naturais – dos possíveis castigos divinos?

Atenção! Não estou dizendo que todo raio que cai, todo terremoto, toda inundação, toda gripe, todo câncer, toda falência são castigos de Deus. Estou dizendo que podem ser. Porque também nem toda adversidade é um castigo pelo pecado. Clemente XI condenou o seguinte erro de Quesnel:

Dios no aflige nunca a los inocentes, y las aflicciones sirven siempre o para castigar el pecado o para purificar al pecador.

Errores de Pascasio Quesnel, Condenados en la Constitución dogmática Unigenitus, de 8 de septiembre de 1713

Nada impede, portanto, que Deus envie aflições aos inocentes. Nada impede que uma catástrofe natural, portanto, seja, ao mesmo tempo, um castigo de Deus infligido aos pecadores e uma aflição aos inocentes que não lhes seja castigo. Isto não significa – repito! – que uma tragédia concreta seja um castigo divino; mas significa que pode perfeitamente ser.

Temos, em resumo, que (1) Deus castiga; (2) Deus também inflige castigos temporais; (3) nada obsta à inclusão das catástrofes naturais entre os possíveis castigos que Deus pode infligir.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

10 comentários em “Mais sobre os castigos temporais de Deus”

  1. “No entanto, durante mil e novecentos anos rezou-se dizendo que os terremotos eram castigos da mão de Deus”. De fato. Mas essas orações são de um tempo em que não havia outra explicação possível, nem mesmo científica, para os terremotos — restava apenas a tese de castigo divino. Foi só depois do terremoto de Lisboa de 1755 que começaram estudos mais sérios sobre a natureza dos tremores de terra. Em resumo, é evidente que Deus castiga, mas a noção de que Deus saia por aí sacudindo cidades ou países por vontade direta, para mim, levaria a um Deus que confunde suas criaturas, já que terremotos ocorrem em diversos lugares. Se alguns são, digamos, “obra” de Deus, e outros são apenas movimento tectônico aleatório, como diferenciar uns de outros?

  2. Se macumba desse terremoto, o estado da Bahia há muito tempo já teria sido engolido pela terra. Até porque, diversamente do Haiti, e ao arrepio da Constituição Federal que determina a laicidade do poder público, a Constituição do Estado da Bahia, em seu art. 275, estabelece como oficial a religião afro-brasileira, sendo dever do Estado preservar e garantir a sua integridade, respeitabilidade e a permanência dos seus valores:
    http://pt.wikisource.org/wiki/Constitui%C3%A7%C3%A3o_do_estado_da_Bahia#CAP.C3.8DTULO_XV:_Da_Cultura

    Ademais, a católica cidade de Lisboa, em 1755, foi terrivelmente destruída por um terremoto, em pleno Dia de Todos os Santos, quando as igrejas estavam lotadas para a missa. Este episódio foi bastante aproveitado por Voltaire e Rousseau para combater o costume católico de reunir-se em igrejas de alvenaria e favorecer o deísmo iluminista:
    http://pt.wikipedia.org/wiki/Terramoto_de_Lisboa_de_1755

    Será que os lisboetas do dito “Século das Luzes” eram os mais pecadores de todos os homens, ou pelo menos os da Europa, naquela época?

    Além disso, o terremoto serviu de pretexto para que o maçônico ministro Pombal — um grande filho da mãe, pra dizer o mínimo — assumisse poderes ditatoriais em Portugal, que ele usou para, entre outras coisas, expulsar do Reino e de seus domínios os valorosos jesuítas (deixando o Brasil sem escolas por mais de meio século) e disseminar o catecismo jansenista entre a população.

    Ademais, Deus é justiça reta. Não sei se seria leviandade de nossa parte considerar castigo divino um fato que atinge culpados e inocentes, sem ter em nenhuma conta a proporção das respectivas culpas. Em nossos dias, é bom evitar tanto o erro espírita de considerar que todo sofrimento é expiação de uma culpa da vida atual ou passada, como o erro protestante de confundir a prosperidade material com a graça divina.

    Depois, quem foi letalmente colhido pelo terremoto em estado de graça — seja na Lisboa de 1755 ou no Haiti de hoje em dia — recebeu não um castigo, mas uma verdadeira e grande bênção. Só não pode ver isso quem só tem olhos para esta presente vida.

    Os desígnios de Deus são imperscrutáveis. «Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos; nem os vossos caminhos são os vossos caminhos, diz o Senhor. Porque quanto os céus estão elevados acima da terra, assim se acham elevados os meus caminhos acima dos vossos caminhos, os meus pensamentos acima dos vossos pensamentos» (Isaías 55,8-9).

    Além de tudo, disse o Senhor: «Assim como também aqueles dezoito homens, sobre os quais caiu a torre de Siloé, e os matou, julgais que eles também foram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não, eu vo-lo digo; mas, se não fizerdes penitência, todos perecereis do mesmo modo» (Lc 13,4-5).

  3. Prezado Marcio

    Como ensinou Santo Tomás de Aquino, nas Questões Disputadas sobre a Potência:

    «Deus perfecte operatur ut causa prima; requiritur tamen operatio naturae ut causae secundae. Posset tamen Deus effectum naturae etiam sine natura facere. Vult tamen facere mediante natura, ut servetur ordo in rebus» (Pot. 3,7 ad 16).
    http://www.corpusthomisticum.org/qdp3.html#58781

    «Deus opera perfeitamente como causa primeira; mas requer a operação da natureza como causa segunda. Embora Deus possa produzir o efeito da natureza sem a natureza. Todavia Ele quer produzir mediante a natureza, para observar a ordem nas coisas».

    Deus é a causa primeira de todas as coisas (até do diabo, que é criatura de Deus), mas atua ordinariamente pelas causas segundas. Deus fez o mundo com suas leis físicas e não tem obrigação de suspender essas leis todas as vezes em que seu agir natural possa causar prejuízos ao homem. Porém, isso não significa que Ele não possa usar esses mesmos efeitos naturais para produzir outros que Ele soberanamente queira, nem que Ele não possa intervir na ordem natural produzindo milagres, isto é, fatos que ultrapassam as forças da natureza.

    No governo do mundo, Deus dá exemplo do que seja o princípio da subsidiariedade, como ensina o Catecismo da Igreja Católica:

    «Deus não quis reservar só para Si o exercício de todos os poderes. Confia a cada criatura as funções que ela é capaz de exercer, segundo as capacidades da sua própria natureza. Este modo de governo deve ser imitado na vida social. O procedimento de Deus no governo do mundo, que testemunha tão grande respeito para com a liberdade humana, deveria inspirar a sabedoria daqueles que governam as comunidades humanas. Eles devem actuar como ministros da providência divina.»
    http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p3s1cap2_1877-1948_po.html

  4. Marcio,

    É precisamente o que eu estou dizendo: que não dá para diferenciar uns de outros, porque os desígnios do Altíssimo não são conhecidos de nós.

    Pelo mesmíssimo motivo, também não dá para dizer nem “toda catástrofe é castigo de Deus”, nem “nenhuma catástrofe é castigo de Deus”, e não dá nem mesmo para fazer este juízo diante de uma tragédia concreta.

    A expressão “vontade direta” talvez me faça entender melhor as objeções. O que é “vontade direta”? Seria quando Deus “interfere” nas leis da natureza para provocar um fenômeno qualquer, enquanto que o fenômeno provocado pelas leis da natureza em seu “desempenho natural” (perdoe-me a redundância) seria “vontade indireta”?

    Abraços,
    Jorge

  5. Prezado Jonas,

    A propósito, vale a pena ler os comentários da Catena Aurea para a passagem bíblica que tu trouxeste, dos quais destaco os seguintes, tirados de São João Crisóstomo:

    Dios castiga a ciertos pecadores, destruyendo su malicia y decretando pena más leve para ellos, los separa de los otros y corrige a los que viven en el mal con la condenación de algunos. Además, aquí no castiga a otros, con el fin de que, si hicieren penitencia, evitasen los castigos presentes y la pena eterna, pero si perseveraren en su malicia, habrán de sufrir mayor tormento.

    […]

    El Señor da a conocer con esto que permitió que fuesen castigados algunos para que aterrados por los peligros ajenos, los que ésto mirasen se hiciesen herederos del reino de los cielos. ¿Cómo, pues? dirás, ¿acaso otro hombre es castigado para que yo mejore mi conducta? No, por cierto, es castigado por sus propias culpas, pero su castigo es un motivo de salvación para los que lo ven.

    Abraços,
    Jorge

  6. Jorge,

    A expressão “vontade direta” talvez me faça entender melhor as objeções. O que é “vontade direta”? Seria quando Deus “interfere” nas leis da natureza para provocar um fenômeno qualquer, enquanto que o fenômeno provocado pelas leis da natureza em seu “desempenho natural” (perdoe-me a redundância) seria “vontade indireta”?

    Mais ou menos. Não é que Deus “interfere nas leis da natureza” (afinal o terremoto não teve nada de extraordinário – seguiu exatamente o script de qualquer outro terremoto), mas sim que Ele faça as leis da natureza (no caso, as leis que fazem a terra tremer) trabalharem, digamos, no lugar, na hora e do jeito que Ele quer.

    Não acho que Deus saia “provocando” terremotos nos locais que Ele queira “punir”. Ou, em outras palavras, não creio que a terra tenha tremido naquele ponto específico, naquela hora específica, com aquela intensidade específica, porque Deus determinou que assim fosse, usando das leis da natureza. Aconteceu da maneira como aconteceu porque é assim que o planeta “funciona”. Certamente Deus permitiu que assim fosse (o que é diferente de “determinou”), embora seja difícil compreender os Seus desígnios.

    Entender esses desastres como ação direta de Deus, para mim, leva a uma série de complicações: supondo que no Haiti foi castigo divino, na Itália também foi? E no México, na década de 80? E San Francisco em 1906? E Lisboa em 1755? E o tsunami, e o Katrina? Se nem tudo é castigo divino, como saber o que é e o que não é? E por que alguns são e outros não? Acho que uma visão assim mais confunde que esclarece.

  7. Jorge, gostaria de comentar algo sobre o catolicismo no Haiti, o qual o Júlio Severo não está tão errado assim em suas colocações, pode até ser que no Haiti as pessoas são em sua maioria católicas, porém, ao mesmo tempo que estes haitianos vão as missas aos domingo são assíduos freqüentadores de centros de vodoo, algo que acorre aqui no Brasil, principalmente na Bahia, sobretudo na capital Salvador, vejo nisso muita falta de evangelização, aonde o povo acredita que os orixás sejam o mesmo que os santos católicos, que crêem na reencarnação e não se dão conta que quando voa a missa aí se celebra a paixão, morte e ressurreição de NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, isto tudo para mim é um fato lamentável, há anos atrás o falecido Papa João Paulo II já dizia que a América precisava de uma nova evangelização e urgente, porém pouca coisa mudou desde que foi feito este pedido, por falta de vontade dos bispo ou de nós mesmos católicos, o povo ainda vive na ignorância religiosa e são sempre presas fáceis tanto das religiões que seguem matrizes afros como a de igrejas pentecostais e neo pentecostais fora religiões pseudo cristãs como as testemunhas de Jeová, o espiritismos e a igreja mórmon.

  8. Sobre a catolicidade do Haití deve-se salientar que o país foi idealizado como estado iluminista e sob a égide dos ideais da revolução francesa. Para tanto tudo se fez para que os haitianos não sofressem a influência européia e americana e sim construísse uma estado baseado na “bondade inerente a todo o ser humano” e livre dos conceitos escravizando das bases judaico-cristãs!
    O vudú foi sim incentivado como religião nacional em contraposição à ingerência cristã.
    Se foi castigo ou não está além da nossa limitada compreensão do Altíssimo e seus desígnios, apenas – e isso é opinião particular – onde não se quer Deus ao demônio se oferece! Na ausência do Bem Maior tudo (de ruím) pode acontecer!
    No entanto, até onde pude pesquisar, não ví nas expressões dos inúmeros haitianos retratados essa ausência de Deus, bem como houve manifestações (antes secretas e realizadas à noite nos cemitérios – com roubo de cadáveres) de cerimônias vudú à luz do dia!

    Mãe de Misericórdia! Rogái por nós!

  9. Em tempo:

    Me ocorreu um pensamento após a mensagem anterior; se o comportamento de um governo ou de um povo seria suficiênte para determinar seu castigo( E o é… vide Sodoma e Gomorra) há uma certa nação poderosa, lá no norte, que já teria sido varrida da face da terra há muito tempo!

    Em Jesus e Maria!

  10. Em Medjugorje uma vidente disse que este momento da história que é a hora “do poder das trevas” e que “Satanás foi “autorizado” a agir com toda sua força e poder”.

    TUDO SE CONDICIONARÁ Á CONVERSÃO.SANTA FUASTINA TAMBÉM FALA DO TEMA EM SEU DIÁRIO.

    FONTE:

    http://www.spiritdaily.com/angelsswordsprophecy.htm

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