Hélio, o aborto e a alma

Aproveitando o ensejo surgido em uma troca de emails com uns amigos, gostaria de comentar o artigo do Hélio Schwartsman de hoje sobre o aborto. Para fins de praticidade vou comentar por partes, abstendo-me de citar os trechos sobre os quais não tenho comentários a tecer; quem quiser ler o artigo na íntegra, vá no link supracitado.

Comecemos com um pequeno experimento mental. Suponhamos por um breve instante que as leis e instituições funcionassem direitinho no Brasil e que todas as mulheres que induzem ou tentam induzir em si mesmas um aborto (…) fossem identificadas, processadas e presas

[…]

Minha pergunta é muito simples: Você acha que a aplicação universal do que preconiza a lei do aborto tornaria o Brasil um país melhor ou pior do que é hoje?

Melhor, obviamente, porque um país que pune os crimes de seus cidadãos é sem dúvidas melhor do que um país onde reina a impunidade. Ademais, esta questão pragmática não tem nenhuma relevância no debate, simplesmente porque a “aplicação universal” de virtualmente qualquer artigo do Código Penal iria esbarrar nos exatos mesmos problemas apontados pelo articulista da Folha. E nem por isso nós advogamos pela extinção do Código Penal.

Trabalhos da década de 90 estimavam em até 1,4 milhão o número anual de interrupções forçadas da gravidez.

Estimativas chutadas, para dizer o mínimo. Sobre o número de abortos que ocorrem no Brasil, vale a pena ler este post do Murat – que, aliás, hoje completa exatamente um ano.

Independente disso, sob qualquer ótica minimamente racional, um grande número de crimes é motivo para se aumentar a fiscalização e a punição, e jamais para se lhe abrandar. Se os abortistas fizessem uma aplicação honesta dos seus princípios, quanto mais assaltos houvesse em uma cidade, maior deveria ser o clamor para a descriminalização do roubo. No entanto, eles não fazem isso. Só aplicam os seus “raciocínios” à questão do aborto.

É no mínimo complicado afirmar que a vida começa com a concepção.

Não, não é. O que é complicadíssimo – como o próprio articulista vai admitir no final – é negar que a vida comece na concepção. Mas já vamos chegar lá.

Uma semente não é uma árvore e não recebe do Ibama o mesmo nível de proteção que uma respeitável tora de mogno.

Não, mas o Ibama pune como crime contra a fauna a destruição de ovos – ainda que seja um único – de tartarugas marinhas. E aí, como ficamos? A vida das tartarugas começa “antes” da dos seres humanos? Trata-se de alguma peculiar característica evolutiva com a qual a espécie humana não foi agraciada?

O que a concepção produz é um ser humano em potência, para utilizar a distinção aristotélica, autor tão caro à igreja

Que grosseira petição de princípio. A concepção produz um ser humano em ato, e um homem adulto em potência. Como um recém-nascido é também um adulto em potência, e não “um ser humano em potência”.

Só o que torna coerente a posição do Vaticano, é um dogma de fé: o homem é composto de corpo e alma. E a igreja inclina-se a afirmar que esta é instilada no novo ser no momento da concepção.

Não, negativo. Não é somente por causa disso que a Igreja condena o aborto. Bastaria ler a Declaração sobre o aborto provocado da Congregação para a Doutrina da Fé, onde se diz, citando inclusive autores do início do Cristianismo: “Tertuliano não usou, talvez, sempre a mesma linguagem; contudo, não deixa também de afirmar, com clareza, o princípio essencial: « É um homicídio antecipado impedir alguém de nascer; pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda para nascer. É já um homem aquele que o virá a ser »”. Aliás, vale a pena citar a nota de rodapé que fala explicitamente sobre a questão da infusão da alma:

Esta Declaração deixa expressamente de parte o problema do momento de infusão da alma espiritual. Sobre este ponto não há tradição unânime e os autores acham-se ainda divididos. Para alguns, ela dá-se a partir do primeiro momento da concepção; para outros, ela não poderia preceder ao menos a nidificação. Não compete à ciência dirimir a favor de uns ou de outros, porque a existência de uma alma imortal não entra no seu domínio. Trata-se de uma discussão filosófica, da qual a nossa posição moral permanece independente, por dois motivos: 1° no caso de se supor uma animação tardia, estamos já perante uma vida humana, em qualquer hipótese, (biológicamente verificável); vida humana que prepara e requer esta alma, com a qual se completa a natureza recebida dos pais; 2° por outro lado, basta que esta presença da alma seja provável (e o contrário nunca se conseguirá demonstrá-lo) para que o tirar-lhe a vida equivalha a aceitar o risco de matar um homem, não apenas em expectativa, mas já provido da sua alma.

Agora, sabem de quando é este documento? De 1974. Tem, portanto, mais de trinta anos. O que justifica que, em pleno século XXI, um sujeito tenha a pachorra de publicar um texto na internet acusando a Igreja de defender uma coisa que Ela não defende? Isso poderia ser encontrado em qualquer pesquisa do Google! Custa se informar sobre um determinado assunto antes de escrever sobre ele?

Uma das mais importantes autoridades da igreja, santo Tomás de Aquino, afirmou, acompanhando Aristóteles, que a alma de garotos só chegava ao embrião no 40º dia. Já a de garotas (vocês sabem como são as meninas!) só no 48º dia.

É sinceramente frustrante ser obrigado a ler um coisa dessas no dia de Santo Tomás de Aquino (que é comemorado hoje, dia 28 de janeiro).

Em primeiro lugar, a teoria não dizia que as almas femininas eram infusas “no 48º dia”, e sim no 80º (ou no 90º, segundo alguns). Em segundo lugar, essa posição era mais científica (da “embriologia” de então) do que teológica, uma vez que, à época do Estagirita e do Aquinate, acreditava-se que os homens produziam “homúnculos” que se instalavam no útero materno e iam recebendo “almas sucessivas” (primeiro vegetativa, depois sensitiva e, depois, intelectiva – era essa última que era infusa no 40º dia) conforme fossem se desenvolvendo. Em terceiro lugar, há quem defenda que Santo Tomás não adotava a teoria da animação sucessiva. Em quarto lugar, a Igreja não condenou jamais nem uma teoria nem outra. Em quinto lugar, mesmo com as disputas filosóficas sobre o instante da infusão da alma, nem Santo Tomás de Aquino e nem ninguém na Igreja nunca defendeu o aborto (veja-se, p.ex., Dom Estêvão sobre o assunto, ou João Paulo II na Evangelium Vitae, n. 61)! Aliás, vou citar esta passagem da EV (grifos meus):

Ao longo da sua história já bimilenária, esta mesma doutrina [em classificar o aborto como desordem moral particularmente grave] foi constantemente ensinada pelos Padres da Igreja, pelos seus Pastores e Doutores. Mesmo as discussões de carácter científico e filosófico acerca do momento preciso da infusão da alma espiritual não incluíram nunca a mínima hesitação quanto à condenação moral do aborto.

Esta carta encíclica é de 1995. Tem quinze anos. E tem no Google. Custava ler antes de escrever?

Volto ao Schwartsman:

Mas será que a noção de alma para em pé?

Vale salientar que, uma vez que (como foi mostrado) a condenação moral do aborto independe do momento da infusão da alma, todas as objeções do Hélio à teoria da animação simultânea têm somente interesse filosófico. Em absolutamente nada mudam a condenação moral do aborto. No entanto, vamos às objeções dele.

Estima-se que 2/3 a 3/4 dos óvulos fecundados jamais se fixem no útero, resultando em abortos espontâneos.

Irrelevante. Um limbo “super-povoado”, embora me incomode profundamente, não é de per si uma demonstração da animação tardia.

Além da hipótese da superpopulação do Limbo, pode perfeitamente acontecer que (a) as estimativas estejam erradas; (b) estes abortos sejam frutos de um defeito na concepção, resultando assim em matéria não adequadamente disposta para a recepção da alma intelectiva e, portanto, neste caso, é precisamente a ausência da alma que provoca a “morte” do embrião e o subseqüente aborto espontâneo; (c) a teoria da animação simultânea esteja errada. Ou qualquer outra coisa na qual eu não consiga pensar agora.

Isso, como foi dito, pode até ter interesse metafísico, mas é completamente irrelevante no debate sobre o aborto.

Para começar, a própria concepção não é exatamente um instante, mas um intervalo que varia de 24 a 48 horas. Esse é o tempo que transcorre entre a penetração do espermatozóide no óvulo e a fusão genética dos gametas. Será que a alma leva todo esse tempo para ser soprada no novo ser?

Pode-se perfeitamente assumir que a infusão da alma ocorre ao fim do processo, quando a matéria está adequadamente disposta. Aliás, se a gente parar de pensar em “infusão da alma” como um “sopro”, literalmente, e considerar as coisas da maneira que a filosofia católica considera, todas as dificuldades levantadas pelo artigo da Folha deixam de existir.

O homem, como todas as coisas (exceto os anjos), tem matéria e forma. O corpo é a matéria, a alma é a forma. Para existir o homem – como, aliás, para existir qualquer coisa – é preciso que haja a matéria e a forma, porque “matéria não-informada” não existe e, forma sem matéria, só os anjos. Se, portanto, há um ser humano, há forma, há alma. Em outras palavras: se a matéria orgânica está disposta de tal maneira que seja um ser humano (lógico, e este ser humano em questão está vivo), há uma forma a lhe dar consistência ontológica, há uma alma. Assim considerando, todas as objeções perdem o fundamento, como se pode ver a seguir.

Como já expliquei em outras colunas, gêmeos monozigóticos (idênticos) se formam entre um e 14 dias depois da fertilização, quando o embrião sofre um desenvolvimento anormal dando lugar a dois ou mais indivíduos com o mesmo material genético. A alma, é claro, já estava lá. Cabem, assim, algumas perguntas. Ela também se divide, ou outras almas surgem para animar os demais irmãos?

As almas surgem quando a matéria está disposta, conforme acima explicado. Assim, caso uma divisão celular resulte em dois embriões, a segunda alma surge junto com o segundo embrião, da mesma forma como surgiria se o embrião fosse resultante de fecundação, e não de divisão celular.

Quem fica com a alma “original” é uma pergunta obviamente irrelevante e impossível de ser respondida.

O quimerismo é relativamente raro entre humanos, mas ocorre quando dois ou mais embriões se fundem antes do quarto dia de gestação.

Se o embrião deixa de existir, a alma dele morre. Qual a dificuldade com isso?

O que procurei mostrar com essas considerações é que não é tão certo que a vida comece com a concepção.

Aqui, o Hélio identifica – de maneira totalmente indevida – “a vida começa na concepção” com “a alma é infundida na concepção”. A primeira, é um dado científico incontestável; a segunda, é uma questão filosófica em aberto. O Hélio contestou a segunda; sobre a primeira, não deu um único pio ao longo de todo o longo artigo.

O meu palpite (e é só um palpite, porque eu, ao contrário de alguns religiosos, tenho muito poucas certezas) é que não dá para estabelecer um instante mágico a partir do qual o embrião se torna um ser humano. Ou melhor, até podemos eleger esse momento, mas ele será tão arbitrário quanto qualquer outro.

E, já que a definição é necessariamente arbitrária, não vejo motivos para não a ajustarmos às nossas necessidades.

Que pérola! Antes de mais nada, a embriologia já define perfeitamente que um embrião é um ser humano (se não for um ser humano, ele é o quê? Uma galinha?); o que o Hélio quer dizer, confundindo as duas questões que eu mencionei acima, é que não dá para dizer com certeza quando a alma é infusa.

E a “solução” para ele, ao invés do in dubio pro reo obviamente mais sensato (i.e., considerar ao menos que o embrião pode ser um ser humano, dado que esta possiblidade não foi de modo algum excluída e, portanto, todas as pessoas, para serem honestas, precisam considerá-la e, por conseguinte, proteger o embrião), é… ser arbitrário. Já pensou que maravilha? A gente pode mandar a biologia às favas. A gente pode arbitrar quando é que o ser humano passa a existir. Alguns podem escolher que é na concepção, outros, que é aos 48 dias. Outros podem escolher que é aos dezoito anos. Outros, aos sessenta. E talvez outros possam arbitrar que, para algumas pessoas (digamos, deficientes mentais, ou negros ou judeus), não é nunca. Afinal, não dá para saber com certeza…

Sim, o mundo não é um lugar perfeito. Mas seria muito, muito pior se os abortistas fossem levados a sério em todas as sandices que defendem.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

25 comentários em “Hélio, o aborto e a alma”

  1. É muito curioso que ele tenha afirmado categoricamente que o embrião é um ser humano em potência ao mesmo que disse que qualquer critério para se estabelecer o que é ser humano em ato seja arbitrário.
    Ou seja, a própria visão do Hélio é autocontraditória. Se partirmos da premissa de que não há critério seguro para diferenciarmos seres humanos em ato ou em potência, então nem ele pode definir quando que o ser humano está em ato ou em potência. Se ele como filósofo não é capaz de notar isso, ou ele é extremamente limitado (deve ter só aprendido filosofias atéias e niilistas sei lá eu) ou ele está agindo de má fé, creio eu que sejam as duas coisas misturadas, talvez uma alimente a outra.
    Ele disse ter poucas certezas, não sei quais são e nem ele deixou claro, mas a julgar pelo texto dele, com certeza ele não tem certeza de que o embrião é um ser humano em potência.

  2. Olha, já tem tempo que deixei de ler o Schwartsman justamente pela incoerência e falta de lógica internas dos textos que publica na Folha. Eu pensava que era por causa do espaço limitado, mas cheguei a ler textos longos — e incoerentes — dele, então não há desculpa.

    Aliás, ele é uma das pessoas com voz pública que mais tem viés. E viés descarado e assumido, diga-se de passagem.

    Depois eu leio a análise do artigo para comentar.

    Paz e bem.

  3. Jorge,

    Parabéns pelo texto! Sem dúvida, o artigo do Hélio peca por criticar uma doutrina e uma filosofia que ele julga ser “católica” e que em nada corresponde à teologia ou filosofia cristã clássica.

    Definitivamente ele não entende o conceito de forma substancial ou não sabe que a alma, na doutrina católica, corresponde justamente a esse conceito aristotélico.

  4. Como é possível um jornal pagar a um articulista desse naipe?!

    Parabéns, Jorge, pela refutação!

  5. “O argumento central dos antiabortistas é o de que a vida tem início na concepção e deve desde então ser protegida. Por essa visão, o embrião teria os mesmos direitos de qualquer ser humano.

    É no mínimo complicado afirmar que a vida começa com a concepção. Tanto o óvulo como o espermatozoide já eram vivos antes de se unirem. O que daria para dizer é que a fusão dos gametas marca a criação da identidade genética do que poderá tornar-se um ser humano, se as condições ambientais ajudarem. Uma semente não é uma árvore e não recebe do Ibama o mesmo nível de proteção que uma respeitável tora de mogno. O que a concepção produz é um ser humano em potência, para utilizar a distinção aristotélica, autor tão caro à igreja. E não faz muito sentido embaralhar potencialidades com atualidades; afinal, no longo prazo somos todos cadáveres”

    ENCORE! sem esquecer que fecundação não é o mesmo que concepção.

  6. “Tanto o óvulo como o espermatozoide já eram vivos antes de se unirem.”

    Sim, eram vivos, mas não eram elementos de um indivíduo geneticamente distinto de seus “hospedeiros”.

    É engraçado como a ciência é desprezada quando contraria a ideologia cientificista a serviço do ateísmo…

  7. Profeta, aproveitando que hoje está mais presente: há tempos eu lhe perguntei qual a sua opinião sobre o PNDH-3 e sobre o Lula… podes responder?

  8. Alien e demais leitores,

    Não percam seu tempo com o “profeta do profano”. Além deste caso que você mencionou que ele não respondeu (sobre o PNDH-3) ele também deixou em aberto (W.O.) um debate sobre o aborto no artigo https://www.deuslovult.org//2010/01/24/eua-e-aborto-moralmente-incorreto/

    Simplesmente acabaram os argumentos. Então ele vem aqui, neste post novo, onde não tem nenhum histórico dos debates que ele abandonou, e ainda dá Ctrl+C e Ctrl+V do próprio artigo refutado.

    Isto é meio Dom Quixote da parte dele, não acham?

  9. Profeta do Profano.

    Temos que defender a vida no seu curso natural.
    Se um espermatozoide humano fecundar um óvulo o que nascerá? Um burro?
    Basta olhar no espelho para ver a resposta.
    E se a criação da identidade genética não é do pai e nem da mãe é de quem? Do presidente Lula?

  10. Leandro, ele também não me respondeu aqui: https://www.deuslovult.org//2010/01/25/curtas-9/#comments

    Mas isso é típico. Sem argumentos, eles têm duas alternativas: xingar ou sumir. Como aqui não pode xingar, eles somem e voltam em outro tópico com a mesma ladainha, como se não tivessem sido refutados trocentas vezes antes.

    É como o Mallmal, só que com memória mais curta.

    Eles não estão interessados em mostrar um argumento verdadeiro, nem mesmo um válido. Não lhes importa nem um pouco serem desmascarados e passarem vexame, com pecha de mentiroso ou demagogo. A brincadeira é ver quem cansa primeiro.

    Bom, eu to me divertindo =) Depois baixa o Google Desktop para compilar todos os argumentos furados deles e fazer um livrinho de piadas…

  11. Lampedusa disse tudo: eles não aceitam o aborto como questão religiosa, nem moral, nem ética, mas quando vêem que a ciência está contra eles, ela também não serve para falar do “direito ao aborto”.

    E eu ainda queria saber desde quando concepção e fecundação são diferentes…

  12. todos os argumentos foram respondidos.
    os sres é que insistem em tentar refutar, desviando do assunto, sem promover uma única linha contendo um fato científico.

  13. Profeta: não encontrei a sua resposta à minha pergunta… caso seja falha minha, poderias me postar o link?

    Desde já agradeço…

  14. um texto pescado sobre a escada, já que insistem tanto:

    “a técnica de escadas sem eixo é tradicional e já era dominada pelos nossos antepassados.”
    [corte]
    “A ausência de pregos não há de espantar. Um velho marceneiro campista contava com admiração que quando ele próprio apreendeu o ofício, seus mestres faziam questão de construir complicados arranjos sem empregar pregos nem mesmo cola.

    Compreendi melhor isso, anos depois, num hotel da Borgonha, França, instalado numa antiga dependência abacial construída na Idade Média.

    Um admirável vigamento sustenta o telhado sem um só prego. Ainda na França voltei a ver num pequeno castelo mais um exemplo da sabedoria dos marceneiros de outrora: todo o vigamento em que se apóiam as ardósias é feito com um jogo admirável de traves encaixadas.

    Aliás, essa técnica é a que explica a ousadia do gótico num tempo que no se conhecia o cimento armado. Catedrais e outros prédios medievais foram levantados com encaixes de pedras que “travam”. Depois não caem nem com os bombardeios das Guerras Mundiais.”

  15. Depois que li o post inteiro, não há muito a acrescentar. As principais falácias do Schwartsman já foram refutadas.

    (Em tempo: o Schwartsman cai em falácias demais e tem viés demais para alguém que se diz filósofo)

    Mas comento:

    É no mínimo complicado afirmar que a vida começa com a concepção. Tanto o óvulo como o espermatozoide já eram vivos antes de se unirem. O que daria para dizer é que a fusão dos gametas marca a criação da identidade genética do que poderá tornar-se um ser humano, se as condições ambientais ajudarem.

    Aí há três erros graves.

    1) Dizer que a vida não começa na concepção porque os gametas eram vivos antes é alegar falsa causa. O início da vida humana em termos reprodutivos, por assim dizer, não deve ser definido com base no pressuposto da inexistência de qualquer forma de vida antes. Isso é contraditório em relação ao próprio conceito de reprodução — é uma vida “reproduzida”, não “criada”. Do contrário, nunca se poderia definir o início de uma vida humana, e confundir-se-ia a vida de cada ser humano com de seus genitores, como se fosse uma só, o que é absurdo.

    2) Conceituar a fusão dos gametas como mera “criação da identidade genética do que poderá tornar-se um ser humano” é um chute do Hélio, dado a partir da ignorância em biologia. Já sabemos, por técnicas de clonagem e engenharia genética, que somente unir os materiais genéticos dos gametas não cria um embrião, tampouco permite que esse material se desenvolva num embrião ou feto. O zigoto não é apenas uma caixinha com um novo material genético — o que, por si só, já define biologicamente um novo indivíduo, que não se confunde com o pai ou a mãe — mas um pequeno “aparelho” capaz dos mecanismos necessários à vida e ao desenvolvimento do embrião, entre eles a divisão celular e a nidação.

    3) Submeter a conceituação de “ser humano” a condições ambientais favoráveis é um erro lógico estúpido, inaceitável para alguém que se diz filósofo. Qualquer ser vivo depende de “condições ambientais favoráveis” para se desenvolver e sobreviver. Por essa lógica do Hélio, um sujeito que passa fome, um doente terminal, qualquer adulto ou criança sem chances de sobrevivência deixa automaticamente de ser humano. É um raciocínio ridículo. Sem falar que é uma lógica que confunde conteúdo com continente, como se o ambiente definisse aquilo que contém. O suco não deixa de ser suco porque é retirado da jarra, nem o bebê o deixa de ser quando é retirado do útero. Aliás, este mesmo argumento foi usado no debate sobre pesquisa com embriões, quando tentaram convencer os incautos de que o embrião na placa de Petri era essencialmente diferente daquele no útero.

    Agora, a pior foi esta aqui:

    Uma semente não é uma árvore e não recebe do Ibama o mesmo nível de proteção que uma respeitável tora de mogno. O que a concepção produz é um ser humano em potência, para utilizar a distinção aristotélica, autor tão caro à igreja. E não faz muito sentido embaralhar potencialidades com atualidades; afinal, no longo prazo somos todos cadáveres.

    Quem embaralha potência com ato é o Hélio. Ao dizer que “no longo prazo somos todos cadáveres”, ele define que a diferença entre um e outro seria apenas o lapso de tempo e desenvolvimento biológico. Essas características podem ser suficientes para diferenciar um adulto em potência e em ato, mas não são suficientes para delimitar ato e potência ao definir o ser humano, porque elas são diferentes para coisas que definimos igualmente como “humanos” (crianças e velhos, por exemplo). Então tanto, um idoso, quanto um bebê, quanto um embrião são seres humanos em ato, pois não houve mudança de potencialidade, apenas lapsos de tempo e amadurecimento.

    Mas ele embanana tudo e afinal chega ao absurdo de conferir ao Ibama a autoridade filosófica de definir o que é ato e o que é potência.

    É deprimente um filósofo escrever confusões crassas de filosofia aristotélica e demonstrar que não sabe nem lidar com conceitos básicos como “igual” e “diferente”. Eu teria vergonha de publicar isso para todo mundo ver.

    Agora, para o pateta do profano: você não explicou por que concepção é diferente de fecundação…

  16. Pedro M diz: “qualquer ser vivo depende de ‘condições favoráveis’ para se desenvolver”. Concordo totalmente, plantar uma muda de árvore num solo pobre dificilmente permitirá que essa árvore chegue à idade adulta (nem estou falando da semente).

    Mas, para os abortistas, uma tartaruga merece total proteção desde o ovo, porque se alguém mexer no ninho minimiza as condições de uma tartaruguinha chegar à idade adulta.

    Porém, um embrião é um inútil (mil perdões pelo termo), porque não consegue sobreviver fora do útero!

    É muita falta de inteligência, na verdade, é muita esperteza usada para o mal.

  17. O negócio, Karina, é que os abortistas só vencem o debate na base do espantalho. Reduzem o debate a questão religiosa, científica ou de saúde pública, quando o simples uso da lógica traria muito mais luz à questão. E o pior é que é hipocrisia grossa, porque fazem isso dizendo que o debate sobre o aborto deve ser “ampliado”.

    Claro que só “ampliam” o debate para o lado que eles ganham.

    A religião não dá resposta definitiva e mensurável para o início da vida, porque esse não é o objetivo dela. Logo, é óbvio que rotular o pró-vida de “religioso” é levar o debate a um campo onde ele não terá resposta, logo não haverá argumentação para o lado adversário.

    A ciência — que é a prova que o pateta do profano sempre pede — só pode dar evidências, nunca parâmetros. A ciência pode responder “o zigoto se comporta assim”, mas nunca pode dizer o que isso significa em termos de humanidade. Os parâmetros são convenções a posteriori, portanto definidos pela conveniência, não pela evidência.

    A questão de saúde pública é a mais fraca, pois só temos dados distorcidos que podem ser usados para qualquer lado. Uma questão meramente de saúde pública cria a tentação de lidar com os indicadores, e não com a causa deles. Assim, age-se da forma conveniente, não necessariamente da forma efetiva.

    Apenas na lógica, na filosofia e na moral é que se pode partir desses três campos e transcendê-los. Mas aí os abortistas perdem, porque suas reinvidicações, como vimos, são claramente ilógicas para o minimamente letrado em raciocínio lógico.

    Mas a política não é o domínio da lógica. É o domínio da conveniência. Platão já percebeu isso há mais de 2.300 anos. Você pode escancarar a verdade ao ideólogo até você sinta vergonha da idiotice dele, mas ele irá desprezá-la e, se tiver quem o suporte, ele será o vencedor.

    P.S.: é por isso que pessoas como Mallmal e o pateta fogem do debate. Eles querem que o método científico explique tudo, mas é óbvio que não explica. Quando a gente tira o debate do campo científico, tirando do plano a que não pertence, eles simplesmente não têm o que dizer.

    P.S.2: Essas pessoas só querem ver um tipo de resposta, mesmo quando ele é impossível. E ainda dizem que somos nós que vivemos nas trevas…

  18. Na verdade, Pedro M, a ciência experimental nunca nos pode dar evidências, pelo menos não em língua portuguesa. O termo inglês evidence e o termo português evidência são falsos cognatos, e traduzir o primeiro pelo segundo é cometer um anglicismo — infelizmente já demasiado comum, não apenas conspurcando a língua, como também deturpando o entendimento das pessoas. Evidences, em inglês, significa “indícios”, “vestígios”, revelando bem a mentalidade empirista dos falantes dessa língua (Hegel ridicularizava os ingleses que chamavam de “instrumentos filosóficos” os aparelhos de laboratório). Evidência, em português, é a verdade que se impõe por si e claramente à própria inteligência. É só a filosofia que lida com evidências no sentido rigoroso do termo em português.

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