“A vinda intermediária de Cristo” – São Bernardo

A Vinda Intermediária de Cristo

Conhecemos uma tríplice vinda do Senhor. Entre a primeira e a última há uma vinda intermediária. Aquelas são visíveis, mas esta, não. Na primeira vinda o Senhor apareceu na terra e conviveu com os homens. Foi então, como ele próprio declara, que viram-no e não o quiseram receber. Na última, todo homem verá a salvação de Deus (Lc 3,6) e olharão para aquele que transpassaram (Zc 12, 10). A vinda intermediária é oculta e nela somente os eleitos o vêem em si mesmos e recebam a salvação. Na primeira, o Senhor veio na fraqueza da carne; na intermediária, vem espiritualmente, manifestando o pode de sua graça; na última, virá com todo o esplendor da sua glória.

Esta vinda intermediária é, portanto, como um caminho que conduz da primeira à última: na primeira, Cristo foi nossa redenção; na última, aparecerá como nossa vida; na intermediária, é nosso repouso e consolação.

Mas, para que ninguém pense que é pura invenção o que dissemos sobre esta vinda intermediária, ouvi o próprio Senhor: Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos a ele (cf. Jo 14,23). Lê-se também noutro lugar: Quem teme a Deus, faz o bem (Eclo 15,1). Mas vejo que se diz algo mais sobre o que ama a Deus, porque guardará suas palavras. Onde devem ser guardadas? Sem dúvida alguma no coração, como diz o profeta: Conservei no coração vossas palavras, a fim de que eu não peque contra vós (Sl 118, 11).

Guarda, pois, a palavra de Deus, porque são felizes os que a guardam; guarda-a de tal modo que ela entre no mais íntimo de tua alma e penetre em todos os teus sentimentos e costumes. Alimenta-te deste bem e tua alma se deleitará na fartura. Não esqueças de comer o teu pão para que teu coração não desfaleça, mas que tua alma se sacie com este alimento saboroso.

Se assim guardares a palavra de Deus, certamente ela te guardará. Virá a ti o Filho em companhia do Pai, virá o grande Profeta que renovará Jerusalém e fará novas todas as coisas. Graças a essa vinda, como já refletimos a imagem do homem terrestre, assim também refletiremos a imagem do homem celeste (1Cor 15,49). Assim como o primeiro Adão contagiou toda a humanidade e atingiu o homem todo, assim agora é preciso que Cristo seja o senhor do homem todo, porque ele o criou, redimiu e o glorificará.

São Bernardo
Sermo 5 in Adventu Domini, 1-3: Opera omnia, Edit. Cisterc. 4 [1966], 188-190
[Recebido por email]

Nota sobre a banalização da sexualidade

[Publico na íntegra a nota da Congregação para a Doutrina da  Fé que foi tornada pública hoje, esclarecendo alguns aspectos sobre as palavras do Papa no livro “Luz do Mundo” – assunto que eu inclusive já comentei aqui. Faço notar que este documento descarta tanto a possibilidade de uma “extrapolação” das palavras papais para que os preservativos sejam usados com finalidade contraceptiva quanto a idéia de que se estaria expondo a doutrina do “mal menor” no caso citado. Portanto, nem contracepção, nem prostituição, nem preservativos – ao contrário do que alguns setores midiáticos animaram-se a noticiar.

A nota foi publicada em diversos idiomas no press.catholica.]

Nota da Congregação para a Doutrina da Fé

Sobre a banalização da sexualidade

A propósito de algumas leituras de «Luz do mundo»

Por ocasião da publicação do livro-entrevista de Bento XVI, «Luz do Mundo», foram difundidas diversas interpretações não correctas, que geraram confusão sobre a posição da Igreja Católica quanto a algumas questões de moral sexual. Não raro, o pensamento do Papa foi instrumentalizado para fins e interesses alheios ao sentido das suas palavras, que aparece evidente se se lerem inteiramente os capítulos onde se alude à sexualidade humana. O interesse do Santo Padre é claro: reencontrar a grandeza do projecto de Deus sobre a sexualidade, evitando a banalização hoje generalizada da mesma.

Algumas interpretações apresentaram as palavras do Papa como afirmações em contraste com a tradição moral da Igreja; hipótese esta, que alguns saudaram como uma viragem positiva, e outros receberam com preocupação, como se se tratasse de uma ruptura com a doutrina sobre a contracepção e com a atitude eclesial na luta contra o HIV-SIDA. Na realidade, as palavras do Papa, que aludem de modo particular a um comportamento gravemente desordenado como é a prostituição (cf. «Luce del mondo», 1.ª reimpressão, Novembro de 2010, p. 170-171), não constituem uma alteração da doutrina moral nem da praxis pastoral da Igreja.

Como resulta da leitura da página em questão, o Santo Padre não fala da moral conjugal, nem sequer da norma moral sobre a contracepção. Esta norma, tradicional na Igreja, foi retomada em termos bem precisos por Paulo VI no n.º 14 da Encíclica Humanae vitae, quando escreveu que «se exclui qualquer acção que, quer em previsão do acto conjugal, quer durante a sua realização, quer no desenrolar das suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação». A ideia de que se possa deduzir das palavras de Bento XVI que seja lícito, em alguns casos, recorrer ao uso do preservativo para evitar uma gravidez não desejada é totalmente arbitrária e não corresponde às suas palavras nem ao seu pensamento. Pelo contrário, a este respeito, o Papa propõe caminhos que se podem, humana e eticamente, percorrer e em favor dos quais os pastores são chamados a fazer «mais e melhor» («Luce del mondo», p. 206), ou seja, aqueles que respeitam integralmente o nexo indivisível dos dois significados – união e procriação – inerentes a cada acto conjugal, por meio do eventual recurso aos métodos de regulação natural da fecundidade tendo em vista uma procriação responsável.

Passando à página em questão, nela o Santo Padre refere-se ao caso completamente diverso da prostituição, comportamento que a moral cristã desde sempre considerou gravemente imoral (cf. Concílio Vaticano II, Constituição pastoral Gaudium et spes, n.º 27; Catecismo da Igreja Católica, n.º 2355). A recomendação de toda a tradição cristã – e não só dela – relativamente à prostituição pode resumir-se nas palavras de São Paulo: «Fugi da imoralidade» (1 Cor 6, 18). Por isso a prostituição há-de ser combatida, e os entes assistenciais da Igreja, da sociedade civil e do Estado devem trabalhar por libertar as pessoas envolvidas.

A este respeito, é preciso assinalar que a situação que se criou por causa da actual difusão do HIV-SIDA em muitas áreas do mundo tornou o problema da prostituição ainda mais dramático. Quem sabe que está infectado pelo HIV e, por conseguinte, pode transmitir a infecção, para além do pecado grave contra o sexto mandamento comete um também contra o quinto, porque conscientemente põe em sério risco a vida de outra pessoa, com repercussões ainda na saúde pública. A propósito, o Santo Padre afirma claramente que os preservativos não constituem «a solução autêntica e moral» do problema do HIV-SIDA e afirma também que «concentrar-se só no preservativo significa banalizar a sexualidade», porque não se quer enfrentar o desregramento humano que está na base da transmissão da pandemia. Além disso é inegável que quem recorre ao preservativo para diminuir o risco na vida de outra pessoa pretende reduzir o mal inerente ao seu agir errado. Neste sentido, o Santo Padre assinala que o recurso ao preservativo, «com a intenção de diminuir o perigo de contágio, pode entretanto representar um primeiro passo na estrada que leva a uma sexualidade vivida diversamente, uma sexualidade mais humana». Trata-se de uma observação totalmente compatível com a outra afirmação do Papa: «Este não é o modo verdadeiro e próprio de enfrentar o mal do HIV».

Alguns interpretaram as palavras de Bento XVI, recorrendo à teoria do chamado «mal menor». Todavia esta teoria é susceptível de interpretações desorientadoras de matriz proporcionalista (cf. João Paulo II, Encíclica Veritatis splendor, nn.os 75-77). Toda a acção que pelo seu objecto seja um mal, ainda que um mal menor, não pode ser licitamente querida. O Santo Padre não disse que a prostituição valendo-se do preservativo pode ser licitamente escolhida como mal menor, como alguém sustentou. A Igreja ensina que a prostituição é imoral e deve ser combatida. Se alguém, apesar disso, pratica a prostituição mas, porque se encontra também infectado pelo HIV, esforça-se por diminuir o perigo de contágio inclusive mediante o recurso ao preservativo, isto pode constituir um primeiro passo no respeito pela vida dos outros, embora a malícia da prostituição permaneça em toda a sua gravidade. Estas ponderações estão na linha de quanto a tradição teológico-moral da Igreja defendeu mesmo no passado.

Em conclusão, na luta contra o HIV-SIDA, os membros e as instituições da Igreja Católica saibam que é preciso acompanhar as pessoas, curando os doentes e formando a todos para que possam viver a abstinência antes do matrimónio e a fidelidade dentro do pacto conjugal. A este respeito, é preciso também denunciar os comportamentos que banalizam a sexualidade, porque – como diz o Papa – são eles precisamente que representam a perigosa razão pela qual muitas pessoas deixaram de ver na sexualidade a expressão do seu amor. «Por isso, também a luta contra a banalização da sexualidade é parte do grande esforço a fazer para que a sexualidade seja avaliada positivamente e possa exercer o seu efeito positivo sobre o ser humano na sua totalidade» («Luce del mondo», p. 170).

O aborto e o governador do Rio de Janeiro

Estou meio otimista, disposto a enxergar o lado positivo dos acontecimentos atuais – por deprimentes que sejam. Refiro-me, especificamente, às cretinas declarações do sr. governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, sobre o aborto. Conclamando pelo fim da hipocrisia, o excelentíssimo governador defendeu a legalização do aborto com a seguinte pérola de argumento: “quem não teve uma namoradinha que teve que abortar”?

À primeira vista, o que a frase faz é chocar. Como é que um governador tem capacidade de ser tão – nas palavras do Reinaldo Azevedo – ligeiro, leviano, irresponsável, deseducado, deseducador e, acima de tudo, machista? É este tipo gente chula que queremos para governar o nosso país? Queremos manter nos nossos cargos públicos este tipo calhorda de governantes que, de modo tão baixo e vulgar, usam a sua influência política para fazer apologia ao crime?

A tese, exposta assim sem pudores, é tão escandalosa que nós nem nos preocupamos em entrar no mérito dos argumentos – que, aliás, não existe. É naturalmente muito grande o número de pessoas que nunca teve uma “namoradinha” que “teve” que abortar. No entanto, ainda que não o fosse, a ocorrência freqüente de uma conduta criminosa (em qualquer lugar do mundo e sob qualquer lógica) é motivo para se aumentar a fiscalização, e não para “liberar geral”. O pessoal do Twitter, na semana passada, logo após as declarações do governador do Rio, não perdoou: “quem nunca teve que receber uma propininha para votar em um projetinho de lei?”; “quem nunca precisou colocar amiguinhos incompetentes em cargos de confiança?”; “quem nunca teve que superfaturar um orçamentozinho?”; e outras coisas do tipo. A vantagem das declarações do Sérgio Cabral – e isto é o meu lado otimista sobre o qual eu falava acima – é que ele não tem vergonha de dizer o que diz. Ele não se preocupa em ser calhorda e vulgar. É deprimente, mas pelo menos revela quem esta gente é.

E o Instituto Plínio Corrêa de Oliveira está propondo uma ação contra estas declarações do governador do Rio de Janeiro – vejam lá como fazer. Não deixemos de pôr as claras o caráter de gente do naipe do Sérgio Cabral. O Brasil não precisa desta infâmia.

Novo Syllabus

Vale a pena ler esta notícia do Fratres, sobre Dom Schneider e a proposta de que o Papa escreva “um novo Syllabus”. O Syllabus antigo, vale lembrar, ainda permanece perfeitamente atual; a sua nova versão seria, na proposta do bispo auxiliar de Karaganda, para condenar “os erros de interpretação do Concílio Vaticano II”.

Os erros de interpretação do Concílio Vaticano II – destaque-se. Gosto desta proposta, embora não saiba dizer ao certo nem a real possibilidade de que ela venha a se concretizar, nem os efeitos que ela produziria na crise da Igreja dos dias atuais. Hoje não se dão mais ouvidos ao que fala o Vigário de Cristo; as pessoas preferem eleger os próprios gurus ou colocarem-se a si próprias como juízes dos ensinamentos da Igreja. Um novo Syllabus seria eficaz? Confesso não saber responder esta pergunta.

Há alguns anos, eu brincava com um grupo de amigos exatamente sobre isso. Começamos a redigir os cânones sobre a situação atual do catolicismo, como se fôssemos bispos em um Concílio Ecumênico de illo tempore. Continham coisas como “se alguém disser que a liberdade religiosa exposta na Dignitatis Humanae é a mesma que fora condenada na Mortalium Animos, anathema sit”; “se alguém disser que o colégio dos bispos exerce poder na Igreja contrariamente ao ou mesmo independentemente do Romano Pontífice, anathema sit”. E coisas do tipo. Só lamento que não os tenhamos terminado, seria divertido publicá-los depois. Acho que tenho o péssimo hábito de não levar lá muito a sério as minhas brincadeiras.

Agora, praticamente a mesma proposta é feita por um bispo em um congresso realizado em Roma…! Como eu dizia antes, não sei se tal proposta vai ser posta em prática ou, caso o seja, se vai produzir os resultados esperados. Mas, de qualquer modo, seria bom ver um tal documento. Mesmo que ele caia nos ouvidos surdos de homens de cerviz dura; que se o registre para futura memória. Porque a Verdade convém ser dita. Ainda que se lhe A preguem aos animais, por falta de homens que A queiram ouvir. Ainda que Ela se destine às estantes empoeiradas, para vergonha nossa.

Omnia in Bonum! Disposições sobre a pessoa do fundador da LC

Para ciência, foram publicadas as “disposições sobre a pessoa do fundador da Legião de Cristo” no próprio site da LC. Formaliza-se assim que:

– Nos escritos institucionais, o modo de referir-se ao Pe. Maciel será “fundador da Legião de Cristo e do Regnum Christi” ou simplesmente “Pe. Maciel”.- Confirma-se a disposição que as casas da legião e do Regnum Christi não podem ser colocadas fotografias do fundador onde se encontre sozinho ou com o Papa.

– As datas relativas à sua pessoa (nascimento, batismo, onomástico e ordenação sacerdotal) não se festejam. O aniversário da sua morte, 30 de janeiro, será um dia dedicado especialmente à oração.

– Os escritos pessoais do fundador e suas conferências não estarão à venda nas editoras ou nos centros e obras da Congregação.

– Na cripta do cemitério de Cotija onde descansam os restos mortais da família Maciel Degollado, do Pe. Maciel e de outros legionários de Cristo e membros consagrados do Movimento, se dará o valor que tem toda sepultura cristã como lugar de oração pelo eterno descanso dos defuntos.

– Os centros de retiro em Cotija continuarão oferecendo os mesmos serviços que tem até o presente, mas se estabelecerá ali um lugar para a oração, reparação e expiação.

É doloroso ler isso! Que a Virgem Santíssima possa interceder de modo especial pelos membros da Legião e do Regnum Christi, e que os momentos de lágrimas sejam, sempre, ocasião de se aproximar um pouco mais do Crucificado. Omnia in Bonum.

Ainda o escândalo em Goiás – a resposta da diocese

Já faz algum tempo (foi na semana passada), mas só agora eu vi. Sobre o escândalo da distribuição de preservativos dentro da catedral de Goiás (aqui comentado no início do mês), o senhor bispo diocesano – Dom Eugênio Rixen – emitiu um comunicado pedindo desculpas pelo ocorrido:

Lamento o que aconteceu na Catedral de Goiás no dia 01 de dezembro. A diocese de Goiás quer educar para humanizar a sexualidade, como diz o papa Bento XVI. Os painéis colocados na Catedral neste dia e a distribuição de preservativos em praça pública são contrários às orientações da Igreja. Não é assim que se educa nossa juventude para uma sexualidade responsável.

Reafirmo nossa fidelidade à Igreja e procurarei atuar para que tal iniciativa não se repita.

Se neste dia não estava na cidade é porque tinha um compromisso junto à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em Brasília.

Certamente entre tantas outras, Sua Excelência recebeu esta mensagem de protesto. Faz ela referência a esta outra carta (publicada originalmente no site da paróquia de Sant’Ana), da lavra do revmo. Frei Paulo Sérgio Cantanheide, OP, Pároco da Catedral de Sant’Ana. A carta do frei é absurda e escandalosa, é uma verdadeira piada e um deboche tanto aos seus próprios paroquianos quanto aos demais católicos do mundo. O pároco chega ao cúmulo de, sobre os cartazes incentivando a promiscuidade que foram publicados no interior da catedral, justificar-se alegando não ter inspecionado direito a “ornamentação do ambiente”, “deixando passar despercebida a presença dos referidos cartazes” (!), e ainda se fazendo de vítima. Ora, francamente! O que um sujeito que é incapaz de identificar um cartaz pornográfico abertamente colocado bem diante de seus olhos está fazendo como responsável por uma catedral?

O Fratres in Unum publicou inclusive a foto do “cabido” da catedral da Diocese de Goiás. E pergunta ao senhor bispo que providências serão tomadas. Faço coro: o que será feito, objetivamente, para punir os responsáveis pela profanação e reparar os danos causados por ela? Porque de “lamentos”, Excelência, o Inferno está cheio. Choro, lamentos e ranger de dentes.

“Tem tão poucas pessoas, né?”

– Aqui está o seu refrigerante, querida.

– Rebeca. Meu nome é Rebeca. Pode me chamar de Rebeca.

E sorriu, deixando-me atônito.

Hoje, o círculo de casais do ECC do qual fazem parte os meus pais ofereceu um almoço de Natal para os moradores de rua que freqüentam a Toca de Assis daqui da cidade. Convidaram-me, e lá estive; ajudando-os um pouco a servir os convidados, conversando um pouco com eles. O diálogo acima foi travado entre eu e uma das garotas que estava almoçando. Indelicadeza a minha não lhe ter perguntado o nome! Ela prontamente percebeu, e fez questão de se apresentar: convenção social tão básica – e tão significativa – mas de que nós, às vezes, nos esquecemos. Ela tem um nome e faz questão de ser tratada pelo nome que possui.

É isso que faz dela uma pessoa, e não simplesmente uma “peça” a mais n’algum amontoado impessoal de seres humanos. Imediatamente, percebi que aquele almoço natalino estava muito mais humano do que os nossos almoços executivos feitos durante o trabalho diário, onde muitas vezes não sabemos o nome das pessoas que nos servem em tal ou qual restaurante, mesmo que estejamos acostumados a ir lá com relativa freqüência. Nós não nos importamos; Rebeca se importava. Como é possível que estejamos tão imersos nas futilidades do mundo moderno, que nos esqueçamos até mesmo das mais elementares formas de tratamento humano? As pessoas têm nomes, ainda que nós não demos muito valor para isso; e muito mais importante do que comer simplesmente para satisfazer uma necessidade fisiológica (como – parece-me! – estamos acostumados a fazer) é almoçar com relacionamentos. O que realmente importa não é um fast-food impessoal, e sim uma refeição entre seres humanos. Entre pessoas. Era isso o que aqueles mendigos procuravam lá, na Toca de Assis. Não se tratava simplesmente de comida. Até animais são capazes de comer; mas só seres humanos podem fazer uma refeição. É incrível que tal compreensão exista com tanta clareza precisamente em alguém que está acostumado a passar fome. Para vergonha minha.

Em outro momento, estava eu a admirar o presépio que fora montado na casa. Outro dos convivas me interpelou, perguntando-me se aquilo eram “as primeiras pessoas do mundo”. Olhei-o, incrédulo; como era possível que o sujeito não fosse capaz de reconhecer um presépio tradicional colocado bem na sua frente?! Reis magos, anjo, manjedoura, pastores, Santíssima Virgem e São José, ovelhas, vacas: a cena era a mais clássica possível. Olhei de novo para o presépio e, dele, para o rapaz. Comecei a explicar-lhe que, não, aquilo era uma representação do nascimento do Menino Jesus. Ao que ele redargüiu, com um olhar triste: “mas tem tão poucas pessoas, né?”.

Sim, há tão poucas pessoas…! Comecei a tentar explicar-lhe o porquê do Menino Jesus ter nascido em uma estrebaria. Nem arrisquei falar em “recenseamento”. Disse que eles estavam longe de casa e não havia lugar para eles na hospedaria; imediatamente percebi que “hospedaria” era uma expressão que não lhe fazia muito sentido. Pensei em “estalagem”, e também desisti antes mesmo de falar. Em um esforço de inculturação – ainda que às custas da precisão histórica -, disse-lhe que não havia vagas nos hotéis, que eles não tinham conseguido lugar para ficar e, portanto, tiveram que passar a noite junto aos animais. Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça, como se houvesse entendido.

Será que havia? Arrisquei uma abstração. Disse-lhe que, da mesma forma como havia “tão poucas pessoas” naquela época, naquele presépio, assim também era nos dias de hoje e, no Natal, eram bem poucas as pessoas que se importavam com o nascimento do Menino Jesus. Ele deu um sorriso triste, concordando, e um outro senhor que estava ao lado ouvindo a conversa também aquiesceu: “é mesmo…”. Entenderam. Pedi licença e afastei-me, pensativo.

Como é que eu nunca percebera antes que, nos presépios, há “tão poucas pessoas” quando – é óbvio! – deveria haver multidões encaminhando-se para contemplar o Nascimento do Salvador? Talvez eu esteja muito acostumado a fixar-me na pobreza da estrebaria, na ignomínia do estábulo, no frio da noite; para uma pessoa acostumada a morar nas ruas, no entanto, isso não é o mais chocante no presépio. Isso é o dia a dia. O que torna a cena do nascimento do Menino Jesus triste é o fato de haver “poucas pessoas” lá. E, nisso, é um mendigo quem está coberto de razão, mais uma vez. Porque as pessoas – o calor humano – fazem mais falta do que os confortos materiais, uma vez que as pessoas são mais importantes que os bens materiais.

E o Menino Jesus está para nascer. E passa fome, e passa frio; mas passa também (e principalmente) solidão. Acheguemo-nos a Ele, neste Natal que se avizinha. Preparemo-nos para O receber. Que Ele nasça para nós e na nossa vida. E que nós possamos, com os nossos intentos, comparecer espiritualmente à Manjedoura, aumentando o número de almas a visitar o Menino Jesus; para, assim, tentar – um pouco que seja! – compensar o grande ultraje histórico de se ter permitido serem tão poucos os que visitaram o Filho de Deus quando Ele Se fez carne e nasceu por nós. Que tenhamos todos um Santo Natal.

The Social Network (2010)

[ATENÇÃO! CONTÉM SPOILERS!]

Assisti The Social Network na quarta-feira passada. Gostei bastante do filme. Ontem, conversando com um amigo que encontrei casualmente no aniversário de um amigo em comum, descobri duas coisas interessantes: primeiro, que este meu amigo criara um blog; e, segundo, que ele escrevera precisamente sobre este filme, do qual também havia gostado bastante. Também eu quero tecer algumas rápidas linhas sobre a película, não exaustivas. Desnecessário dizer que recomendo o filme.

O protagonista, Mark Zuckerberg, é um personagem interessantíssimo. Consegue provocar, nos que assistem ao filme, sentimentos tanto de ódio quanto de compaixão. Um gênio, sem dúvidas – mas um gênio extremamente boçal. A maneira como ele trata as pessoas que lhe são próximas chega a irritar os que assistem ao filme – “meu Deus, como ele pode ser tão crápula?”; mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente, a maneira como ele despreza o dinheiro e o poder em benefício das pessoas que ama provoca admiração – “como ele pode ser tão desapegado?”.

Quando li a sinopse do filme, havia entendido que o garoto construíra o Facebook após levar um fora de sua então namorada. Acontece que não é exatamente assim; do início do filme, depreende-se que Mark detém completa e exclusivamente a culpa pelo fim do seu relacionamento. Trata a sua namorada com um ar superior que não se usa nem com o pior inimigo. Frases como “tu irás, comigo, conhecer pessoas que de outra maneira jamais irias conhecer” e “não, fica aqui comigo, tu não precisas estudar, porque estás na Universidade X” (não me recordo o nome dela agora, mas é clara a conotação, no filme, de que se trata de uma universidade de nível inferior) irritam profundamente – e com total razão – a garota. Ela termina com ele, ele a xinga no blog, e tudo parece estar muito certo.

Mas não está porque, a partir daí, a vida de Mark é uma ascenção meteórica, enquanto a menina continua como uma personagem apagada e secundária em toda a trama. No entanto, ela volta e sempre aparece, em diversas passagens do jovem multimilionário que não está disposto, de nenhuma maneira, a desistir dela. Chega a ser cômico! Ele tenta desculpar-se com ela e, dela, só recebe desprezo. Mesmo assim, ele pergunta em um certo momento a Sean Parker (criador do Napster, que o está ajudando com o Facebook) se ele ainda pensa na garota cujo fora o fez criar o Napster (a história de ambos é parecida). Sean nem lembra mais da garota, mas Mark não a esquece. Não importa quanto dinheiro, poder e fama ele obtenha: ele simplesmente não a esquece! É uma interessantíssima maneira de se mostrar o quanto as pessoas valem mais – infinitamente mais – do que dinheiro e poder. A ponto de até um perfeito cretino como Mark Zuckerberg percebê-lo! A mensagem é tanto mais forte quanto maior é o contraste entre a personalidade do criador do Facebook e a sua insistência em fazer as pazes com a antiga namorada.

Tanto que a cena final chega a ser apoteótica: em uma sala vazia, após as diversas audiências judiciais envolvendo os autores de duas ações milionárias contra o Facebook, Mark fica sozinho e liga o computador. Abre o seu Facebook. Procura por Erica Albright (a ex-namorada). Vacila um pouco, mas clica afinal em “add as friend” no seu perfil. Olha para a tela. Aperta F5 (para atualizar, e ver se ela já aceitou o convite). Olha para a tela. Atualiza-a. Olha de novo. Atualiza novamente. E assim, repetidas vezes, termina o filme.

O criador do Facebook, o mais jovem bilionário do mundo, mendigando a atenção da ex-namorada na rede virtual por ele próprio criada! Após perder alguns milhões de dólares nas duas ações movidas contra ele, isto simplesmente não ocupa a sua atenção. Não o preocupa. A única coisa que o incomoda é que ele não conseguiu fazer as pazes com Erica Albright. Ele conseguiu tudo, menos isso, e é exatamente isso que o preocupa e incomoda, é o que torna a sua vida incompleta, é o que ele deseja a todo custo conseguir ainda. O filme não chega a dizer isso, mas eu fiquei imaginando se, caso lhe fosse dado escolher entre o dinheiro e a garota, Mark Zuckerberg não escolheria a garota.

Independente disso, o fato é que – claramente – o dinheiro e o poder exercem menos fascínio sobre o criador do Facebook do que a possibilidade de fazer as pazes com a antiga namorada. Ele até admite perder algum dinheiro, mas a possibilidade de não reatar os laços com Erica Albright é o que, sem dúvidas, o aterroriza verdadeiramente, é o que lhe tira o sentido da vida. Porque ela se apresenta, afinal de contas, como “algo” – melhor dizendo, como alguém – sobre a qual todo o seu dinheiro e poder não têm nenhuma influência. A antiga namorada vale mais do que ser dono do Facebook? O filme mostra que certas coisas não têm preço. E que até mesmo quem está cheio de orgulho, de poder, de fama e de dinheiro é capaz de o perceber e de se incomodar com isso.

Eis uma criatura esmagando a cabeça da serpente

Já passa da meia noite, mas escrevo agora porque só agora cheguei em casa. Para mim, ainda é festa da Imaculada; e Deus, que não vê o tempo, haverá de considerar estas linhas como se fossem escritas no dia d’Ela. Quando eu as queria escrever; para homenagear também eu Aquela que é Tota Pulchra. Aquela sobre a Qual nunca se falou e nem nunca se falará o suficiente, porque as Suas glórias e virtudes são tantas quanto as estrelas do Céu – tot tibi sunt dotes, Virgo, quot sidera caelo, como rezamos na Coroinha.

Todas as graças reunidas em uma só criatura! Assim é a Virgem Mãe de Deus. Assim é Nossa Senhora Imaculada. E quem poderá mensurar o poder de Deus? Quem ousará impôr os limites às graças que Ele, em Sua magnificência, é capaz de conceder às obras de Suas mãos? As estrelas do Céu são uma comparação ínfima para as glórias da Virgem Santíssima. Ela foi coroada com muito mais virtudes do que o Céu foi coroado de estrelas.

Em particular, hoje nós celebramos a Virgem Imaculada – e esta palavra tem um especial significado para nós que, marcados pelo Pecado Original, lutamos diariamente contra as suas terríveis conseqüências em nossa própria carne. Nós somos criaturas profundamente feridas pela triste herança de nossos primeiros pais. A nossa natureza rebela-se contra a nossa vontade, e a nossa inteligência recusa-se a aceitar esta contraditória situação como sendo o modelo estabelecido por Deus para o gênero humano. Temos em nós a sede do Infinito mas, no entanto, esbarramos o tempo inteiro em nossas próprias imperfeições. A festa de hoje é o bálsamo que vem aliviar as nossas feridas. É a prova de que o gênero humano não ficou completamente entregue à maldição da desobediência primeva. A Virgem Santíssima é Imaculada e, n’Ela, nós enxergamos aquilo que nós deveríamos ser. Aquilo que desejamos ser. Aquilo que – mantidas as devidas proporções – nós um dia seremos, com a graça de Deus.

Porque Aquele que foi poderoso o bastante a ponto de preservar Maria Santíssima das nefastas conseqüências do Pecado, é também capaz de delas nos livrar. Pois não foi apenas pela Virgem Santíssima que o Verbo Se fez carne – afinal, o Filho de Maria Imaculada, Nosso Senhor Jesus Cristo, é precisamente Aquele que tira os pecados do mundo. E, se as dores deste vale de Lágrimas onde fomos degredados forem fortes demais para nós, olhemos para a Imaculada Conceição: luz que nos ajuda a perseverar e – ousemos dizer – penhor da nossa salvação.

Porque não foi somente sobre o Deus três vezes Santo que o Pecado não pôde lançar as suas garras. Também a uma criatura ele foi impedido de macular. Os limites que Deus impôs às consequências devastadoras do Pecado não se restringem ao Seu Divino Filho: incluem também a Sua Mãe Santíssima, incluem também a Virgem Imaculada que hoje celebramos, e que temos por Mãe e intercessora! Sim, Deus é mais forte do que o Pecado, e Ele quer salvar os seres humanos e, sim, Ele pode fazê-lo. Eis a prova viva, eis a gloriosa Mãe de Deus sobre a Qual o pecado jamais lançou a mais mínima sombra. Eis uma criatura esmagando a cabeça da serpente: eis Aquela que, sem ser Deus, mas com a Graça d’Ele, foi e é sempre livre de todo o pecado.

Recomendemo-nos à Virgem Imaculada, reconhecendo-nos pecadores. Recomendemo-nos à Sua poderosa intercessão, confiando na misericórdia infinita d’Aquele que soube fazer maravilhas na Virgem Santíssima. Que Ela nos ajude a, um dia, vivermos com Ela a Bem-Aventurança eterna da presença de Deus.