Sobre o Carnaval I: o pecado e a ocasião

[À semelhança do que eu fiz no ano passado (começando aqui), vou escrever novamente uma série de textos sobre o Carnaval.]

No que se refere à Moral Católica, existem algumas coisas tão óbvias que não são sequer discutidas por ninguém que mereça ser levado a sério. Por exemplo – e em se tratando do tema que nos propomos a tratar aqui -, é fora de quaisquer dúvidas que o cristão deve evitar o pecado como deve também evitar a ocasião de pecado. Até mesmo a sabedoria popular já consolidou esta verdade em algumas de suas máximas: todos nós aprendemos, por exemplo, que quem brinca com fogo acaba se queimando. Isto é ponto pacífico; quaisquer subversões a respeito dos Dez Mandamentos, “aggiornamenti” morais ou “novas maneiras” de vida espiritual fogem completamente ao escopo das seguintes páginas. Elas se dirigem àqueles que já sabem que o cultivo das virtudes e a destruição dos vícios são um grave dever para todos os que querem salvar a própria alma. Os que ainda não chegaram a este ponto não percam tempo com os pormenores aqui apresentados.

Dissemos que está pacificada a questão sobre a necessidade imperiosa de se evitar o pecado e suas ocasiões. No entanto, a mesma harmoniosa concórdia que encontramos a respeito destes princípios nem sempre se verifica – mesmo entre bons católicos… – no que se refere às suas aplicações práticas. Hoje começa o Carnaval e, com ele, as (já clássicas) disputas sobre a licitude dessas festas. Este blog vem – mais uma vez – defender que é em princípio possível ser católico e brincar o Carnaval; que a festa não é de modo algum um “pecado em si mesma” e não necessariamente é uma “ocasião de pecado” da qual todas as pessoas têm igualmente o dever de fugir.

A tese de que o Carnaval seja em si um pecado é difícil de ser sustentada, porque para tanto ele precisaria conter entre os seus elementos essenciais coisas que fossem intrinsecamente más. Ora, isto simplesmente não é verdade e é evidente que não é verdade. Sim, as bebedeiras desregradas são más, como maus são os pecados contra a castidade, as blasfêmias, o desrespeito familiar, a nudez e as depravações, as brigas, assaltos e assassinatos, é óbvio, mas nenhuma dessas coisas é elemento constitutivo do Carnaval: elas são acidentais. Seria perfeitamente possível haver um Carnaval sem nada disso, e aliás é extremamente raro que uma única pessoa se depare com todas essas coisas quando sai para pular Carnaval (digamos, seria realmente inusitado que no Domingo de Carnaval o sujeito, seguidamente, batesse no seu pai, pichasse o muro da igreja, tivesse relações sexuais com a esposa do vizinho, se embriagasse, ficasse nu na rua, assaltasse um transeunte e desse um tiro na mulher que gritou “pega ladrão”). Se nenhuma dessas coisas é indispensável à festa, portanto, em princípio a festa poderia ocorrer sem nenhuma delas e, também em princípio, não há nada que impeça o católico de se divertir licitamente durante os dias que antecedem a Quaresma.

Saindo do “a priori” para a realidade factual, alguém pode perfeitamente dizer que na prática a teoria é outra: que praticamente não se encontram festas de Carnaval que não estejam repletas de pecados gravíssimos e que, se é raro alguém cometer todos os pecados possíveis em um único dia da festa, é muito mais raro o sujeito passar pelos quatro dias de folia sem cometer nenhum deles. O discurso muda: trata-se não de um pecado em si, mas de uma evidente situação de pecado que deve ser evitada.

Aqui o discurso peca por generalização indevida: há festas e festas e há pessoas e pessoas. Há festas carnavalescas que ocorrem sem mais pecados do que a média das festas celebradas longe de Fevereiro, como também há pessoas que não pecam no Carnaval mais do que no resto do ano. Depende, portanto. Quanto às ocasiões de pecado, eu concedo facilmente que algumas maneiras de se brincar o Carnaval possam ser ocasião de pecado para algumas pessoas (ou ainda algumas maneiras para todas as pessoas, ou todas as maneiras para algumas pessoas). O que nego, visceralmente, é que todas as maneiras de se aproveitar as festas carnavalescas sejam objetivamente ocasião de pecado próxima (ou mesmo remota) para todas as pessoas. Isto faz toda a diferença. É claro que ninguém deve ir a um desfile de mulheres semi-nuas em danças lúbricas; o que é falso é que todas as festas de carnaval sejam exclusivamente compostas de mulheres semi-nuas dançando lascivamente. É evidente que algumas pessoas têm uma propensão maior ao pecado contra a castidade quando estão em uma multidão: o que é falso é que multidões provoquem indistintamente esta tentação em todas as pessoas. Se algo é ou não é ocasião de pecado, isto é assunto que deve ser avaliado criteriosamente por cada qual diante da sua consciência (e do seu diretor espiritual). O que não dá é para passar uma régua e dizer que tudo é a mesma coisa para todo mundo.

Por fim, mais um comentário. Algumas pessoas gostam de trazer escritos dos santos fulminando o Carnaval; ora, acontece que transformar estes escritos em uma condenação em bloco de toda a diversão “profana” é falsificar o pensamento dos santos e a doutrina da Igreja Católica. Afinal de contas, o próprio Santo Afonso de Ligório – o padroeiro dos moralistas! – diz com todas as letras (o negrito é meu):

Algumas ocasiões consideradas em si não são próximas, mas tornam-se tais, contudo, para uma determinada pessoa que, achando-se em semelhantes circunstâncias, já caiu muitas vezes em pecado em razão de suas más inclinações e hábitos. Portanto, o perigo não é igual nem o mesmo para todos.

Conferir valor universal a frases soltas (e as mais das vezes descontextualizadas), repito, não vai senão provocar graves erros de julgamento. Afinal (e para ficar em um só exemplo), nós podemos ler o próprio Santo Afonso dando este conselho aos pais: “pais de famílias, proibi a vossos filhos a leitura de romances”. Se fôssemos aplicar aqui o mesmo rigor intransigente que os inimigos do Carnaval aplicam a outros escritos, concluiríamos que peca gravemente um pai que, no aniversário do seu filho, presenteia-o com um exemplar de “O Homem que foi Quinta-Feira”. Tal conclusão é incontestavelmente disparatada, e isto nos deveria servir – ao menos! – para nos indicar que devemos olhar com um pouco mais de critério para outros escritos (ainda que dos santos) que nos são apresentados de qualquer modo e cujas alegadas conclusões, no fim das contas, parecem-nos um pouco estranhas demais para serem verdadeiras.

O Carnaval pode, sim, ser ocasião de pecado para algumas pessoas. E estas devem sem dúvidas evitá-lo, como qualquer pessoa está obrigada a evitar qualquer outra coisa que, para ela, seja ocasião de queda – como (p.ex.) conversas frívolas ou bebidas alcóolicas. O que não vale é demonizar em bloco as conversas, o álcool ou as comemorações pré-quaresmais. As pessoas são diferentes e devem ser diferentemente tratadas. Ninguém deveria impôr sobre os demais um fardo maior do que eles precisam carregar.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

43 comentários em “Sobre o Carnaval I: o pecado e a ocasião”

  1. Amigos, salve Maria.

    Apenas para conhecimento: no link abaixo Dr. Plínio Correa, da TFP, fala sobre o carnaval:

    http://www.pliniocorreadeoliveira.info/ENT_19700210_OcarnavalFSP.htm

    Em um determinado momento ele diz o seguinte:

    “(…) O carnaval como ele se passa hoje tem pouco ou nada a ver com o de há 30 anos atrás (esta entrevista foi concedida em 1970). Em outros termos, havia outrora ao par de um carnaval depravado, um CARNAVAL FAMILIAR que se desenrolava em um AMBIENTE DE RECATO E COMPOSTURA, muito difícil de encontrar hoje. O mais das vezes o carnaval de hoje, desenfreando a sensualidade, cria uma atmosfera destrutiva da instituição da família e contrária à verdadeira tradição brasileira”.

    Sandro

  2. Prezados, eu bem sei que podemos festejar sem cair no horror do carnaval de hoje. Mas o ponto é: O Jorge está defendendo que o católico pode participar do carnaval de hoje santamente, mesmo que esteja em meio a tantas ofensas a Deus. Isso é absurdo. Eu sei que ele não está defendendo as imoralidades do Carnaval, mas achar que alguém pode brincar numa boa em meio a essa bagunça toda, compactuando com esses blasfemos, não dá. Eu fico com o santos.

  3. Galera, acontece que não existe “o carnaval de hoje”. O que existem são três dias ao longo dos quais acontecem muitas coisas em muitos lugares – e coisas muito diferentes entre si, que simplesmente não podem ser tratadas de modo igual. Vocês ficam falando como se “o carnaval” fosse um bloco uniforme formado exclusivamente por (citando a primeira referência que achei aqui, mas podia ser qualquer uma) «centenas de pessoas semi-nuas, bêbadas, por gente se agarrando, por adultérios e imoralidades mil»; oras, disso é lógico que ninguém pode participar. O que estou negando é precisamente esta generalização míope de quem, claramente, não sabe sobre o carnaval mais do que dois ou três vídeos de Youtube e cinco ou seis flashes da Rede Globo.

    O que é, afinal de contas, este tal “o carnaval de hoje” que é citado aí a torto ou a direito como se fosse uma hipóstase demoníaca? São as escolas de samba cariocas, os bailes de salão, as troças de frevo e os bonecos gigantes de Olinda, os abadás e trios elétricos de Salvador, os blocos líricos de Recife, a cavalgada do interior de Minas, as surubas de máscaras com os sujeitos fantasiados de ursos “pegando” as mulheres casadas, os papangus de Bezerros, os maracatus de Pernambuco, o quê? Estas coisas são muito diferentes entre si e só guardam em comum o fato de acontecerem em uma mesma época.

    Sim, é óbvio que eu estou defendendo que existem algumas dessas coisas das quais algumas pessoas podem participar santamente. É claramente um desrespeito à Moral Católica e uma total falta de noção da realidade dizer que não existe nada que um católico possa fazer durante o Carnaval a não ser ficar trancado em casa ou num retiro! Francamente.

    Abraços,
    Jorge

  4. Caros, Salve Maria!
    Em tudo se pode tirar algo bom. Até o inferno é bom, porque exprime a justiça de Deus. E o tão falado carnaval multicultural? Em primeiro lugar não se deve analisá-lo à luz do tempo. Esse é um típico defeito da mente conservadora: o passado é melhor do que o presente. Deve-se, no entanto, analisar o carnaval como algo que permita ou não se aproximar de Deus.
    Para ilustrar, lembro de um crônica do Nelson Rodrigues. Diz ele que um dia, no Rio de Janeiro, assitiu a um desfile de corso ainda na infância. Causou espanto a imagem de uma mulher apenas de biquini. Depois a frase: “O biquíni é mais pornográfico que a nudez.” Veja bem. Esse fato foi vivido na primeira metade do século XX, no tempo dos carnavais inocentes…
    Pecado houve em todas as épocas e ocasiões de pecar também. A Igreja não pode acabar um hábito festivo por decreto, mesmo que esse hábito seja mal às almas. É, por seu turno, através da compreensão que se pode transformar com vigor e eficácia a realidade.
    O carnaval é mal porque permite e dá ensejo às ocasiões de pecado. Quem se deixa levar pelo espírito “momesco”, permite-se a liberalidades e excessos que não convém à espiritualidade católica. Há um “quê” para se desregrar os sentidos, seja com marchinhas, derpinas e serpentinas.
    O autor do texto bem que poderia ter ido ao carnaval sem ter que escrever esse laudatório carnavalesco. Pior do que pecar, é fazer os outros pecarem. Não se pode justificar as fantasias querendo aprovação para aplacar a consciência. Uma coisa é gostar, outra é fazer a defesa do gosto justificando com algo de catolicismo.
    Caro escritor de textos, como reparação e penitência, sugiro que você fique 40 dias sem escrever nada no seu blog. Certamente são jejuns que farão bem à sua alma. Às vezes Deus fala pelos pecadores como eu.

  5. Jorge,

    Esses bailes de carnaval que um católico pode participar santamente devem ser hoje tão raros que, na prática, para a maioria de nós, é melhor mesmo ficar em casa, retirar-se para o rancho de um amigo ou fazer um churrasco com a família.

    Obviamente, eu sei de bailes de carnaval infantis que seriam perfeitamente saudáveis, exceto por já irem preparando o espírito das crianças para aceitar mais naturalmente o carnaval adulto.

    Entre os que frequentam carnavais moderados quantos também frequentam carnavais imoderados?

  6. Jorge,

    “Esses bailes de carnaval que um católico pode participar santamente devem ser hoje tão raros que, na prática, para a maioria de nós, é melhor mesmo ficar em casa, retirar-se para o rancho de um amigo ou fazer um churrasco com a família”.

    Taí uma boa sugestão do leitor JB. Eu acrescentaria; sair pra pescar, e porque não ficar em casa rezando para desagravar os sagrados corações de Jesus e Maria. Bem, mas isto não é pra qualquer um não é? E por fim, o último parágrafo do comentário do Antonio é lapidar:

    “O autor do texto bem que poderia ter ido ao carnaval sem ter que escrever esse laudatório carnavalesco. Pior do que pecar, é fazer os outros pecarem. Não se pode justificar as fantasias querendo aprovação para aplacar a consciência. Uma coisa é gostar, outra é fazer a defesa do gosto justificando com algo de catolicismo.
    Caro escritor de textos, como reparação e penitência, sugiro que você fique 40 dias sem escrever nada no seu blog. Certamente são jejuns que farão bem à sua alma. Às vezes Deus fala pelos pecadores como eu.”

  7. Discordo do Jorge quanto ao que seria essencial ao carnaval.

    Um baile de carnaval que não tenha músicas picantes, danças sensuais e moças em trajes diminutos será ainda chamado de “baile de carnaval”? Provavelmente não.

    Abundam por aí (sem trocadilho) inúmeros “carnavais fora de época”. O que esses carnavais fora de época têm em comum com o carnaval-carnaval e que reflete sua essência? É justamente a sensualidade.

    Os envangélicos aqui da terra organizaram um “carnaval com Cristo”. Deve ter sido bom, mas é obvio para qualquer um que aquilo não foi um carnaval de verdade. Por que? Porque justamente lhe faltava a essência do carnaval, a sensualidade.

    Concordo com o Jorge que não precisava ser assim. Mas infelizmente é assim.

    Insistir num “carnaval sem pecado” é como insistir numa “cerveja sem álcool”. Todos sabem que não é cerveja de verdade se não tiver álcool.

  8. Leniéverson,

    Me parece que o ponto negativo veio porque você desejou bom carnaval aos que não vão a retiros…

    Mas é apenas uma hipótese, não leve muito em conta.

  9. “Entre os que frequentam carnavais moderados quantos também frequentam carnavais imoderados?”

    Não sei, mas arriscaria dizer que é uma parte pequena. Se há, simultaneamente, um inocente carnaval infantil com uma bandinha de pau-e-corda e um trio elétrico na avenida com música baiana de pegação geral, parece-me bem razoável acreditar que os públicos de ambas as festas são (pelo menos em sua maioria) distintos.

    A coisa muda de figura se nós considerarmos que as festas totalmente inocentes são raras como também são raras as festas totalmente depravadas, sendo a maior parte delas composta por gente que está se comportando bem e gente que está se comportando mal. Quantas pessoas que se comportam bem hoje não se comportarão mal amanhã? Aí eu já diria que, infelizmente, é a maior parte.

    Mas já que você quer colocar no meio da conta os que já estão predispostos a pecar, eu diria que a pergunta que interessa é: e se houvesse menos pessoas se comportando bem (i.e., se os cristãos fossem universalmente instruídos a ficarem em casa, se o carnaval fosse definido como uma imoralidade do qual o pecado é apanágio, etc.), os que resolvessem ir para a avenida iriam se comportar melhor ou pior?

    “Abundam por aí (sem trocadilho) inúmeros “carnavais fora de época”. O que esses carnavais fora de época têm em comum com o carnaval-carnaval e que reflete sua essência? É justamente a sensualidade.”

    Eu não estou certo de que esta definição esteja boa. Afinal de contas, há muito mais sensualidade em um baile funk, numa casa de swing ou numa rave do que no próprio carnaval, e nem por isso essas coisas são chamadas de, sei lá, “carnavais fechados”. Para mim, o que faz um “carnaval fora de época” é ele ser realizado a) em vias públicas; e b) com as manifestações musicais culturalmente típicas do carnaval-carnaval (e, p.ex., uma “micareta” tem axé e trios elétricos e as prévias de Olinda têm troças de frevo e de maracatu).

    No entanto, ainda aceitando a definição, isto só muda a questão linguística. A nos guiar por ela, então, teríamos os três dias após os quais começa a Quaresma e durante os quais acontecem, lado-a-lado, o carnaval e outras manifestações culturais (p.ex., papangus ou cavalgadas) distintas do carnaval.

    Abraços,
    Jorge

  10. Opinião com a qual todos os meus textos concordam perfeitamente.

    – Jorge

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