Marco Civil: censura da internet?

Com a devida vênia, eu só cético quanto à idéia de que o Marco Civil da Internet (PL 2126/2011) vá atentar contra a nossa liberdade de expressão. A tese vem ganhando destaque nos últimos dias por conta da iminente votação do projeto na Câmara, mas eu sinceramente não consigo ver os problemas que vêm sido apontados. Trago o tema à baila mais para esclarecimentos e debates do que para subscrever o que se vem dizendo sobre o assunto.

O estopim, parece-me, foi o texto do Elio Gaspari na Folha de São Paulo no último dia 11 de novembro. Lá o articulista diz que este «[é] o arcabouço do qual saiu o modelo chinês. A internet é livre, desde que cumpra as normas de serviço, portarias e regulamentos do governo». Certamente eu concordo que estas generalidades em textos legais podem dar brechas a aberrações futuras, mas o ponto aqui é que a gente não está muito melhor sem o Marco Civil do que com ele. Alega-se que uma portaria futura pode censurar tal ou qual site de acordo com interesses do governo, e eu concedo; mas qual mecanismo impede que isso seja feito diretamente, sem PL 2126 nem nada? Ou, em outras palavras, por que para o Governo é mais fácil censurar a internet depois do Marco Civil do que antes dele?

A questão da responsabilidade dos provedores (art. 14-16) mais os alivia do que onera. Atualmente, a Justiça Brasileira condena o Google por conta de coisas que terceiros publicaram no Orkut, o que é francamente absurdo; o Marco Civil, ao contrário, diz que os provedores de aplicações só poderão ser responsabilizados se não retirarem o conteúdo danoso do ar após ordem judicial específica. E, no exemplo do Elio Gaspari [O soldado Bradley Manning rouba 750 mil documentos secretos do governo americano, transmite-os para o site WikiLeaks por meio de um sistema impossível de ser rastreado (ele só foi descoberto porque contou sua proeza) e um juiz de Mato Grosso manda o Google esterilizar o link. Se não o fizer, pagará uma multa e seu gerente poderá ser preso.], a coisa se resolve simplesmente replicando o conteúdo censurado em outro link, mecanismo orgânico de divulgação de informação inerente à internet e que a própria comunidade de usuários se encarrega de fazer. Ou acaso alguém conseguiu tirar o conteúdo do WikiLeaks do ar? Ou porventura as pessoas deixaram de baixar vídeo pirata depois que censuraram o Megaupload?

Os sites de tecnologia têm se manifestado de modo positivo sobre o Marco Civil. E algumas denúncias que pululam por aí são simplesmente falsas. P.ex., este site “Contra o Marco Civil da Internet” diz, em sua página principal, que o projeto de lei pretende criar “registros preventivos de toda movimentação na internet brasileira” – as aspas são de lá. Ora, primeiro que isto não está no texto do projeto de lei e, segundo, que é completamente impossível: “toda movimentação na internet” é uma quantidade de dados gigantesca o suficiente para que seu registro seja absolutamente inexequível, por limitações técnicas (de armazenamento e processamento) simplesmente incontornáveis.

Eu não acredito em censura na internet: isto não funciona nem em Cuba e na China. Acho que a discussão é válida e é sadio que as pessoas demonstrem esta preocupação, mas honestamente eu não vejo nenhuma ameaça real no Marco Civil. Não me parece que a internet se tornará um lugar pior com a sua aprovação. Julgo ser sábio distinguir as ameaças verdadeiras das falsas, ou – concedamos – as atuais e concretas das potenciais e futuras. E, diante de cada uma delas, é mister reagir-lhe proporcionalmente.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

8 comentários em “Marco Civil: censura da internet?”

  1. Jorge, não entendi aonde você quis chegar com o exemplo do Elio Gaspari. Talvez eu só tenha conseguido ler muito ligeiramente. Você pode mastigar a expressão de sua opinião mais um pouquinho?

  2. Alexandre, é simples. O Governo não tem como censurar conteúdo genérico, e sim somente entradas específicas.

    Então se alguém põe (digamos) no Facebook um documento vazado pelo WikiLeaks, o Judiciário pode solicitar a retirada daquele post específico. Até que consiga, mil pessoas já copiaram o documento.

    Daí, quando ele conseguir a retirada daquele post, o mesmo conteúdo já está em outras cem postagens do Facebook, no G1, no Twitter e em cinco sites.

    Pode até ser que a primeira decisão valha para qualquer republicação no Facebook, mas certamente não vale para outros sites. A cada nova decisão que o Judiciário conseguir, algumas dezenas de blogs gratuitos republicam o conteúdo. É uma Hidra de Lerna cibernética, onde cada cabeça cortada faz nascer diversas outras.

    Isto é o que já acontece no mundo. O FBI fecha o megaupload, e aí surgem dezenas de outros serviços disponibilizando vídeo para download. É simplesmente impossível censurar tudo e, portanto, este temor é desnecessário.

    Abraços,
    Jorge

  3. Jorge, um site que se mostra contra o Marco Civil argumentou que uma possível sequência de fatos seria:

    • O legislativo aprova uma lei fundamental “inofensiva” (Marco Civil);
    • O executivo escreve a regulamentação ideológica que lhe aprouver, usando até mesmo o recurso de medidas provisórias;
    • O judiciário fornece uma pletora juízes “alinhados” e que com medidas cautelares ou até mesmo sentenças vão retirando os sites indesejados do ar. (Ah! já ia me esquecendo da militância do Ministério Público…).

    O que você acha?

  4. Diego, eu acho que não tem como evitar o segundo e o terceiro pontos. De que maneira o Marco Civil poderia ser escrito de modo a proibir ulteriores desdobramentos totalitários?

    Mas o que eu estou dizendo é que, ainda que haja juízes alinhados com a ideologia revolucionária (e os há), mesmo assim é impossível calar a internet. Tiram um site do ar? A gente abre outro. Hoje em dia se faz um blog gratuito em cinco minutos. E certamente o aparato judiciário não consegue acompanhar este ritmo.

    Ninguém consegue acabar com a pirataria, com o comércio ilegal ou com a pedofilia na internet! E contra isto se faz guerra ostensiva. É totalmente impossível que se consiga silenciar (por debaixo dos panos) as vozes dissonantes no campo cultural.

  5. Mas Jorge, como explicar a perseguição em Cuba, que é um país pequeno, e na China, que é uma nação continental? Mesmo com seu tamanho o país comunista controla a internet, inclusive proibindo o google e, portanto, seus serviços de criação de páginas. Por outro lado, conheço seminaristas chineses, que estudam por aqui, e eles descrevem a vida cristã na China com cores inacreditáveis, não havendo espaço para divergência aberta em qualquer nível da vida social, inclusive na internet. Você acha mesmo que nossa legislação não é já suficiente para combater os crimes cibernéticos?

  6. Robson, a perseguição em Cuba e na China é de outra natureza: tem a ver mais com a identificação de dissidentes políticos do que com a censura na internet. A menos que se controle o Google (e o Bing, e todos os outros sistemas de buscas – e mesmo assim você não impede o tráfego direto) é impossível censurar. As coisas se multiplicam organicamente com uma velocidade que foge, estruturalmente, por definição, à capacidade de atuação de quaisquer aparatos burocráticos.

    E o projeto do Marco Civil está muito longe de sequer insinuar um controle do Google. Para fazê-lo, é necessário um golpe legal tão grande que, caso ele se apresentasse, a existência ou não do Marco Civil seria totalmente irrelevante. Não dá pra controlar o Google “por debaixo dos panos”, tem que ser ostensivo.

    A nossa legislação não proíbe [proibia] crimes internéticos. Por incrível que pareça, ela só foi tipificar coisas como invasão de computadores ou roubo de dados de cartão de crédito ontem:

    http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2012-12-03/dilma-sanciona-leis-que-tornam-crime-invadir-computadores-e-clonar-cartoes.html

    E o Marco Civil se propõe a tratar outros problemas. Por exemplo, o Google é responsável por conteúdo postados por terceiros, sim ou não? A nossa legislação não diz. E já teve caso de juiz mandando o Google tirar o Youtube do ar (!):

    http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/eleicoes/2012/noticia/2012/09/juiz-revoga-determinacao-de-retirar-youtube-do-ar-em-ms.html

    Também por exemplo, os provedores de internet hoje podem tratar diferentemente pacotes distintos. P.ex., a GVT pode diminuir a velocidade de transferência de um vídeo muito acessado do Youtube para salvar a sua largura de banda (e aí este vídeo carrega mais lento do que outro site). Com o Marco Civil, ela deixa de poder fazer isso. Tem uma série de outras questões sobre o assunto (é razoável que pacotes VOIP tenham precedência sobre email, p.ex.), mas o negócio me parece sinceramente muito mais razoável do que maquiavélico.

  7. Jorge, você parece estar esquecendo que são os bandidos aqueles que tem tais desenvolturas. Eles não tem “compromissos lógico-morais”!

  8. Sim, Alexandre, mas a gente tá discutindo legislação positiva e não ética individual…

    Hoje, os provedores de internet *reduzem* a velocidade de transferência de certos pacotes (vídeos, p.ex.), isto é fato. Fazem-no alegando questões técnicas (se tem muita gente usando vídeo, a largura de banda vai-se embora e os usuários não conseguem acessar conteúdo normal), mas fazem. Com o Marco Civil, vão deixar de poder fazer. Eu considero isso positivo, e de quebra ainda tem a vantagem de proibir que se faça esta seletividade de pacotes por motivos menos nobres.

    Se eles vão fazer assim mesmo é outra questão, que passa ao largo do debate sobre o presente projeto de lei.

    Abraços,
    Jorge

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