Também é orgulho ser sozinho

Um dos conselhos mais importantes de São Paulo no Novo Testamento é aquele “quem julga estar de pé, cuide para que não caia” que encontramos na primeira carta aos Coríntios. Não obstante, e infelizmente, sempre se encontrou na história da Igreja quem fizesse pouco caso dessa tão fundamental exortação, o que já levou muitas almas à mais terrível ruína.

São Luís de Montfort lamenta n’algum lugar do Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem os tantos cedros do Líbano que já caíram miseravelmente por terra devido à imprudência de se julgarem auto-suficientes. Não é sem razão que a espiritualidade católica sempre insistiu na importância de combater não apenas os pecados externos, mas também (e principalmente) os internos, dentre os quais o orgulho ocupa um lugar de infeliz proeminência. Enganar-nos-íamos se pensássemos que este vício anda sempre lado-a-lado com a arrogância manifesta! O orgulho é primariamente interior. Pode perfeitamente reinar no coração de um homem e, ao mesmo tempo, passar despercebido de todos os que convivem com ele.

Decerto não era nisso que pensava a Florbela Espanca quando o escreveu, mas há muita sabedoria naquele seu verso que diz “[q]ue também é orgulho ser sozinha”. A idéia de que somos mais especiais de que os nossos irmãos é sedutora, mas é terrivelmente falsa. A concepção de que podemos fazer alguma coisa de grande por nós mesmo é enganadora – e quantos não caem neste canto-de-sereia! A vaidade de desbravarmos o nosso próprio caminho nesta vida, desprezando a caminhada dos que nos são próximos, já conduziu muitas almas para o abismo.

Aqui é preciso tomarmos cuidado para não cairmos em engano; sem dúvidas cada pessoa tem o direito e até mesmo o dever de escrever a própria história, e o insubstituível protagonismo de cada um na sua própria salvação é uma necessidade que não nos convém nunca esquecer. Não obstante, por meio de um desses aparentes paradoxos que perfazem a complexidade humana, a nossa dimensão individual é inseparável da comunitária e, se é verdade que temos o dever de trilhar o nosso próprio caminho, não é menos verdade que ele deve estar inserido na teia de relacionamentos que o Altíssimo teceu para a nossa existência.

De modo particular, a nossa salvação – individual – passa necessariamente por aquela comunidade de fiéis que Deus estabeleceu no mundo para conduzir os homens à Bem-Aventurança Eterna; passa, necessariamente, pela Igreja de Cristo. Rejeitar a companhia daquelas almas ao lado das quais a Divina Providência determinou que caminhássemos neste Vale de Lágrimas, longe de ser um sadio protagonismo próprio das grandes almas, é orgulho mesquinho que se revela um horrendo sinal de perdição. Querer construir por conta própria um caminho que conduza aos Céus é loucura e, na verdade, é somente a velha tentação original apresentada sob uma nova roupagem. O verdadeiro e legítimo protagonismo que precisamos assumir é o de conferir as marcas da nossa individualidade ao caminho que Nosso Senhor Jesus Cristo já abriu para nós, e não o de buscar por conta própria um outro caminho para o Céu. A Igreja não é uma estrada para o Paraíso ao lado de tantas outras, muito pelo contrário: é o terreno seguro somente dentro do qual é possível ao ser humano abrir o seu caminho para Deus. Podemos ensaiar os nossos próprios passos sim, e temos total liberdade para fazê-los da nossa própria maneira – mas somente dentro do palco que Deus preparou para que fosse possível haver dança. Esforcemo-nos, sim, para salvar a nossa alma, e o façamos com todas as particularidades que nos são próprias; mas somente dentro da Igreja, criada por Deus para que pudesse existir salvação no mundo.

Eu pensava nessas coisas quando li aquela triste notícia segundo a qual Magdi Cristiano Allam, ex-muçulmano batizado por Bento XVI, anunciou ter deixado a Igreja Católica. Eu me lembro do seu Batismo, em uma vigília de Páscoa, no coração do Vaticano, diante de todas as câmeras do mundo; lembro-me de como fiquei feliz com o ex-muçulmano, cujo batismo no Sábado de Aleluia parecia uma resposta a uma das Grandes Orações da véspera. Lembro-me de que – insensato! – pensei que, este, a Igreja não haveria de perder, pois se convertera já na idade adulta e após experimentar os falsos credos, e estas conversões soem ser mais profundas e definitivas.

Infeliz de mim, que estava rotundamente engando! O converso abandonou a Igreja. Por que o fez? Por conta daquilo que ele chamou de “relativismo religioso” e, particularmente, pela suposta legitimação do Islam como verdadeira religião por parte da Igreja Católica. Aqui as coisas começam a ficar mais claras. É óbvio que o Islamismo não é “verdadeira religião”, porque a única religião verdadeira é aquela fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e Homem Verdadeiro. É óbvio que a Igreja jamais “legitimou” o Islam e nem o poderia fazer jamais, porque isso seria trair a Si mesma. Então, do que é exatamente que Magdi Allam está reclamando?

Arriscamos uma resposta. O que o incomoda é a – na visão dele – leniência da Igreja em enfrentar o Islam, o que lhe tira a paz é perceber que a Igreja não combate o islamismo com o denodo que ele julga necessário. Em uma palavra, o seu problema, aparentemente, é um só: a sua conversão à Igreja em 2008 parece ter sido mais para lutar contra Maomé do que para fazer-se discípulo de Cristo. Mais por ódio ao Corão do que por amor a Cruz. E o ódio, embora pareça mais intenso, é também mais inconstante e menos duradouro: o simples ódio a alguma coisa é incapaz de garantir a regularidade devotada que o Cristianismo exige como caminho de vida.

E essa história triste, na verdade, nos deixa ao menos uma preciosa lição: ninguém deve se converter à Igreja por ser contra o islamismo ou o protestantismo, o relativismo ou o esquerdismo, o feminismo ou o homossexualismo, a degeneração moral ou a crise de valores, nada. Vou até mais além: ninguém deve nem mesmo converter-se à Igreja porque os Seus ensinamentos são corretos. Na verdade, deve-se ser católico por uma única e simples razão: para salvar a própria alma, uma vez que sozinho ninguém é capaz de a salvar. Outra espécie de amor à Igreja que não esteja radicado em Cristo, que não seja amor a Cristo por Aquilo que Ele é em Si mesmo, não é amor verdadeiro à Igreja. Semelhante “conversão” (que eu nem sei se se pode chamar assim) não é aquela casa do homem prudente edificada sobre a rocha da qual nos fala o Evangelho. Ao contrário, é frágil construção edificada sobre a areia, cujos alicerces cedo ou tarde irão abaixo por conta das intempéries da natureza – e grande será a ruína de quem fez ali a sua morada.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

74 comentários em “Também é orgulho ser sozinho”

  1. Alexandre, penso eu que não está, a Tradição é fomentada pela Igreja ao longo de séculos e séculos, porque toda tradição eclesiástica encerra um conceito ou mais propriamente a doutrina católica. Trocar o tapa pelo beijo é negar a tradição, é como se dissesse algo do tipo: “nós aceitamos o evangelho do amorrrrrrrrr, e não este romanismo que prega um Cristo opressor. Vamos dialogar com nossos irmãos”!.

    Por fim, Judas traiu Cristo com um beijo, o mesmo que Bergoglio dá em seus crismandos. Porque ele é o grande judas do século XXI, amigos dos maçons, e quem é amigo de maçom é inimigo de Cristo.

    Você é amigo dos maçons, perdoe-me perguntar?

  2. Sandro, rejeito a maçonaria. Isso é suficiente. Contudo, lembro-me agora de que tenho sim um laço de amizade com um maçom. Não somos tão próximos. Nos vemos com intervalos de anos, talvez. Tenho a impressão de que ele é apenas alguém que fora atraído pelo que “parece” bom, superficialmente, na maçonaria.

    Parece muito que você está forçando a barra, com essa estória de tapas e beijos.

  3. Alexandre, salve Maria.

    Não, você não é amigo de maçons, porque de acordo com São Tomás amigos são aqueles que desejam as mesmas coisas e que não desejam as mesmas coisas.

    O que você pode ter com esta pessoa é uma relação humana, mas não amizade. Afinal, nós estamos no mundo e não fora dele. Não tem como não amarmos estas pessoas, mas é impossível sermos amigos delas, no sentido católico.

    É isso. Deus em breve unirá a todos. Este Francisco é um fraticeli escandaloso, em breve até você constatará. Amigo dos maçons e dos judeus, que deveria estar combatendo. E sem tréguas, realce-se.

    Abraços,

    Sandro

  4. Renato, eu não duvidei que existe a prática. Penso já ter visto, ou eu mesmo ter recebido um. Não lembro, pode ser falsa memória. Perguntei apenas se obrigatório, se é rubrica no Missal.

  5. Renato, salve Maria.

    Pelo amorde Deus, meu amigo: não diga jamais “rito extraordinário” para designar a missa de sempre. Tal expressão foi cunhada pelo demônio por meio de seus intrumentos humanos e não pode ser repetida por um católico sem ofender a Deus e a ouvidos pios.

    Cordialmente,

    Sandro

  6. formam extraordinariam Liturgiae Ecclesiae“, na Summorum Pontificum.

    “O Sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano editado pelo beato João 23 em 1962 e nunca anulado”: Forma Extraordinária da Liturgia da Igreja.

  7. A expressão “Rito Extraordinário” parece-me inapropriada, realmente. Por outro lado, Bento XVI usou — se não cunhou — a expressão “Forma Extraordinária da Liturgia da Igreja”. Parece que também “forma extraordinária do rito romano”, não tenho certeza.

    Se você é sedevacantista, por favor não fique a confundir quem quer pertencer ao Corpo Místico de Cristo.

  8. Renato e Alexandre, salve Maria.

    Em primeiro lugar, parabéns a você, Renato, pelo reconhecimento do erro.

    A você, Alexandre, digo que não sou “sedevacantista”, e sim católico, apostólico romano. Por isso mesmo não creio que demônios possam ser papas e nem que papas que sempre são iluminados pelo Espírito Santo quando versam sobre doutrina possam promulgar um concílio como o Vaticano II, pois ensinou Pio VI que a ambiguidade “de nenhum modo deve ser praticado num Sínodo,cujo primeiro mérito deve consistir no adotar no ensino uma espressão de tal modo clara e límpida que não deixe espaço ao perigo de controvérsias”. Veja a citação completa:

    “Eles [os Papas nossos predecessores, os Bispos, e certos Concílios Gerais] conheciam bem a arte maliciosa própria dos inovadores, os quais, temendo ofender os ouvidos dos católicos, se esforçam por encobrir sob fraudulentos jogos de palavras os laços das suas astúcias, a fim de que o erro, escondido entre sentido e sentido (São Leão Magno., Carta 129 da edição Baller), se insinue mais facilmente nos espíritos e aconteça que — alterada a verdade da sentença por meio de um curtíssimo acréscimo ou variante — o testemunho que devia dar a salvação, em conseqüência de uma sutil modificação, conduza à morte. Se esta indesejável e falaz maneira de dissertar é viciosa em qualquer manifestação oratória, de nenhum modo deve ser praticado num Sínodo,cujo primeiro mérito deve consistir no adotar no ensino uma expressão de tal modo clara e límpida que não deixe espaço ao perigo de controvérsias.

    Porém, se no falar se engana, não se pode admitir aquela subdola defesa que se costuma aduzir e pela qual, quando tenha sido dita alguma expressão dura demais, se se encontra a mesma explicada mais claramente em outra passagem, ou ainda corrigida, como se esta desenfreada licença de afirmar e de negar a bel prazer, que sempre foi uma fraudulenta astúcia dos inovadores como cobertura do erro, não tivesse que valer antes para denunciar o erro mais do que para justificá-lo: como se às pessoas particularmente despreparadas a afrontar casualmente esta ou aquela parte de um Sínodo exposto a todos em língua vulgar estivessem sempre presentes as outras passagens a contrapor, e que ao confrontá-las cada um dispusesse de tal preparo a reconduzi-las sozinho, a tal ponto de evitar qualquer perigo de engano que eles difundem erroneamente.

    É danosíssima esta habilidade de insinuar o erro que Nosso Predecessor Celestino (São Celestino, Carta 13, n. 2, in Coust) descobriu nas cartas do Bispo Nestório de Constantinopla e condenou com duríssimo apelo. O impostor, descoberto, repreendido e alcançado por tais cartas, com o seu incoerente multilóquio envolvia o verdadeiro com o obscuro e, confundindo de novo uma coisa com outra, confessava aquilo que havia negado ou se esforçava em negar aquilo que tinha confessado.

    Contra tais insídias, apesar de tudo renovadas em toda época, não foi colocada obra melhor em ação do que aquela de expor as sentenças que sob o véu da ambigüidade envolvem uma perigosa discrepância de sentidos, assinalando o perverso significado sob o qual se acha o erro que a Doutrina Católica condena” (Pio VI, Bula Auctorem Fidei).

    Ou seja, se associarmos esta condenação de Pio VI a confissão recente de Kasper (que apenas repetiu aquilo que foi dito por Schillebeeckx), demonstramos racionalmente que a fé católica ensina que, ainda que o Vaticano II não tenha ensinado propriamente nenhuma heresia explícita, tal concílio já é condenado pela Igreja Católica. Pois ele é algo que a Igreja não permite que um sínodo católico seja, e muito menos um concílio ecumenico.

    Cordialmente,

    Sandro de Pontes

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