Outro Papa escreve a outro ateu

À semelhança do que o Papa Francisco fez recentemente, Bento XVI também escreveu uma carta a um ateu italiano. Piergiorgio Odifreddi é matemático e escreveu um livro – Caro Papa, ti scrivo – onde expõe as suas opiniões no formato de uma missiva ao Bispo de Roma que, hoje emérito, dignou-se dirigir-lhe uma resposta. A íntegra da carta assinada por Bento XVI tem 11 páginas, algumas das quais foram publicadas pelo La Repubblica. O Marcio Campos traduziu-lhe alguns trechos e os colocou no Tubo de Ensaio. Destaco somente um:

[S]e o senhor quer substituir Deus com “a Natureza”, fica uma questão: quem, ou o que é essa Natureza. O senhor não a define em nenhum ponto; ela aparece, então, como uma divindade irracional que não explica nada. Queria, então, acima de tudo deixar claro que na sua religião da Matemática ficam de fora três temas fundamentais da existência humana: a liberdade, o amor e o mal. Eu me surpreendo com o fato de o senhor, em uma única tacada, destruir a liberdade, que foi e é um valor fundamental da época moderna. O amor, em seu livro, não aparece; e mesmo sobre o mal não há nenhuma informação. Independentemente do que as neurociências digam ou deixem de dizer sobre a liberdade, no drama real de nossa história ela está presente como realidade determinante, e deve ser levada em consideração. Mas a sua religião matemática não conhece informação alguma sobre o mal. Uma religião que despreze essas perguntas fundamentais se esvazia.

E, como eu já tive a oportunidade de dizer outras vezes no Deus lo Vult! [p.ex. aqui], simplesmente dizer que não há causas ou atribuí-las a entes indefinidos (a “Natureza”, o “Acaso”, etc.) não é explicar rigorosamente nada. É na verdade o contrário mesmo de uma explicação: é um atestado de ignorância, é se esquivar a enfrentar as perguntas para as quais, por vias complementares, Filosofia e Religião sempre se empenharam em buscar respostas. Que certas pessoas imaginem poder calar dúvidas históricas do ser humano à força de repetir «não sei» é um evidente indício de decrepitude da razão, e não de florescimento intelectual.

Mas o mais engraçado dessa história é a genial perspicácia da nossa classe jornalística, rasa como um pires barato. A foto abaixo é a abordagem que o recifense Jornal do Commercio fez hoje sobre o assunto:

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Não vou nem mencionar a obviedade estampada na manchete (raios, o que eles esperavam que o Papa dissesse?!). Destaco o seguinte trecho, já no penúltimo parágrafo: «os textos [a carta anterior do Papa Francisco e esta agora de Bento XVI] mostram que o papa e o papa emérito têm a mesma opinião sobre determinados assuntos e alimentam especulações de que estejam trabalhando em conjunto».

Em nenhum momento parece ter passado pela cabeça do autor deste período que a «opinião» de ambos sobre Deus e o ateísmo é a mesma porque, ora bolas, todos os dois são católicos. O fato de ambos seguirem uma mesma religião parece não ser suficiente para explicar o curiosíssimo fato de todos os dois pensarem a mesma coisa a respeito do ateísmo. Ao invés disso, a opinião mais provável, a dar crédito ao Jornal do Commercio, é que os dois Papas «estejam trabalhando em conjunto»!

Eis o “senso crítico” que a mídia anda formando. A expressão não poderia ser mais exata: o senso adquirido por quem se acostuma a ler essas coisas é «crítico» como o estado de quem se encontra com uma doença terminal. Talvez já tenha até morrido há muito tempo e ainda não saiba. Que tempos…!

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

3 comentários em “Outro Papa escreve a outro ateu”

  1. Prezado Jorge, boa tarde!

    Fiquei com grande vontade de ler a carta inteira, Bento XVI é um dos melhores escritores da atualidade, senão o melhor. Pesquisando pela internet, infelizmente só encontramos até o momento trechos, baseados em uma reportagem do “La Repubblica”. Ora, mas se esse jornal italiano publicou os trechos que julgou mais interessantes, dos quais alguns são traduzidos (temos portanto parte da parte que o La Repubblica publicou), conclui-se que trata-se de uma carta aberta, os trechos divulgados foram escolhidos pelo jornal, não pelo Papa Emérito. Suponho, portanto, que a carta inteira esteja disponível em algum lugar. Se alguém encontrá-la, faria um grande bem em divulgar, de preferência, se possível, em português.

  2. Caro Leitor do Blog,

    O que D. Demérito fala não se escreve :)

    Por exemplo, o que ele fala sobre os ortodoxos – «A reaproximação com os ortodoxos está mais que madura para se chegar à unidade dos cristãos» – estão tão distante, mas TÃO DISTANTE da realidade, que só posso pensar que se trata de alguma patologia mental grave. Imaginar que existe alguma possibilidade do Patriarca de Moscow ter interesse em se unir ao Ocidente decadente é um atestado de loucura. Ainda há muita coisa a se arrumar dentro de casa antes que se possa propor uma união com cismáticos sérios.

    Temos que esperar e rezar – muito – pelo Papa Francisco.

    Abraços,
    Jorge

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