Plebiscito sobre união gay?

“Comissão de Feliciano aprova projeto de plebiscito sobre união civil gay”, dizem. A forma escolhida para passar a notícia carrega já na manchete uma dose grotesca de ideologia.

Antes de mais nada, a comissão não é “de Feliciano”. É uma comissão permanente da Câmara dos Deputados que não foi inventada pelo pastor e nem pela dita “bancada evangélica”. Está no Regimento Interno da Câmara. Ainda, presidente de comissão não é “dono” dela. A frase faz tanto sentido quanto dizer, por exemplo, “Câmara de Henrique Alves”, uma vez que o deputado do PMDB é o atual presidente da Câmara dos Deputados.

O projeto de plebiscito tampouco é da autoria do Marco Feliciano ou mesmo do seu partido. O PDC 232/2011 é do deputado Zacharow, do PMDB do Paraná. Foi recebido pela CDHM no dia 14/06/2011, há mais de dois anos portanto, quando o deputado Feliciano sequer sonhava em ser presidente da Comissão.

Certo, o PDC 521/11 – apensado ao 232 – é da autoria do Marco Feliciano, mas (insista-se) foi proposto em novembro de 2011, quando o deputado não era presidente da CDHM e quando o 232/2011 já estava há meses nesta comissão. O projeto apensado é na verdade totalmente irrelevante aqui, uma vez que nada acrescenta ao que está em tramitação ordinária. Portanto, o que existe aqui é meramente uma tentativa retórica de desqualificar a priori a proposta, associando-a ao fundamentalismo evangélico. Não se trata de jornalismo informativo, e sim de guerrilha cultural disfarçada de boa imprensa. Tal não se pode perder de vista.

Isto posto, dois breves comentários sobre o mérito do projeto. Há dois aspectos sobre os quais ele pode ser analisado.

Primeiro, por princípio, trata-se de uma proposta absurda para qualquer um dos dois lados em litígio. Os que defendem que “Família” é uma realidade que não é passível de ser (re)inventada pelo direito positivo negam-se também, é óbvio, a aceitar que a sua destruição possa ser referendada via democracia direta. O povo não tem potestade para dizer que dois pederastas ou duas safistas são uma família, e não o tem nem por intermédio dos seus representantes e nem diretamente. Aqui, a forma de exercício da democracia (direta ou indireta) em rigorosamente nada altera os seus limites intrínsecos.

Depois, os que defendem que se trata de fazer justiça a uma minoria socialmente oprimida também não podem aceitar que o assunto seja levado a júri popular, uma vez que o próprio fato de se tratar de uma “minoria socialmente oprimida” implica em dizer que a maioria da população não é sensível aos seus anseios.

[E estariam cobertos de razão, registre-se, se este caso fosse de direitos de minorias. No entanto, é precisamente isso o que nós negamos. É isto o que deve ser discutido com honestidade, e não brandido ad baculum como se se tratasse de uma platitude auto-evidente.]

Segundo, para fins práticos, parece-me que um resultado não-manipulado deste plebiscito seria grandemente favorável aos defensores da Família. A maior parte da população brasileira, que ainda é conservadora, rejeitaria enfaticamente, penso, esta nefasta equiparação entre a união homossexual e a Família radicada na natureza humana. O que seria muito bom para o Brasil.

O problema é que esta seria uma vitória meramente parcial e contingente, obtida sobre falsas bases (é errado dizer que dois marmanjos são uma família não porque o povo “acha” que não é, e sim porque “Família” é uma entidade que contém em si mesma a potencialidade para a geração e educação de novos membros para a sociedade) e permanentemente periclitante (e quando o povo “mudar de idéia”? Qual deve ser o prazo de validade de uma consulta popular dessa natureza?). No entanto, nas atuais conjunturas, talvez seja o melhor que nós possamos ter. Talvez seja a nossa melhor oportunidade para rompermos a cortina de desinformação sobre o tema. Talvez seja a nossa melhor chance de esclarecermos – em igualdade de condições – a população sobre este assunto tão importante para a sobrevivência da civilização. E, por tudo isso, talvez não devamos ser tão ligeiros em rejeitar a proposta.

É Advento: preparemos o nosso Natal

É Advento. O ano-novo litúrgico iniciou-se ontem, com as nossas igrejas revestidas de roxo, com o povo de Deus em solene expectativa pelo nascimento do Messias. Já tremeluz a primeira chama da Coroa do Advento. Já esperamos a Luz que há de refulgir nas trevas. Em breve.

É de Saint-Exupéry o famoso diálogo entre o Príncipe e a Raposa: «se tu vens às quatro da tarde, desde às três já começo a ser feliz». Uma vez, no início da faculdade, uma professora de estatística, do nada, recomendou a leitura deste livro. “Para que aprendêssemos o valor dos rituais”. Ao que parece, há pessoas que não receberam este piedoso conselho. Na Venezuela, p.ex., o Natal já passou. O presidente decretou-o para novembro. Se ele já houvesse celebrado o Natal alguma vez na vida, não faria jamais semelhante idiotice.

Porque o tempo não está sujeito aos decretos dos homens. Tem a sua própria cadência, que se impõe e é sábio respeitar. Diante dele, não cabe outra atitude que não a de uma humilde subserviência: ser homem é também, em certo sentido, ser capaz de esperar.

Não uma espera meramente passiva, por certo; não uma espera ignorante que os acontecimentos pegam sempre de surpresa. Mas uma espera que é expectativa: sabemos o que há de vir. Muitas vezes gostaríamos de ser como deuses, e desejaríamos que o futuro se realizasse quando o desejássemos, à nossa voz onipotente: mas isso é por demais infantil. Os rituais são o nosso modo de manipular o tempo, nos limites de nossa onipotência. Onipotência que é aliás bem limitada; voltando ao Pequeno Príncipe, mais ou menos como a do Rei

Mas divago. Os rituais são a nossa maneira de colocar o tempo a nosso serviço, dizia. Na impossibilidade de transportar o futuro para o presente, confeccionamos o nosso presente à imagem do futuro: transformamo-lo numa estrada pavimentada rumo ao que há de vir, onde tudo em um certo aspecto “já é” embora, em realidade, ainda não seja. Onde tudo aponta para o que há de ser – que, nesta nossa antecipação, já goza de um pouco de realidade. Não é possível decretar o Natal para agora. Mas é possível – e saudável – viver a expectativa do Natal.

Os cânticos do Advento já tomaram o lugar do Hino de Louvor nas nossas igrejas, e o Gloria in Excelsis da noite de Natal não seria tão belo se não fosse precedido e preparado pelo silêncio entre o Kyrie e a Colecta ao longo desses quatro domingos. A Luz não resplandeceria com tanto fulgor se as Trevas da noite não fossem tão densas e escuras. O Branco dos paramentos festivos não seria tão brilhante se não contrastasse com o roxo pesado dos dias precedentes. Em uma palavra, a beleza do Natal depende em grande medida das características dos dias que o precedem; e se é assim, o que fazemos já hoje é determinante de como será o nosso Natal. Se é assim, nós já começamos a vivê-lo. E, se queremos vivê-lo bem, é importante que bem o vivamos desde já.

É Advento. Preparemo-nos para a vinda do Messias que há-de vir. Preparemo-nos bem, conscientes de que aquela esperada Noite Feliz se faz ao longo do caminho que conduz a ela. Que por meio de um santo Advento, nos venha a todos um santo Natal.