Convite para curso: «Doutrina e Ética Social»

Informação relevante aos meus leitores de São Paulo: o Prof. Rodrigo Pedroso iniciará amanhã um curso sobre Doutrina e Ética Social a que eu próprio gostaria muitíssimo de poder assistir. Os que não possuem os meus obstáculos geográficos (ou outros análogos), portanto, façam-se presentes. Estou convencido de que valerá muito a pena.

cursodoutrina

O programa do curso, conforme foi enviado por email, é o seguinte:

Curso de direito natural
PROGRAMA

  1. Introdução.
  2. Pressupostos epistemológicos.
  3. Pressupostos metafísicos.
  4. Análise da operação natural.
  5. O objeto da operação humana. O fim último do homem.
  6. Atividade humana em ordem a seu fim. Análise do ato humano.
  7. Noções de ontologia moral.
  8. A moralidade objetiva.
  9. A moralidade subjetiva.
  10. As virtudes e os vícios. O conceito de justiça.
  11. A lei natural.
  12. A consciência.
  13. O pecado e o mérito.
  14. O direito: conceito, fim e propriedades. Direito e moral.
  15. Deveres do homem em geral.
  16. Deveres do homem para com Deus.
  17. Deveres do homem para consigo mesmo.
  18. Fundamentos dos deveres mútuos entre os homens.
  19. O direito de propriedade.
  20. Os contratos.
  21. A sociedade em geral.
  22. Os componentes da sociedade.
  23. A formação da sociedade mediante fatos associativos.
  24. Sociedade e princípio da subsidiariedade.
  25. Natureza da ação social. Como age a sociedade.
  26. Divisão do direito: público e privado.
  27. Deveres da sociedade para com seus membros.
  28. A defesa social: jurisdição e direito criminal.
  29. Noção de societas perfecta. As partes do poder politico segundo suas funções.
  30. A transmissão do poder político.
  31. A usurpação do poder.
  32. A perda do poder legítimo.
  33. O poder constituinte.
  34. O poder legislativo.
  35. O poder executivo.
  36. A divisão dos poderes.
  37. Relações mútuas entre sociedades independentes – direito internacional.
  38. Deveres de um estado independente para com uma sociedade ordenada.
  39. Deveres para com uma sociedade desordenada (agressora ou conflagrada).
  40. A sociedade das nações, um governo mundial?
  41. O desenvolvimento material da sociedade. Liberdade economica e corporações.
  42. O desenvolvimento intelectual e moral da sociedade. A liberdade espiritual.
  43. Os regimes politicos.
  44. A sociedade domestica ou familia: o laço conjugal.
  45. A sociedade domestica ou familia: deveres e direitos reciprocos entre pais e filhos.
  46. Nexo necessário entre a teoria social e a religião.
  47. Análise filosófica da Igreja católica.

* * *

O quê: Curso de Doutrina e Ética Social
Onde: Paróquia de Nossa Senhora do Monte Serrate – Largo de Pinheiros, SP.
Quando: Às quartas-feiras, às 19h30.
Quanto: Gratuito.

Não percam essa oportunidade.

[OFF] Eu, com câncer (X): Eu já cheguei até aqui

A maior parte dos meus leitores já sabe que eu tive a honra de passar o último Tríduo Santo em tratamento de Quimioterapia. Na tarde da Quinta-Feira eu estava na clínica hematológica, de onde saí ao cair da noite; pude, assim, passar os últimos dias da Semana Santa sob os efeitos da medicação contra o câncer.

A melhor Quaresma da minha vida – iniciada com uma QT no dia seguinte à Quarta-Feira de Cinzas, encerrada com outra QT na Quinta-Feira Santa… – chegava assim ao seu término. Tenho medo de não a ter aproveitado tanto quanto poderia; que Deus tenha misericórdia das minhas muitas limitações e fraquezas. Mas sou ao mesmo tempo grato e confiante pelo tempo que me foi concedido. Não é sempre que nos vêm ventos favoráveis à santificação e a penitência; quando eles nos vêm, é preciso pois aproveitá-los.

Será que os aproveitei bem…? É difícil se furtar ao exame de consciência. Tenho aquele problema (sobre o qual já devo ter falado aqui) de, às vezes, não saber ao certo se estou sendo muito rigoroso ou muito condescendente comigo mesmo. Há decerto muito espaço entre o escrúpulo e a lassidão; mas, em se tratando da nossa vida espiritual, às vezes parece que esse espaço é mínimo e muito difícil de nele se equilibrar! Ó almas que se dilaceram entre o reclamar muito e o aceitar demais, eu vos entendo. Isso não é um problema exclusivamente espiritual. Apenas adquire contornos mais vívidos quando é encarado sob o prisma da nossa salvação ou danação eterna.

Quais as notícias que tenho para dar? Em dezembro, a minha hematologista prescreveu-me um tratamento composto de seis ciclos de quimioterapia (R-CHOP). E na quinta-feira passada eu tomei a sexta dose. Cheguei até aqui; graças ao bom Deus, eu cheguei até aqui. E cheguei muito bem: não tive nenhuma doença oportunista ao longo desses quatro meses em que estou em tratamento, a minha imunidade somente uma vez baixou para níveis preocupantes, o meu hemograma sempre esteve bom, a minha alimentação, idem, meus rins mantiveram-se funcionando. O maior contratempo foi mesmo a trombose que sigo tratando. Já é tempo de se perguntar: e agora?

E agora… vamos precisar ver. Na próxima semana farei outra tomografia com contraste do tórax e do abdômen. A partir dela verei a minha ascite, o meu derrame pleural e os meus linfonodos; se isso ainda existe e em que medida. Com base nisso é que será refeito o meu prognóstico e serão determinados os próximos passos.

Quais as possibilidades? Na mais otimista, não tenho mais nada. Sim, é possível. Se isso acontecer, entro na fase de manutenção (com não sei quantas doses de Rituximab para prevenir a recidiva), e depois é só monitorar pelos próximos anos. E aí, com um pouco de sorte, eu termino a segunda graduação em 2020 com a mesma expectativa de vida que possuía quando me formei pela primeira vez. É o que todos esperamos.

Mas pode ser, ao contrário, que ainda haja alguma coisa. Aí tudo se complica e tudo depende. Então eu posso tomar mais dois ciclos de QT (completando oito, ao invés dos seis originalmente previstos). Ou posso iniciar um outro ciclo de quimioterapia, com seis ou oito ciclos (ou outro número qualquer, sei lá). Posso tomar o mesmo R-CHOP ou iniciar outro protocolo. Ou qualquer outra coisa. Tudo isso é também possível.

O que será, sabe-o Deus. De qualquer modo, eu já cheguei até aqui. O futuro ainda é incerto; mas qual o futuro que se pode dizer “certo” nessa vida? Volto a agradecer a todos os que me acompanham e perguntam notícias, que me dedicam as suas orações e a sua torcida, a todos enfim os que estão caminhando comigo nesses últimos meses com muito mais dedicação e amor do que eu mereço: e peço que fiquem comigo ainda mais um pouco! Keep praying, que ainda preciso de orações. Foram alcançadas, sem dúvidas, vitórias espetaculares nessa minha luta; recebi, indiscutivelmente, graças extraordinárias durante esse tempo. Mas, agora como há quatro meses, ainda sou um pecador miserável que suplica a caridade de todos vocês.

Cheguei aqui: Deo Gratias! Vamos em frente. Os próximos passos, não sei ainda quais serão. Mas sei que quero caminhá-los como aprouver ao Bom Deus. De fronte erguida, como tenho feito até aqui. Aliás, melhor do que tenho feito até aqui. Sim, é o que quero. É o mínimo que posso fazer.

Pela historicidade de São Jorge, mesmo com o dragão

Hoje é-me um dia particularmente festivo: 23 de abril é festa de São Jorge, meu onomástico e também do Papa Francisco gloriosamente reinante. É um privilégio compartilhar com o atual Vigário de Cristo o nome de Batismo; neste dia de São Jorge, peço ao mártir que nos dê – a nós, jorges em honra e dívida a ele – a sua têmpera e a sua firmeza.

São-Jorge

São conhecidas as lendas modernas a respeito da festa de hoje. Muitos dizem que o santo não existiu de fato ou que a sua celebração foi suprimida pela Igreja. Nada disso procede. A festa litúrgica continua sendo celebrada, sim, no dia de hoje, 23 de abril, nos dois calendários (tradicional e reformado). Sobre os detalhes históricos da biografia tradicionalmente atribuída ao santo, é na minha opinião elucidativo escutar o que já foi dito por D. Estêvão sobre o assunto:

A respeito de São Jorge, portanto, apenas se pode dizer com segurança que nasceu em Lida (Lydda) na Síria por volta de 270 e foi martirizado em Nicomédia no ano de 303. São considerados como incertos ou mesmo lendários os pormenores habitualmente narrados: Jorge, como soldado do Império Romano, teria participado de uma campanha na Pérsia, após a qual haveria residido em Beirute (Síria); nesta cidade, teria lutado contra um dragão; depois disto, dizem que Diocleciano o enviou em expedição à Grã-Bretanha; Jorge atravessou então o mar da Irlanda, hoje também dito «Canal de São Jorge», e desembarcou em Porta Sistuntiorum; daí dirigiu-se para Glastonbury em peregrinação ao túmulo de seu compatriota José de Arimatéia…

Estamos falando de um santo que morreu há dezoito séculos. É claro que não temos hoje uma reconstituição precisa de sua vida, e nem isso é importante. A ausência de dados biográficos detalhados não implica na inexistência de ninguém. Para fins de culto litúrgico, basta saber que o santo existiu e praticou heroicamente a Fé (no caso, ao menos dando o supremo testemunho Martírio).

Naturalmente, se vamos nos espelhar no exemplo de São Jorge (ou de qualquer outro santo), ser-nos-ia muito útil conhecer mais detalhes da sua vida. As tradições piedosas que nos foram legadas pelo seu culto multissecular podem não ter a garantia férrea das fontes historiográficas incontestáveis, mas nem por isso nos é lícito afastá-las como se fossem “estórias” sem fundamento. Repetimos: nem tudo o que não é cientificamente demonstrado é, por conta disso, falso ou mítico. A biografia rigorosa de São Jorge pode ser extremamente lacônica, mas o santo tem também uma biografia passível de ser reconstituída a partir das tradições cristãs que, embora não possa pretender o mesmo grau de certeza daquele minimum ao qual D. Estêvão já aludiu, não obstante é ao menos possível e não é sensato descartá-la por mero preconceito tecnicista.

Que lições podemos tirar da vida do santo que hoje se celebra na Igreja? Para responder a esta pergunta, é interessante a leitura deste artigo sobre ele, que reconstrói os aspectos tradicionais da sua história a partir do que nos foi legado pela piedade cristã. Traz-nos tudo, naquela riqueza de detalhes tão caras às narrativas hagiográficas, inclusive as transcrições dos diálogos entre o mártir e as autoridades romanas que o condenaram nas longínquas perseguições anteriores ao Edito de Milão. “Que é a Verdade?”, pergunta o cônsul ao soldado cristão, parafraseando Pilatos. “É Jesus Cristo, meu Senhor, a quem perseguis”, arremata o grande Jorge. Bravo!

Por fim, vamos ao que todo mundo quer saber: e o dragão? O sr. Luís Azevedo – no texto acima linkado – diz que a história do dragão «não encontra fundamento real em sua vida». Não é tão simples assim. Na prestigiada Legenda Aurea de Jacobus de Voragine, sob o título de “São Jorge, Mártir”, é possível ler tudo, tintim por tintim: a cidade assolada pelo dragão, o povo reunido para matá-lo sem o conseguir, os sacrifícios feitos à fera – primeiro de animais, depois humanos – para a manter satisfeita, a sorte certa vez recaindo sobre a filha do rei, a princesa amarrada fora da cidade, prestes a ser devorada pela besta.

Milagres da Divina Providência: eis que por lá passa São Jorge! A nobre garota tenta dissuadir o valoroso cavaleiro de salvá-la, mas os seus rogos não são capazes de esmorecer o guerreiro. O dragão aparece e interrompe o diálogo, arremetendo contra ambos. São Jorge persigna-se e se lança à luta contra o monstro, conseguindo enfim prostrá-lo por terra. Amarra-o pelo pescoço com o cinto da princesa e a faz conduzi-lo de volta à cidade. À vista da fera todos se desesperam; mas São Jorge, imponente, pede àquele povo a profissão da Fé e o Batismo, que então ele mataria o dragão. O rei batiza-se com todo o povo – quinze mil homens, sem contar mulheres e crianças, a narrativa faz questão de quantificar – e São Jorge mata o dragão. Em agradecimento, o monarca oferece incontáveis riquezas a São Jorge, que as manda distribuir aos pobres e, deixando ao rei alguns conselhos, despede-se dele e parte. C’est fini.

Incrível? Sem dúvidas. De onde surgiu tão fabulosa história? Ela remete ao menos à Idade Média, há uns sete ou oito séculos atrás. O que há de verdade nela? Difícil dizer. Por favor, não me venham com os truísmos de “dragões não existem”, coisa que é evidente. Mas existem feras selvagens, povos rudes e maus, sacrifícios humanos, homens covardes e corajosos, lutas e conversões. O dragão é o que menos interessa na narrativa, e pode perfeitamente ser substituído por um urso feroz ou um cavaleiro poderoso sem alterá-la em praticamente nada. Impugnar a historicidade do santo por conta desse detalhe é tão sem sentido quanto negar a independência do Brasil por causa dos erros do quadro de Pedro Américo.

O problema aqui se situa em pelo menos dois níveis. Primeiro, não é – absolutamente! – necessário afirmar que é mítica a existência inteira de um personagem por causa de um trecho de sua biografia que nos soa inverossímil. Segundo, não é necessário nem mesmo, por causa da mescla de elementos fantásticos e plausíveis que se encontra nas narrativas sobre ele que nos foram legadas, reduzir toda a sua biografia a um minimum passível de ser criteriosamente estabelecido. Dá para descontar o dragão e mesmo assim haurir da controversa passagem virtudes heróicas capazes de nos aumentar a piedade cristã; e sem dúvidas é possível obter fruto, e muito, de outras passagens clássicas da vida do santo que ficam entre a inverossimilhança manifesta e o rigor documental, como as narrativas do seu martírio. E, claro, dá pra contar com a intercessão do valoroso São Jorge, cuja vida só conheceremos em detalhes quando nos encontrarmos na Glória de Deus. Que o glorioso mártir rogue por nós.

Sobre o “Noé” de Aronofsky que ainda não assisti

Eu não assisti ainda ao Noé de Aronofsky, mas acompanhei ultimamente muitas discussões sobre o filme entre os mais diversos círculos de amizade. De todas elas o que mais me chamou a atenção foi este texto – cuja leitura eu recomendo na íntegra. A tese do autor (Brian Mattson) é a de que o cineasta não tomou “liberdade artística” nenhuma com a história de Noé que nós conhecemos do Antigo Testamento, mas simplesmente a contou sob a ótica bem exata e bem fidedigna da Cabala. A despeito de ser um pouco longa, a originalidade da análise é cativante e perspicaz.

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Mesmo sem ver o filme, eu próprio já havia notado que todo mundo estava falando dele de maneira estranha: fosse pelo fato de Noé ser vegetariano, fosse por se tratar aparentemente de uma espécie de nômade que vivia longe da civilização, fosse por não agir com suficientemente docilidade à voz de Deus. Em poucas palavras: a história que me contavam do filme que eu ainda não vira não tinha nada a ver com a história de Noé cujos traços mais marcantes todo mundo guarda no subconsciente quando menos como reminiscência das aulas de Catequese – e todo mundo percebia isso. Havia algo de não muito católico na película que ainda está em nossas salas de cinema.

Diante dessa primeira universal impressão, chocou-me o fato de eu ter assistido ao trailer de “Noé” em duas ocasiões católicas. A primeira, foi na première de Blood Money aqui em Recife; a segunda, na Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro. Como era possível que depois de credenciais de tanto peso o filme me saísse como esta catequese às avessas da qual todo mundo estava falando? Infelizmente, parece que é mesmo verdade. No fim das contas, parece que o Brian Mattson estava certo quando escreveu:

Eu acho que Aronofsky se propôs a experiência de nos fazer de bobos: “Vocês são tão ignorantes que eu sou capaz de colocar Noé (Russell Crowe!) nas telas e retratá-lo literalmente como a ‘semente da serpente’ e, mesmo assim, todos vocês vão assistir e apoiar”.

Aronofsky está dando risada. E todos os que caíram no trote deveriam se envergonhar.

Fiquei, sim, com a sensação de que fomos enganados. E isso deve nos fazer atentar doravante para alguns pequenos detalhes.

O primeiro, que Hollywood não merece carta branca e um livro não deve ser julgado pela sua capa – nem um filme pelo seu trailer. Acho que não cheguei a recomendar “Noé” aqui no Deus lo Vult! simplesmente porque não é do meu feitio resenhar filmes antes de assisti-los, mas podia perfeitamente tê-lo feito dando crédito às boas pessoas que, em situações distintas, me “venderam o peixe” fazendo publicidade da produção em eventos voltados para o público católico. E provavelmente eu falei positivamente do filme em conversas informais, com base no que ouvira sobre ele aqui em Recife e na JMJ.

O segundo, que é humano ser enganado, mas uma vez percebido é mister denunciar o engodo. Vi ultimamente muitas pessoas descascarem o o filme do Aronofsky manifestando o seu desgosto e afirmando a incompatibilidade da película com a história que nos foi legada pelas Escrituras Sagradas. Cumpro aqui um pouco esse papel, trazendo à baila – enquanto o assunto ainda está “quente” – as repercussões do blockbuster dentro do orbe católico, mesmo sem fazer muitas contribuições de minha própria lavra. Acho que o momento é propício para registrar aqui este “estado da arte”.

O terceiro, que é preciso ter profundidade na crítica que se faz, e é justamente nesse aspecto que o texto linkado no início desse post pareceu-me tão particularmente meritório. Indo além do lugar-comum “ah, não é a história que tá na Bíblia”, o autor foi procurar a tradição religiosa que dá sentido e coerência a toda a narrativa, o que é muito útil tanto para entrever as motivações por trás da produção do filme quanto para aumentar o nosso conhecimento geral a respeito dos inimigos clássicos do Cristianismo – informações essas que, nos tempos que correm, não nos é prudente dispensar.

Faço, por último, uma última colocação de caráter estritamente pessoal, não necessariamente aplicável a este “Noé” ao qual, repito, não assisti. Eu gosto de ficção e não penso que toda obra precise ser biblicamente fidedigna para que seja apreciável. Acho que há muito espaço, sim, para se produzir uma obra de arte digna sem que se precise fazer paráfrase de histórias já contadas e bem estabelecidas. Não é este o cerne da crítica ao filme de Aronofsky.

Mas quando um diretor de cinema divulga um filme com um pano de fundo premeditadamente anti-católico através de meios católicos… aí já é caso de perguntar se não houve intenção de enganar, de conseguir para a obra a boa-vontade da publicidade católica, por meio de se lhe deixar ser aplicado um rótulo – o de filme católico – que de saída o produtor já sabia não ser cabível, mas não achou relevante avisar isso aos divulgadores do filme. Aqui, sim, já se pode falar em comportamento censurável. Liberdade artística não é um problema. Induzir as pessoas ao erro é que é.

Oração a São João Paulo II

[Fonte: Infovaticana.]

Estampa-San-Juan-Pablo-II

Ó São João Paulo, das janelas do Céu dá-nos a tua bênção! Abençoa a Igreja que amaste, serviste e guiaste, empurrando-A corajosamente pelos caminhos do mundo a fim de levar Jesus a todos e todos a Jesus. Abençoa os jovens, que foram a tua grande paixão. Ensina-os a sonhar, ensina-os a olhar para o alto a fim de encontrar a luz que ilumina os caminhos desta vida daqui.

Abençoa as famílias, abençoa cada família! Tu advertiste contra o assalto de Satanás contra esta preciosa e indispensável centelha do Céu que Deus acendeu na terra. São João Paulo, protege com tua oração a família e cada vida que floresce na família.

Roga pelo mundo inteiro, ainda marcado por tensões, guerras e injustiças. Tu combateste a guerra invocando o diálogo e semeando o amor: roga por nós, para que sejamos incansáveis semeadores de paz.

Ó São João Paulo, das janelas do Céu, onde te vemos próximo a Maria, faz descer sobre todos nós a bênção de Deus. Amen.

Temos ainda os ramos na mão

Ontem foi Domingo de Ramos e muita gente não sabe o que a data significa. Eu já vi quem perguntasse, ao que tudo indica a sério, quem era esse “Ramos” que a Igreja estava comemorando…

A resposta é muito simples: trata-se de “ramos”, substantivo comum plural, e não “Ramos”, nome próprio singular. São ramos de plantas. A celebração de ontem relembra uma passagem específica dos Evangelhos: aquela em que Nosso Senhor, pouco antes da Crucificação, entra em Jerusalém montado num burrico e é aclamado pelo povo, que O saúda agitando ramos – «ramos de palmas», diz a Escritura.

Acho que foi Bento XVI quem disse, num dos volumes do «Jesus de Nazaré», que o povo que aclamou Jesus ontem não é o mesmo que vai gritar “crucifica-O!” na próxima Sexta-Feira. A distinção não é todavia indispensável à verossimilhança do relato; seria em princípio possível que as pessoas se houvessem decepcionado, no decurso de uma semana, com este Messias que parecia o Salvador do mundo mas que, de repente, Se apresentava preso, ferido e humilhado. Seria possível que O tivessem tomado por um farsante. Seria possível que gritassem para O crucificar, já que Ele não realizara a esperada restauração de Israel pela qual O haviam aclamado poucos dias atrás.

E essa rápida passagem do amor ao ódio apresenta-se na Liturgia de ontem de maneira bem significativa: nela, os dois Evangelhos são lidos. A entrada triunfante em Jerusalém se lê no início da procissão; a ignominiosa Paixão, no lugar tradicional do Evangelho, após as duas leituras. Temos ainda os ramos na mão quando gritamos, no jogral evangélico, que Cristo seja crucificado! E o simbolismo aqui presente é bastante verdadeiro.

Nós muitas vezes pecamos quando acabamos de sair da presença de Deus: a boca que lança imprecações por vezes acabou de recitar a Ave-Maria, e há pecados mortais que são cometidos já à saída do Confessionário. Lembro-me de uma personagem fictícia de uma história que ainda não escrevi: a menina se crismara. Recebera na testa o óleo crismal perfumado. Saíra da igreja direto para uma festa. Lá, encontrara um menino com quem decidira “ficar”. E, num canto escuro, empenhado em atos mais próprios de esposos do que de jovens que acabaram de se conhecer, o garoto percebe, sem dar muita importância ao fato, que aquela menina que encarna lascívia diante dele rescende a bálsamo.

Outros exemplos poderiam ser citados, mas não é necessário. Basta saber que é possível, sim, negar a Cristo logo depois de O ter aceito, ofendê-Lo logo em seguida a O louvar. É possível e muitos de nós experimentamos essa sensação por diversas vezes. E, quando o notamos, a nossa vergonha é maior, a nossa dor é mais pungente e – se o bom Deus o permitir – o nosso arrependimento é mais sincero.

É nisso que penso quando assisto à Liturgia de Ramos. Quando o braço que se eleva para exigir a crucificação do Filho de Deus tem ainda no punho cerrado os ramos com os quais há pouco se cantava «Hosana ao Rei de Israel!», é impossível não cobrir o rosto de vergonha. O pecado assim resplandece com maior fealdade: a alcova impregnada de perfume barato é horrenda, mas a alcova que cheira a bálsamo tem um quê de blasfema e sacrílega. É preciso uma consciência muito anestesiada para agir com indiferença diante disso.

E essa verdade, aqui ilustrada com cores tão vivas e marcantes, é exatamente o que acontece a cada vez que trocamos Deus pelos nossos prazeres, cada vez que expulsamos a Graça Santificante de nossas almas para a fazer resfolegar na imundície do pecado. Ou a vida de Graça é menos importante que um ramo de palmeira? Ou nossa alma não brilha, inflamada pela caridade, mais do que a nossa testa de recém-crismados exala perfume? Se nos enchemos de horror quando percebemos que as coisas santas – o ramo nas mãos, o bálsamo na testa – estão ainda presentes em quem crucifica a Nosso Senhor, por que nos escandalizaríamos menos ao notar que esta coisa santíssima, a Graça Santificante, está presente e viva em quem está na iminência de ofender gravemente a Deus?

Inicia-se a Semana Santa: cubramos o nosso rosto de culpa e vergonha, e nos voltemos para Aquele que traspassamos com os nossos pecados. São grandes os nossos crimes, mas maior é a Sua misericórdia. Que o Seu Amor vença as nossas misérias. Que a Sua Paixão nos seja propícia.

Papa Francisco: vejam bem que o Diabo existe!

Todos somos tentados, porque a lei da vida espiritual, a nossa vida cristã, é uma luta. O príncipe deste mundo – o diabo – não quer a nossa santidade, não quer que sigamos Cristo. Alguém de vocês, talvez, não sei, possa dizer: ‘Mas, padre, que antigo o senhor é, falar de diabo no século XXI!’. Mas vejam bem que o diabo existe! Mesmo no século XXI! E não devemos ser ingênuos. Temos de aprender com o Evangelho como se faz a luta contra o diabo.

Papa Francisco,
Homilia na Domus Sanctae Marthae,
11 de abril de 2014

Por que dizemos que certas músicas influenciam o sexo livre?

Com relação à polêmica envolvendo o professor de Filosofia que ousou colocar “Valesca Popozuda” e “grande pensadora contemporânea” na mesma frase sem que os dois termos estivessem ligados por uma relação semântica de veemente oposição, uma amiga apontou com muita pertinência que a funkeira pode até não ser estritamente uma “pensadora”, mas sem dúvidas populariza certas concepções de mundo que são abraçadas e defendidas por muitos pensadores contemporâneos.

Parece-me claro que a música tem um poder de penetração popular muito maior na nossa sociedade do que a literatura ou a dissertação acadêmica. É muito mais fácil atingir as massas com uma canção que vire sucesso do que com um artigo de opinião, ainda que magistralmente escrito. É comum ver as canções populares unicamente como meios de entretenimento; no meu entender, é preciso encará-las também sob o ponto de vista de veículos transmissores de idéias. Um libelo apaixonado em defesa de uma determinada posição pode, é claro que concedemos, fundamentar o seu ponto de vista de uma maneira muito mais sólida do que a sua mera exposição desarticulada numa canção; mas uma música pode muito facilmente tornar conhecida uma idéia, popularizar um pensamento.

Alguns podem dizer que simplesmente expôr um pensamento não pode ser confundido com defendê-lo e nem muito menos com tentar convencer os que tomam conhecimento dele a adotá-lo. Aqui é preciso dizer: mais ou menos. Se é certo que há uma diferença muito grande entre a exposição argumentativa com vistas à persuasão de algo e a mera afirmação (às vezes até indireta) deste algo, não é menos certo que há outros fatores a serem levados em consideração aqui, como por exemplo:

1) Há uma tendência a enxergar com naturalidade os valores que são predominantes na nossa experiência de mundo. Se nós nunca vemos ao nosso redor um determinado comportamento, é pouco provável que tenhamos por conta própria a iniciativa de adotá-lo. Ao contrário, provavelmente o olharemos com desconfiança e de forma crítica quando e se nos depararmos com ele alguma vez. Por outro lado, se algo acontece à nossa volta o tempo todo – se algo é freqüente na nossa vizinhança, na nossa escola, no nosso trabalho, etc. -, é bastante provável que nos envolvamos de algum modo com isso. E as músicas que escutamos desempenham – pelo menos – o indiscutível papel de aumentar o leque dos lugares onde tomamos contato com uma dada visão de mundo: ela se nos torna mais familiar porque a encontramos no nosso ambiente de trabalho, nos jornais que lemos, nas conversas dos corredores universitários e também nas músicas que ouvimos no rádio do carro em meio aos engarrafamentos de cada dia ou que os nossos amigos põem para tocar nas festinhas e happy hours de que participamos.

2) A maior parte das pessoas não pauta o próprio comportamento por investigações filosóficas de ordem moral. Nós infelizmente não nos preocupamos muito com isso e tendemos a fazer aquilo que “está à disposição”. Os estilos de vida mais austeros podem ser defendidos com a maior clareza do mundo pelos maiores gênios da humanidade: a maior parte de nós escolherá o caminho mais fácil se ele se nos apresentar como uma opção entre outras. Isso porque para fazer a coisa certa é exigido do homem um esforço consciente e permanente, enquanto que para fazer a coisa errada basta que ele se deixe arrastar pelos seus instintos. Diziam os antigos que a ocasião fazia o ladrão, e o que se esconde por trás do antigo ditado é essa verdade bem simples: certas coisas não precisam de uma apologia para convencer os homens a realizá-las. Assim, não é preciso que um estilo de vida pouco virtuoso seja defendido para que os homens o adotem: basta que ele esteja aí. E que maneira mais fácil de tornar presente um determinado comportamento do que transformá-lo numa música que toca o tempo inteiro e que fica na nossa cabeça muito tempo depois de a termos ouvido, que nos pegamos cantando sem perceber ao longo do dia etc.?

3) O poder de penetração de uma música é muito maior do que o de um artigo científico, e isso muitas vezes compensa a informalidade que a primeira tem em relação a este. Para alguém gravar uma idéia exposta num texto acadêmico é preciso lê-lo com atenção, é preciso que o autor do texto a exponha diversas vezes e de muitas maneiras distintas etc.; ora, com extrema facilidade uma música é literalmente decorada, de uma ponta a outra, com as mesmíssimas palavras usadas pelo seu compositor. Se algo vai ser repetido incontáveis vezes, em situações as mais distintas possíveis – no carro, no chuveiro, no happy hour – e por um intervalo de tempo consideravelmente longo, é natural que as idéias presentes nessa repetição prolongada impregnem com maior facilidade o espírito de quem a ela é exposta do que as que constam numa palestra que se assistiu somente uma vez ou num artigo que se leu enquanto se aguardava a sua vez num consultório. A insistência no tema supre a sutileza com a qual ele é apresentado.

Voltando às músicas da Valesca Popozuda: o teor sexual de muitas de suas canções é bem conhecido. Nós sustentamos que isso é um claro incentivo à sexualidade livre. Contra os que dizem que uma música não tem o poder de forçar ninguém a fazer nada contra a sua vontade (o que é verdadeiro) e que praticamente nenhuma letra de música é um discurso proselitista em defesa de posição alguma (o que também é verdadeiro), nós respondemos com o que foi exposto acima: o incentivo de que falamos aqui não se dá a nível de coerção nem de argumentação racional. Ele se processa quando um determinado comportamento censurável é apresentado ao homem de tão variadas formas e com tamanha regularidade que passa a ser encarado por ele com naturalidade. E alguém que perceba uma coisa como natural está mais propenso a realizá-la.

Há um sem-número de intelectuais modernos que defendem o hedonismo. Nem a capacidade argumentativa de todos eles juntos seria capaz de arrastar mais pessoas a um estilo de vida hedonista do que as músicas indecorosas que tocam nas nossas rádios e nas nossas festas. Para que uma pessoa deixe a sua vida ser guiada pela busca ao prazer não é preciso que ela se convença racionalmente de que esta é a melhor opção filosófica possível: basta que ela perceba que o sexo é uma coisa prazerosa, que é socialmente bem aceito em seus círculos de relações sociais, que dele não decorre nenhuma responsabilidade, que é fácil de ser obtido. Basta, em suma, que ele esteja imerso em um ambiente que exala sexualidade de tal maneira que ela seja percebida como uma coisa simples, banal e corriqueira.

Para isso contribuem sem dúvidas os nossos “filósofos” e “intelectuais” contemporâneos. Mas contribui também, e enormemente, a atuação social de cantores como a que iniciou a polêmica dos últimos dias. Antigamente, os grandes pensadores influenciavam as multidões. Hoje elas são muito mais influenciadas pelas músicas que artistas de qualidade questionável despejam na nossa sociedade decadente. Se o povo se deixa guiar por funkeiros, então a sra. Valesca faz as vezes, sim, dos “grandes pensadores contemporâneos”, e é até justo chamá-la dessa maneira. Quem não merece ser chamado de “pensante” é o povo que se presta a tão deplorável papel.

Aborto, pena de morte e contradições

Está surpreendentemente bom este artigo sobre pena de morte publicado por Aleteia. Aborda um tema candente dos últimos tempos – a questão da pena de morte – com uma clareza de raciocínio e capacidade de exposição de idéias fascinante. Mais ainda, ele o faz sem se furtar ao sofisma talvez mais calhorda que existe no debate pró-vida contemporâneo: o que pinta como uma monstruosa contradição alguém se dizer ao mesmo tempo contra o aborto e a favor da pena de morte.

A resposta definitiva à questão é dada imediatamente após a manchete, antes mesmo de começar o texto em si: Defender o inocente não implica renunciar à punição do culpado. Claro, conciso, irretocável. Mas o argumento vai ser melhor desenvolvido ao longo das linhas do texto, as quais valem muito uma leitura.

A defesa da vida tem um objeto muito específico. O que se afirma é a inviolabilidade da vida humana inocente. Os dois adjetivos são essenciais para a correta compreensão do assunto.

O que é inviolável, em primeiro lugar, é a vida humana, e não simplesmente a “vida”. O ser humano se utiliza de seres vivos em seu benefício o tempo inteiro: colhendo o milho para engordar o pintinho, matando o frango para assar o galeto. Independente do que possam dizer os vegetarianos radicais, tudo isso é perfeitamente razoável e legítimo. Há certas diferenças essenciais entre o ser humano e os outros animais, e tais diferenças justificam que haja um tratamento diferenciado entre estes e aquele.

[Isto obviamente não autoriza que os demais seres vivos sejam usados de forma desumana e irresponsável; não é porque podemos matar uma galinha para fazer uma canja que nos é igualmente permitido esfolar um gato, e não é porque é legítimo capinar a frente da nossa casa que não existe nunca nenhum problema moral com o desmatamento. Os ecoterroristas estão para o uso legítimo da natureza como os vegans para a alimentação humana. Ninguém precisa defender o esfolamento de felinos para provar a imoralidade do vegetarianismo radical, como ninguém precisa extinguir a Mata Atlântica para entender que os catastrofistas ambientais estão errados. O parêntese talvez seja necessário.]

Em segundo lugar, é preciso ter em conta que indiscutivelmente inviolável é a vida humana inocente. Discutir a pena de morte para um criminoso não é a mesma coisa que trair o ideal da defesa da vida, da mesma forma que discutir a cadeia para quem comete crimes não é igual a contradizer o direito de ir e vir. E da mesma forma que há uma diferença muito grande entre o ser humano e os animais irracionais que justificam as diferenças de tratamento dispensadas a ambos, há também uma diferença – menor que a primeira, por certo, mas também diferença – entre um inocente e um criminoso, que justifica pelo menos defender um tratamento desigual para ambos sem que isso implique em nenhuma contradição.

Ao contrário do que acontece com os promotores do aborto, são pouquíssimos os católicos para os quais a pena de morte é propriamente uma bandeira. Trata-se muito mais de uma questão acadêmica, especulativa, de salvaguardar a coerência da Doutrina Moral da Igreja, de compreender melhor a Justiça que se esconde para além dos costumes sociais vigentes na sociedade contemporânea – e não de introduzir a figura da pena capital no ordenamento jurídico pátrio. Todos os defensores do aborto querem que o aborto seja legalizado; nem todos os (assim chamados) “defensores da pena de morte” querem que ela seja efetivamente implantada. Isso permite ao John Zmirak (autor do texto acima indicado) fazer a seguinte genial provocação:

Eu já propus o seguinte aos liberais pró-escolha, que chamavam de hipócrita quem era pró-vida e ao mesmo tempo favorável à pena de morte: “Caros liberais pró-escolha, vamos fazer um acordo: eu deixo de apoiar a pena de morte e vocês param de apoiar o aborto. Se vocês pararem de matar os inocentes, nós concordamos em parar de matar os culpados”. Ninguém aceitou a minha proposta (…).

E o mesmo trato vale para qualquer abortista hipócrita que venha despejar erística vazia por aqui.

Há uma última coisa que o Zmirak não faz, mas que eu gostaria de fazer. Não há contradição entre ser contra o aborto e a favor da pena de morte, como foi mostrado acima, mas a recíproca não é verdadeira: há, sim, contradição, uma aberrante e clamorosa contradição, uma contradição inescapável e vergonhosa, em ser ao mesmo tempo contra a pena de morte e favorável ao aborto. É insofismavelmente contraditório e hipócrita defender ao mesmo tempo que os criminosos não podem ser condenados à morte pelos tribunais, mas as crianças inocentes podem ser mortas por suas mães sem nenhum problema. E, disso, não dá para fugir.

Todo mundo que é a favor do aborto, portanto, não tem envergadura moral alguma para se dizer contra a pena de morte. E todo mundo que é contra a pena de morte deveria, por força de coerência, opôr-se também e visceralmente à legalização do aborto, esta particular forma de pena de morte que é direcionada aos mais inocentes e indefesos dos seres humanos: as crianças no ventre materno. Agir diferente disso é que é contradição e hipocrisia.

Outros textos muito bons do John Zmirak podem ser lidos em português no próprio Aleteia. O blog dele em inglês (que eu também só conheci agora) é este The Bad Catholic’s Bingo Hall.

A canonização de santos não virtuosos

Uma «canonização» de um santo é um ato jurídico por meio do qual a Igreja atesta fundamentalmente duas coisas: que o canonizado está no Céu gozando de visão beatífica e que é modelo de virtudes a ser imitado pelos fiéis. Cumpre entender corretamente os limites desse ato canônico, a fim de não expôr a Igreja ao ridículo sustentando certas concepções dos santos canonizados que a Igreja, absolutamente, não reconhece como Suas.

Quanto à primeira garantia da canonização, que o santo goza de visão beatífica, basta para defender a posição da Igreja que tal seja possível, uma vez que o seu contrário não poderá jamais ser provado. Ora, é certamente possível que qualquer pessoa, rigorosamente qualquer pessoa, esteja no Céu, independente da vida que tenha levado, uma vez que um arrependimento in articulo mortis é sempre suficiente para a salvação eterna. A soteriologia cristã não é uma função matemática relacionando indiscriminadamente os atos da vida terrena com a sorte da vida eterna. Em última instância, o que conta é o estado da pessoa no momento em que ela se apresenta diante do Justo Juiz. É evidente que os hábitos de vida da pessoa influenciam sobremaneira o referido estado – e dessa maneira uma pessoa acostumada a levar uma vida virtuosa tem maior facilidade de se encontrar voltada para Deus no momento em que for colhida pela morte, e de modo inverso alguém que tenha levado uma vida de crimes só a muito custo conseguiria um amor verdadeiro a Deus e um sincero desprezo por seus pecados no instante derradeiro -, mas não há nenhum determinismo aqui e não se pode negar a possibilidade de que mesmo um pecador empedernido seja tocado pela graça de Deus ao último alento.

A segunda garantia da canonização é um pouco mais excludente e não abrange todos os homens do mundo. Ao propôr alguém como modelo de virtudes, a Igreja está certamente atestando a existência de virtudes na vida do canonizado, e de virtudes públicas, uma vez que as disposições interiores e ocultas não poderiam servir para ninguém nelas se espelhar. Se qualquer pessoa passaria no primeiro escrutínio da santidade, neste segundo muitos são deixados de fora. O “Mau Ladrão” pode perfeitamente ter chegado ao Céu, mas a Igreja não o pode canonizar porque não há virtude pública que ele tenha exercido e, portanto, não há em quê ele possa ser modelo proposto à imitação dos católicos.

Dizer que alguém é detentor de virtudes a serem imitadas é diferente de dizer que este alguém exercitou todas as virtudes possíveis em grau máximo. No meu entender, apenas a primeira proposição é fiel ao que a Igreja entende por «santo canonizado». Há uma miríade de virtudes nos santos de Deus: em alguns deles é possível que resplandeça mais a sua humildade, noutros o seu zelo apostólico, em um a sua Teologia, em outro ainda a sua caridade para com os pobres, etc. Um santo pode ser um modelo por algumas virtudes e não por outras. Alguém pode merecer a honra dos altares por conta de sua dedicação apaixonada à expansão do Evangelho, ainda que não tenha se destacado na virtude da humildade. Vou mais além e digo: ainda que tenha sido orgulhoso, desde que este defeito não seja objeto de imitação. Do mesmo modo e inversamente, alguém pode ser proposto pela Igreja como modelo por conta da sua resplandecente humildade, ainda que não se tenha destacado no zelo apostólico. E de novo acrescento: ainda que tenha sido negligente nesse específico dever cristão, contanto que a negligência não seja indissociável do seu caráter a ponto de se tornar escandalosa.

Do exposto, segue-se que a nenhum santo canonizado exige-se que «sua teologia dev[a] ser impecável, até o mais mínimo detalhe», como pretendeu recentemente um sacerdote da FSSPX. Não, não deve. Contanto que o candidato à honra dos altares tenha virtudes – quaisquer verdadeiras virtudes – a serem imitadas, ele não precisa ser “impecável” em nenhuma delas em particular. A teologia de qualquer santo só precisa ser católica, não lhe sendo estritamente necessário nenhum refinamento acima do comum, nenhuma sensibilidade extraordinária.

A João Paulo II (e a qualquer outro) basta, portanto, não ser herege para que possa ser proposto pela Igreja à imitação dos fiéis. Assim, os argumentos que tornam possível a sua canonização são rigorosamente os mesmos que defendem ter ele sido Papa legítimo. Se a sua Teologia possuísse problemas que o impedissem de ser canonizado, ele estaria pela mesmíssima razão impedido de ser verdadeiro Papa. Dizer que ele foi efetivamente Papa até o fim da vida e ao mesmo tempo considerar a sua Teologia um óbice verdadeiro à sua canonização é uma posição contraditória e que não tem nenhum sentido.