A canonização de santos não virtuosos

Uma «canonização» de um santo é um ato jurídico por meio do qual a Igreja atesta fundamentalmente duas coisas: que o canonizado está no Céu gozando de visão beatífica e que é modelo de virtudes a ser imitado pelos fiéis. Cumpre entender corretamente os limites desse ato canônico, a fim de não expôr a Igreja ao ridículo sustentando certas concepções dos santos canonizados que a Igreja, absolutamente, não reconhece como Suas.

Quanto à primeira garantia da canonização, que o santo goza de visão beatífica, basta para defender a posição da Igreja que tal seja possível, uma vez que o seu contrário não poderá jamais ser provado. Ora, é certamente possível que qualquer pessoa, rigorosamente qualquer pessoa, esteja no Céu, independente da vida que tenha levado, uma vez que um arrependimento in articulo mortis é sempre suficiente para a salvação eterna. A soteriologia cristã não é uma função matemática relacionando indiscriminadamente os atos da vida terrena com a sorte da vida eterna. Em última instância, o que conta é o estado da pessoa no momento em que ela se apresenta diante do Justo Juiz. É evidente que os hábitos de vida da pessoa influenciam sobremaneira o referido estado – e dessa maneira uma pessoa acostumada a levar uma vida virtuosa tem maior facilidade de se encontrar voltada para Deus no momento em que for colhida pela morte, e de modo inverso alguém que tenha levado uma vida de crimes só a muito custo conseguiria um amor verdadeiro a Deus e um sincero desprezo por seus pecados no instante derradeiro -, mas não há nenhum determinismo aqui e não se pode negar a possibilidade de que mesmo um pecador empedernido seja tocado pela graça de Deus ao último alento.

A segunda garantia da canonização é um pouco mais excludente e não abrange todos os homens do mundo. Ao propôr alguém como modelo de virtudes, a Igreja está certamente atestando a existência de virtudes na vida do canonizado, e de virtudes públicas, uma vez que as disposições interiores e ocultas não poderiam servir para ninguém nelas se espelhar. Se qualquer pessoa passaria no primeiro escrutínio da santidade, neste segundo muitos são deixados de fora. O “Mau Ladrão” pode perfeitamente ter chegado ao Céu, mas a Igreja não o pode canonizar porque não há virtude pública que ele tenha exercido e, portanto, não há em quê ele possa ser modelo proposto à imitação dos católicos.

Dizer que alguém é detentor de virtudes a serem imitadas é diferente de dizer que este alguém exercitou todas as virtudes possíveis em grau máximo. No meu entender, apenas a primeira proposição é fiel ao que a Igreja entende por «santo canonizado». Há uma miríade de virtudes nos santos de Deus: em alguns deles é possível que resplandeça mais a sua humildade, noutros o seu zelo apostólico, em um a sua Teologia, em outro ainda a sua caridade para com os pobres, etc. Um santo pode ser um modelo por algumas virtudes e não por outras. Alguém pode merecer a honra dos altares por conta de sua dedicação apaixonada à expansão do Evangelho, ainda que não tenha se destacado na virtude da humildade. Vou mais além e digo: ainda que tenha sido orgulhoso, desde que este defeito não seja objeto de imitação. Do mesmo modo e inversamente, alguém pode ser proposto pela Igreja como modelo por conta da sua resplandecente humildade, ainda que não se tenha destacado no zelo apostólico. E de novo acrescento: ainda que tenha sido negligente nesse específico dever cristão, contanto que a negligência não seja indissociável do seu caráter a ponto de se tornar escandalosa.

Do exposto, segue-se que a nenhum santo canonizado exige-se que «sua teologia dev[a] ser impecável, até o mais mínimo detalhe», como pretendeu recentemente um sacerdote da FSSPX. Não, não deve. Contanto que o candidato à honra dos altares tenha virtudes – quaisquer verdadeiras virtudes – a serem imitadas, ele não precisa ser “impecável” em nenhuma delas em particular. A teologia de qualquer santo só precisa ser católica, não lhe sendo estritamente necessário nenhum refinamento acima do comum, nenhuma sensibilidade extraordinária.

A João Paulo II (e a qualquer outro) basta, portanto, não ser herege para que possa ser proposto pela Igreja à imitação dos fiéis. Assim, os argumentos que tornam possível a sua canonização são rigorosamente os mesmos que defendem ter ele sido Papa legítimo. Se a sua Teologia possuísse problemas que o impedissem de ser canonizado, ele estaria pela mesmíssima razão impedido de ser verdadeiro Papa. Dizer que ele foi efetivamente Papa até o fim da vida e ao mesmo tempo considerar a sua Teologia um óbice verdadeiro à sua canonização é uma posição contraditória e que não tem nenhum sentido.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

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