A terceira via (*) entre socialismo e capitalismo

[(*) P.S.: Percebi depois que a expressão, mal escolhida, poderia conduzir a dois equívocos (nenhum dos quais escrevi, a propósito, mas cuja possibilidade de serem inferidos a partir da leitura realmente existia, como os comentaristas me fizeram notar), para evitar os quais acho oportuno escrever esta pequena nota prévia:

i) a “terceira via” não está aqui dita como se fosse um “meio-termo” entre o liberalismo e o socialismo, [alegadamente] conjugando o que há de melhor em cada uma das ideologias (v.g. a social-democracia);

ii) a “terceira via” não é a Doutrina Social da Igreja, como se esta fosse um sistema econômico pertencente à mesma categoria do capitalismo ou do comunismo; na verdade, uma vez que a DSI é mais propriamente um conjunto de princípios aos quais se devem adequar quaisquer sistemas político-econômicos concretos que se pretendam compatíveis com o catolicismo, melhor seria falar em “terceiras vias”, no plural, significando com isso quaisquer formas de organização da vida pública que, fugindo aos erros quer do liberalismo individualista, quer do socialismo coletivista, fosse informada pelos ditames da Doutrina Social católica (e, nesse sentido, o próprio distributismo citado nos comentários, se é conforme à DSI, com ela contudo não se identifica, sendo sempre possível conceber um outro pensamento que não seja idêntico ao distributismo mas igualmente respeite o que por aquela Doutrina é apregoado).

Em suma, o que este texto intentava era, simplesmente, apontar para a necessidade – tão amiúde negligenciada – de não se cair em uma defesa irrestrita do capitalismo ao se combater o comunismo (ou vice-versa); e o pretendia fazer sem apontar a social-democracia (de maneira alguma!) como uma solução concreta e sem nem mesmo insinuar que a Igreja tivesse um regime econômico pronto, monolítico e universalmente válido a implantar. Aos que se confundiram com essas coisas, minhas sentidas desculpas.]

Faz muitos anos que li “O problema da liberdade” de Fulton Sheen, mas uma de suas frases ficou-me impressa na memória: segundo o prelado, o liberalismo (capitalismo) queria concentrar a maior parte dos ovos em poucas cestas, o comunismo queria quebrar todos os ovos e espalhar o produto pelas cestas todas e, a Igreja, defendia a distribuição mais justa dos ovos inteiros pelas cestas existentes. Acredito que tenha sido a primeira vez que li um ensaio que defendesse uma terceira via como resposta ao clássico embate entre capitalismo e socialismo. É de se lamentar, no entanto, que a senda aberta pelo arcebispo americano não tenha sido melhor explorada pelos católicos que o sucederam.

No afã – justíssimo – de combater o comunismo, muitas vezes acabamos empurrados para o erro oposto. Não é verdade que o católico precise defender intransigentemente o capitalismo ou mesmo possa ser liberal sem reservas: se é indiscutível que se deve no geral apoiar a economia de livre mercado, não é menos verdade que certa intervenção estatal é exigida para o correto funcionamento das forças econômicas em prol do bem comum. Neste sentido, recomenda-se a leitura dos parágrafos 347-350 do Compêndio de Doutrina Social da Igreja; o qual, alguns parágrafos adiante, termina por sintetizar que «[o] livre mercado pode produzir efeitos benéficos para a coletividade somente em presença de uma organização do Estado que defina e oriente a direção do desenvolvimento econômico» (Compêndio, 353). Isso talvez seja um terror para o libertarianismo puro; no entanto, como se disse acima, o católico não pode ser liberal simpliciter.

O espírito do capitalismo, aliás, segundo Weber, é próprio da ética protestante, para usar o título de sua provavelmente mais famosa obra. Uma das situações narradas pelo sociólogo alemão para explicar a diferença entre conservadores e liberais é bem curiosa. Sob a ótica econômica, incentiva-se a venda de uma mercadoria aumentando-se o valor que por ela se está disposto a pagar: são as leis básicas da oferta e da demanda. Se o trabalho é visto como uma mercadoria, então seria de se esperar que aumentar os salários incentivasse os trabalhadores a trabalharem mais. No entanto, Weber notou que exatamente o oposto disso verificava-se com certos indivíduos: recebendo mais, eles passavam a trabalhar menos, porque passavam a conseguir o mesmo salário de antes com um dispêndio menor de horas de trabalho.

Semelhante mentalidade não é favorável à atividade econômica racional que caracteriza o capitalismo, ou pelo menos não lhe é tão favorável quanto a outra mentalidade daquele que, diante de melhores salários, enxergue nisso mais uma oportunidade de aumentar o pão que de diminuir o suor do rosto. No entanto, é fato sociológico que os nossos – de nós, os católicos – antepassados europeus no geral preferiram trabalhar menos a acumular mais, e isso talvez seja digno de mais atenção do que até agora se lhe tem dispensado. Talvez devêssemos buscar melhores soluções para o problema dos ovos e das cestas, cuja importância não parece ter diminuído nas últimas décadas.

O problema maior que vejo na exaltação ingênua do capitalismo é o seguinte: dada ela, alguém não poderia pretender que o socialismo seja capaz de passar por um processo semelhante ao que atravessou o liberalismo: qual seja, o metamorfosear-se tanto que as razões da censura eclesiástica original deixem de subsistir (ou, pelo menos, transformem-se em elementos acidentais sem cuja presença seja possível a concepção filosófica continuar existindo)? Esta pergunta não pode ser respondida ao modo leviano ao qual as condescendências que atualmente fazemos ao liberalismo podem levar o observador incauto. Em uma palavra: não podemos abraçar tão acriticamente o capitalismo liberal que isso conduza a uma legitimação – ainda que meramente retórica – da adesão ao socialismo “mitigado”. Não é somente verdade que, numa escala de erros, o marxismo está mais alto que o liberalismo; não é uma questão meramente quantitativa. Nessa argumentação [precisa] entra[r] também o fato de que as idéias liberais não podem ser assumidas sem ressalvas. E, nisto, parece-me que temos sido um pouco relapsos.

Na Octogesima adveniens, o Papa nos ensina que, mesmo diante da multiplicidade de formas nas quais o marxismo atualmente se apresenta, «seria ilusório e perigoso mesmo, chegar-se ao ponto de esquecer a ligação íntima que [a]s une radicalmente, e de aceitar os elementos de análise marxista sem reconhecer as suas relações com a ideologia» (OA, 34). No entanto, no parágrafo seguinte é feita uma recomendação análoga no que toca ao liberalismo, à qual infelizmente se tem concedido muito menos importância que à primeira:

Mas, os cristãos que se comprometem nesta linha [da renovação da ideologia liberal] não terão também eles tendência para idealizar o liberalismo, o qual se torna então uma proclamação em favor da liberdade? Eles quereriam um modelo novo, mais adaptado às condições atuais, esquecendo facilmente de que, nas suas próprias raízes, o liberalismo filosófico é uma afirmação errônea da autonomia do indivíduo, na sua atividade, nas suas motivações e no exercício da sua liberdade. Isto equivale a dizer que a ideologia liberal exige igualmente da parte deles um discernimento atento (id. ibid., 35).

Cuidemos, portanto, para não subestimar o Magistério da Igreja, e para que a nossa involuntária aquiescência seletiva não induza outras pessoas a preterirem o ensino católico seguro em favor das doutrinas da moda. A resposta ao problema da liberdade não está em nenhuma das ideologias que assolaram o mundo das revoluções burguesas para cá. No nosso labor apologético, é preciso dar mais ênfase à terceira via entre socialismo e capitalismo que a uma – extemporânea e muitas vezes errônea – defesa demasiado crédula do liberalismo contemporâneo.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

12 comentários em “A terceira via (*) entre socialismo e capitalismo”

  1. FALTAM NO BRASIL PASTORES DE FATO E DE VERDADE INSERIDOS NA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA E SOBRANDO OS PRÓ MARXISTAS!
    Judas Iscariotes temos até para exportação!
    Sim, faltam-nos bons pastores para seguirem as DIRETRIZES DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA e não se mesclarem com marxi-ideologistas, sendo os “canes non valentes latrare”; tudo sugere, pois a CNBB-TL são dos marxi-promotores, entregando as ovelhas para serem devoradas por vorazes lobos!
    Na França, vejam bem: foi eleito o comunista Pres. Hollande e após tentar fazer lá o que o PT faz já por 12 (DOZE) anos aqui com a Igreja católica silente, conivente e algo mais, os católicos franceses caíram nas ruas e resolveram a parada em apenas 2 (DOIS) anos, e conseguiram: RESPEITO Á DOUTRINA DA IGREJA, FAMILIA HOMEM-MULHER, FORA COMO O HOMOSSEXUALISMO, ABORTO, IDEOLOGIA DO GÊNERO E FIM DAS LEIS DE MERCADO COMUNISTAS, TAMBÉM ETC., levaram um pau tremendo da polícia e ela e o governo não deram conta da pressão e, nas recentes eleições, arrocharam os comunistas de tal forma que os acuaram, a ponto do ministro Manuel Valls dizer em alto e bom tom na mídia que o PC francês pode até se extinguir.
    O conceito do Pres. Hollande está em apenas 13%!
    Ao inverso, aqui os Judas e bovinos há doze (12) anos silentes e votando no PT – salvas as poucas exceções adversarias do marxismo, as de sempre – sendo massacrados pelas ideologias comunistas, destruindo a fé católica e todos os ensinamentos do tronco judaico-cristão e, quando se manifestam, agem tais quais como pagãos: “quero isso, quero aquilo”, só almejando materialismo, como os animais, que de pança cheia ficam satisfeitos!!
    Onde estão os altos hierárquicos brasileiros? Muitos deles estão nas dioceses ajudando a instalar o comunismo no Brasil coletando assinaturas para a tal “Reforma Política” e “Constituinte Exclusiva”, como quer o PT, a CNBBolivariana a CUT, o famoso MST, a Fenaj, a UNE da maconha, a OAB e centenas de sindicatos aliados ao PT etc, todos esquerdistas; de minha parte, jamais votarei nessa porcaria desses Judas Iscariotes.
    Exemplos de aberrações da CNBB lado a lado com o PT e suas suspeitas ideias:
    D Raymundo Damasceno: o comunista E Campos era um “católico praticante”.
    D Leonardo Steiner: o falecido comunista Plinio A Sampaio do PSOL e pró aborto: “exemplo de católico atuante na política”.
    Apoio ao veto parcial ao PLC 3/2013, ref ao aborto, como queria o PT.
    Perverteu a S Quaresma da reflexão, conversão e penitencia em 40 dias de eco-humanismos, como como tráfico de pessoas etc., e temas que devem ser abordados de obrigação de ONGs ou do governo civil, ou idolatrando coisas da “Mãe Terra”!
    E muitos mais materialismos, encaminhando os incautos para Sodoma e Gomorra!

  2. Excelente, é sempre bom lembrar também o seguinte: geralmente se chama de terceira via a social-democracia, que nada mais é do que um meio-termo entre o liberalismo e o socialismo. O arranjo político-econômico que é mais adequado ao magistério social da Igreja é o distributismo, conforme proposto pelos irmãos Chesterton e por Belloc.

  3. Caro Jorge,

    Acho que perdi um texto que enviei, então envio este semelhante. Na verdade o texto se foca em uma pergunta: Devemos ou faz-se necessário criar um partido de viés distribucionista como o extinto PDC?

  4. Pegando a dica do Israel, sugiro dar uma olhada na terceira via expressa no livro The Crisis of Civilization de Belloc.

  5. Ygor,

    Eu não saberia dizer se tal se faz necessário, mas eu diria que, sim, sem dúvidas, há um enorme vácuo político no Brasil contemporâneo que urge preencher. Se se deve fazê-lo mediante ocupação de posições estratégicas (nos órgãos de imprensa, na Academia etc.), utilização dos partidos atuais (nem que seja um emprego meramente instrumental, para possibilitar o acesso – personalíssimo, ao fim e a cabo – às esferas de decisão política) ou fundação de novos partidos (ou mesmo de alguma outra maneira que não me ocorreu citar explicitamente agora, ou ainda, aliás, de todas elas combinadas), no entanto, parece-me uma questão contingente sobre a qual eu não me sinto confortável para opinar. O que eu diria é que, se alguém acredita-se capacitado a uma iniciativa neste sentido, faça-a, que ela há-de ser muito bem-vinda e, se não vai resolver sozinha os problemas do Brasil, ao menos será provavelmente capaz de os mitigar em certa medida.

    Abraços,
    Jorge

  6. A TL trabalha pelo PT e afins dentro da Igreja. Isso é nítido em várias paróquias. E sabemos que padres e diáconos fazendo campanha dentro da Igreja e durante a Missa rende grande número de incautos e mal catequizados para as fileiras comunistas, sem que estes percebam. Tenho a impressão que grande parte dos votantes fixos do PT e da Dilma vêm destas campanhas, e também das campanhas televisivas “católicas” que nem a doutrina da Igreja preservam. Por tudo isso eu penso que se faz necessário uma iniciativa, por nossa parte (amparada e/ou fincada na doutrina da Igreja), uma organização ou partido católico para, no mínimo, instruir os leigos e servir-lhes de apoio e referência nas escolhas políticas, pondo a descoberto as más propostas daqueles comunistas proeminentes que actuam dentro da Igreja.
    Se a base é a terceira via original pensada por Chesterton e Belloc, devemos afixá-la assim como é feito com o depósito da fé.

  7. «A doutrina social da Igreja não é uma ‘terceira via’ entre capitalismo liberalista e coletivismo marxista, nem sequer uma possível alternativa a outras soluções menos radicalmente contrapostas: ela constitui por si mesma uma categoria. Não é tampouco uma ideologia, mas a formulação acurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial.

    A sua finalidade principal é interpretar estas realidades, examinando a sua conformidade ou desconformidade com as linhas do ensinamento do Evangelho sobre o homem e sobre a sua vocação terrena e, ao mesmo tempo, transcendente; visa, pois, orientar o comportamento cristão. Ela pertence, por conseguinte, não ao domínio da ideologia, mas da teologia e especialmente da teologia moral» (João Paulo II, Encíclica Sollicitudo Rei Socialis, n. 41).

    A falta de estudo de vocês, defensores da “Missa” Nova e do Vaticano II, está entre o que de mais desedificante existe.

  8. Felipe, muito obrigado pela citação. Já vejo que foi infelicíssima a escolha da expressão “terceira via” – que eu não sabia consagrada em documento magisterial, mea culpa – para expressar o que quis dizer neste texto, que era, tão-somente, a necessidade dos católicos, mormente em sua vida pública, fugirem à dicotomia capitalismo-socialismo. E olhe que foi a última coisa que escrevi, com o texto já pronto…

    Vejo que foram dois os equívocos aos quais o emprego do termo pode inadvertidamente conduzir, e adicionei um post scriptum para os tentar evitar.

    Obrigado, mais uma vez,
    em Cristo,
    Jorge Ferraz

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