A nós não cabe senão continuar lutando

“Forçar conversões” é uma expressão que não tem o menor sentido. O ato de Fé é por definição um ato livre (este é aliás o fundamento positivo da liberdade religiosa) mediante o qual o intelecto, obedecendo à vontade movida pela graça, adere àquelas verdades reveladas por Deus e assim propostas pela Igreja. Não é portanto possível forçar ninguém a se converter; o que se consegue é, no máximo, um simulacro exterior sem nenhum compromisso de assentimento interno – e que, portanto, não é uma conversão verdadeira.

Ninguém pode ser, portanto, coagido a abraçar a Fé Católica: esta é uma verdade que, a despeito dos equívocos históricos por vezes cometidos por reis e imperadores, sempre integrou o patrimônio intelectual da Igreja. No entanto, os contornos do que se pode chamar aqui de «coação» são às vezes tênues. Sabe-se que ela não necessariamente precisa ser física, podendo se apresentar sob a forma de coação moral ou psicológica: isto é, é possível – note-se que digo apenas possível – que o consentimento interior de alguém que sofre intensa pressão social (digamos, de familiares) esteja tão viciado quanto o de um judeu que se fazia cristão-novo unicamente por medo do degredo.

O termo proselitismo tem, atualmente, a conotação negativa de uma pregação insistente cujo intento é coagir o destinatário a abraçar determinada mensagem. Basta notar o quanto a expressão em geral está ligada a determinada espécie de pregação protestante (geralmente neopentecostal ou da assim chamada teologia da prosperidade). A despeito de o uso do termo estar totalmente desvirtuado de sua acepção etimológica original (“prosélito” é meramente um neo-converso, sem nenhuma conotação de sectarismo ou coisa parecida), não se pode ignorar o fato de que, no seu emprego coloquial, o termo carrega uma não negligenciável carga negativa.

Não foi outra a razão pela qual Bento XVI, quando esteve no Brasil, disse que «[a] Igreja não faz proselitismo. Ela cresce muito mais por “atração”: como Cristo “atrai todos a si” com a força do seu amor» (Missa de abertura do CELAM13 de Maio de 2007). A rigor, a Igreja faz prosélitos sim; contudo – e este o sentido da declaração pontifícia -, Ela os faz livremente, e não por coação de nenhuma natureza.

O mesmo Bento XVI, dois dias antes, usava o termo exatamente neste sentido que se está aqui expondo: referiu-se às «pessoas mais vulneráveis ao proselitismo agressivo das seitas» e chamou a atenção para «certas formas de proselitismo, frequentemente agressivo» (Encontro com os bispos do Brasil11 de maio de 2007). Não há portanto margem para dúvidas: no discurso católico contemporâneo, o termo designa certa pressão psicológica empregada com vistas a dobrar a vontade de um terceiro e coagi-lo a “abraçar” determinado credo religioso – e não o mero fato de ajudar alguém a se tornar católico.

A conversão é ainda e sempre necessária. Por incontornável exigência filosófica, portanto, são também necessários os meios para a facilitar: chame-se-lhes proselitismo, apostolado, apologética. Todos esses, contudo, no seu sentido original e próprio, distantes do teor pejorativo que hoje detêm. Stat rosa pristina nomine. A nós não cabe senão continuar lutando. Independente do nome que dêem à batalha.

O julgamento de um bom cristão

Um leitor do Deus lo Vult! fez a gentileza de entrar em contato com o blog, enviando o seguinte comentário:

De: Edeorande Faria

Boa tarde Jorge. Estou com 70 anos de idade e tive minha vida como católico, como tantos outros. Confesso para você que nunca entendí nada de religião, a não ser o quer os padres falavam durante as missas, pois elas eram sempre a mesma coisa.. Aprendi a falar amém a tudo que se dizia. Até que um dia um amigo me perguntou sobre a Inquisição Católica, onde aqueles que não seguiram o Catolicismo foram torturados e queimados na fogueira, considerados como hereges. Gostaria se póssível, e sem enrolação, que você me esclarecesse sobre esta questão. Lí sobre a vida de grandes ex-católicos, como Martinho Lutero, Giordano Bruno, John Huss, esses dois ultimos queimados na fogueira pela Igreja Católica, por ordem do Papa, e eu comecei a me perguntar: será que eles estavam errados?? Quase que a totalidade dos evangélicos do mundo todo, são todos egressos do Catolicismo, será que estes milhões, também estão equivocados, e você esta certo??? Lí sua crítica e julgamento (coisa que um bom cristão não deve fazer) sobre o Espiritismo. Tenho vários amigos espíritas que nunca criticaram e nem fazem qualquer tipo de julgamento em relação ao nosso próximo, como nos ensinou Jesus. Fazem um trabalho junto as comunidades carentes, e pregam o amor ao próximo, como Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensinou, e Deus como nosso Criador. Penso que ao invés de você se acomodar em suas críticas ao Espiritismo( mesmo porque você não irá conseguir convencer os espíritas com os seus argumentos religiosos, uma vez que os recursos desta Doutrina é Ciência, Filosofia e tem um aspecto religioso) Você ainda é muito jovem e aparentemente inteligente, para ficar atacando as crenças de quem quer que seja…..Ficarei imensamente feliz em receber sua resposta, dentro dos padrões da boa educação, que eu sei que você tem . Fique com Deus…..

Por partes:

1. Há – inclusive neste mesmo blog – extensa bibliografia a respeito da Inquisição Católica, mesmo em português: há este livro de história do Direito, este documentário da BBC, estas páginas apologetas do pe. Devivier, há (sobre a Idade Média mais amplamente) a obra de medievalistas como Régine Pernoud e Jacques Le Goff. Para quem se interessa sobre o tema, a quantidade de material atualmente disponível é, graças a Deus, farta e diversificada – já bastante afastada dos preconceitos iluministas anacrônicos que, infelizmente, ainda assombram o Ensino Médio e as redes virtuais anti-católicas do séc. XXI.

2. No mérito, e de maneira bastante superficial, sim, houve pessoas que foram torturadas e queimadas. A tortura era forma de interrogatório amplamente aceita à época e, a fogueira, modalidade de pena capital universalmente praticada. A Igreja não inventou nem a tortura e nem a fogueira. (Leia-se, à guisa de desabafo, este texto.) Condescendeu com algumas características do seu tempo, tão-somente. Foi a primeira a estabelecer limites – primeiro em seus próprios procedimentos, depois inspirando as legislações civis – à violência estatal. Construiu o Ocidente que, hoje, Lhe vira as costas e, atacando-A de maneira injusta e absurda, precipita-se de modo cada vez mais acelerado à barbárie e ao caos.

“Inquisição”, aliás, é termo bastante ambíguo no que concerne à variedade de fenômenos históricos diversos que soem ser agrupados sob o mesmo nome. Houve, por exemplo, a Inquisição Romana, as inquisições ibéricas, as inquisições protestantes e os suplícios por matéria religiosa iniciados pelos tribunais seculares – embora só seja responsável por uma parcela ínfima dessa taxa de mortalidade, é à Igreja Católica que costuma ser atribuída toda a carnificina…

Ainda, fazer juízo de valor a posteriori sobre fatos ocorridos em sociedades distintas das em que nos encontramos hoje é crasso equívoco metodológico que, em história, recebe o nome de anacronismo. Já é evitado, parece-me, na Academia; mas urge que o seja também nos debates de internet. Contribuamos com este nobre propósito.

3. Martinho Lutero, Giordano Bruno, John Hus (e outros) foram hereges notórios e agitadores sociais da pior estirpe. Pode-se até questionar se a pena capital não lhes fora uma punição excessivamente dura; não é contudo possível condenar, de maneira acrítica, a reprovação social que as atitudes de cada um deles eles receberam dos seus contemporâneos.

De Lutero (cujo antissemitismo tem até uma página na Wiki espanhola), por exemplo, vale lembrar que a sua vocação para fazer deboche religioso da Fé alheia é coisa da qual pouco se fala nos dias de hoje. De Giordano Bruno, frade dominicano, diga-se apenas que foi católico que (aparentemente…) se fez protestante e depois voltou a ser católico, esgotando a benevolência de cada país e confissão religiosa pelos quais passou, culminando este seu itinerário tumultuoso – que pouco se parece com o de um “mártir da ciência” – com uma morte na fogueira mais pelo seu hermetismo do que por conta de uma suposta pregação heliocêntrica. E, de John Hus, registre-se que a sua história está entrelaçada com a de Wyclif – este cuja tradução da Bíblia não goza de prestígio sequer entre os protestantes, e a cuja defesa Hus consagrou as suas energias mesmo à custa da indisposição com os poderosos do seu tempo. Mais uma vez: pode-se até questionar se tais medidas não foram exageradas. Mas não se pode chamar tais pessoas de «grandes ex-católicos», a menos que “grandes” aqui se refira às lendas posteriormente reconstruídas em torno a eles, e não à visão que deles tinham os seus contemporâneos – católicos ou não.

4. Não se afere a verdade ou falsidade de uma doutrina pelo critério quantitativo: se fosse assim, errado estaria Cristo, e não a multidão que, diante de Pilatos, gritou para que este libertasse Barrabás e crucificasse o Filho de Deus. Sim, os milhões de evangélicos do mundo estão equivocados, porque não podem estar corretos ao mesmo tempo eles e os milhões de católicos que crêem naquilo de que eles desdenham e repudiam aquilo em que eles põem fé. Ao menos um desses conjuntos de “milhões” há de necessariamente estar errado, por necessidade imperiosa da lógica – por que não podem ser os evangélicos? Há, porventura, de serem necessariamente os católicos os equivocados?

Diga-se, no entanto, que uma coisa é a doutrina protestante estar errada, e outra coisa completamente diferente é o protestante concreto ser um falsário mau-caráter. Do fato de alguém abraçar uma doutrina equivocada não segue que seja, ele próprio, uma pessoa “maligna” ou algo do tipo: pode perfeitamente estar no erro em maior ou menor grau de boa-fé, e este julgamento compete a Deus somente fazer, no dia do Juízo. Nós, católicos, podemos e devemos dizer que tal ou qual doutrina está errada; o grau de responsabilidade de cada qual na adesão a esta doutrina errada, contudo, é matéria reservada ao Justo Juiz n’Aquele Dia.

São, assim, dois erros opostos a evitar: lançar o infeliz ao inferno por conta do erro objetivo que ele comete, e negar-se a apontar o erro objetivo por não ser possível lançar ninguém no inferno. Cumpre distinguir uma coisa da outra. Não sei da sorte eterna de absolutamente ninguém (a não ser, claro, dos santos canonizados pela Igreja): do acerto ou equívoco de uma determinada doutrina (v.g. da que nega a Imaculada Conceição da SSma. Virgem), no entanto, tenho o dever de saber – e todo mundo o tem, na medida da sua capacidade.

5. O espiritismo é uma falsa doutrina que afasta as almas de Cristo, uma vez que afasta as pessoas da Igreja por Ele fundada e, portanto, impede-lhes de obter a Graça que Cristo mesmo distribui mediante os Sacramentos da Sua Igreja. Eles podem perfeitamente fazer bonitos trabalhos sociais junto a comunidades carentes, podem pregar a paz e a concórdia e podem fazer outro sem-número de obras naturalmente boas, que Deus decerto há de levar em conta no dia do Seu julgamento; contudo,  e infelizmente, afastam-se a si próprios e aos outros da fonte de toda a graça que é a Igreja, e isso Deus também haverá de ter em consideração.

Sobre isso valem todas as considerações feitas acima. Do fato do espiritismo ser uma doutrina errônea e terrivelmente errônea, inspirada por Satanás para perder as almas, não segue que cada espírita em concreto seja, ele próprio, um Anticristo endemoniado. É possível abraçar mesmo uma doutrina satânica como o espiritismo em boa fé; a responsabilidade subjetiva de cada um, mais uma vez, compete a Deus e a mais ninguém julgar.

Sim, a verdade ou a falsidade objetiva das doutrinas compete à Igreja (não a mim e nem a ninguém) julgar. Foi o próprio Cristo que dispôs assim. Ou aceitamos isso com todas as suas consequências, ou não somos cristãos. É simples assim.

6. Não é portanto (e por fim) verdade que os cristãos não podem julgar. Eles não só podem como devem fazê-lo, a fim de não serem enganados pelas falsas doutrinas que medram na história, pelo joio que o Inimigo semeia no campo do Senhor. Todo mundo cita aquele «Não julgueis» dos Evangelhos, mas se esquece de citar o complemento que se lhe segue na mesmíssima linha: «Não julgueis pela aparência, mas julgai conforme a justiça» (Jo VII, 24). Não é portanto verdade que estejamos proibidos de julgar; o que não podemos é julgar conforme as aparências, mas sim perscrutar as coisas como elas realmente são para julgar conforme a justiça.

Ninguém pode, portanto, julgar o espiritismo ou o protestantismo ou qualquer outra doutrina pela aparência de bondade que os seus seguidores porventura ostentem (digamos, pelo auxílio material prestado a comunidades carentes, ou pela leitura dedicada das Sagradas Escrituras); antes, é mister julgar segundo a justiça, i.e., segundo o que a coisa realmente é. E quem diz o que as coisas realmente são é a Igreja de Nosso Senhor, “coluna e sustentáculo da Verdade” (1Tm 3, 15), longe da qual não se pode pretender seguir a Jesus Cristo, como o Papa Francisco tem repetido incontáveis vezes.

Afaste-se, portanto, essa história de que um bom cristão “não pode julgar” – a qual aliás sempre inclui, em si mesma e contraditoriamente, um julgamento àqueles que se censuram por estarem “julgando”… – e precisa se abster de apreciar as doutrinas que o mundo lhe apresenta (e se chocam com Aquela que ele recebeu do próprio Cristo mediante os Apóstolos). Não dá para não julgar. Quando alguém diz (v.g.) que Cristo não é Deus, tal sentença entra em rota de colisão com a Fé Católica que afirma ser Ele Deus e Homem verdadeiro, e portanto repudiar como errônea – julgar falsa – esta afirmação é uma necessidade lógica. Mais uma vez, isso nada diz a respeito da boa ou má fé do mensageiro. Mas a mensagem, esta sim, precisa ser analisada e valorada: e isso, que todo bom cristão deve fazer – a fim de não ser enganado e nem deixar no erro os seus próximos -, outra coisa não é que julgar.

Lutando contra meios-termos fraudulentos

Qualquer pessoa que tenha um mínimo de experiência política entende a estratégia de fazer “avançar” determinada agenda ideológica mediante um emprego trivial de dialética hegeliana. Consiste, basicamente, em forçar um meio-termo mediante a introdução, no cenário político, de uma posição propositalmente extremada. Assim, do embate entre a tese (o status quo) e a antítese (a nova proposta), emerge uma síntese que não chega a ser exatamente a novidade, mas tampouco continua sendo a situação anterior. Como a antítese era artificialmente extremada e nunca fora realmente levada a sério mesmo, os seus propagadores ficam felizes com qualquer espaço que consigam ganhar – para quem não tinha nada, o que vier é lucro. No extremo oposto, como a situação anteriormente estabelecida era de verdade, empírica e factual, qualquer espaço que ela perca é uma perda verdadeira. O emprego sistemático dessa estratégia simples – impondo antíteses sucessivamente mais alucinadas às sínteses (tornadas teses) que se forem conquistando – é capaz de conduzir, com bastante eficácia, os rumos de uma sociedade para uma direção que ela, em princípio, não estaria jamais disposta a tomar.

Como se defender disso? A maneira mais civilizada e racional é, lógico, simplesmente não levar a sério a propositura de uma demanda desonesta. Idealmente, as escolhas deveriam ser feitas entre diversas opções razoáveis, e não entre uma opção razoável e um extremo cujo objetivo é unicamente conseguir um resultado que se afaste da opção razoável. Um pacato frequentador de prostíbulos pode parecer um anjo de delicadeza perto de Jack, o Estripador; não significa, contudo, que o primeiro possa ser eleito modelo de como os homens devem tratar as mulheres! Condenar um desafeto político a vinte anos de trabalhos forçados pode parecer uma solução perfeitamente adequada quando existe alguém exigindo, aos berros, que ele seja fuzilado e esquartejado; mas quem disse que o esquartejamento deveria ser considerado uma opção em primeiro lugar? Coisa análoga pode ser vista na Igreja: a ideia de sancionar – mediante a administração do Sacramento da Eucaristia – segundas núpcias adulterinas após determinado transcurso de tempo pode parecer bastante razoável diante da demanda pelo divórcio amplo e irrestrito aos moldes do que existe na legislação civil; ora, mas esta última proposta não está e nem pode estar em discussão e, portanto, ela não pode ser considerada na hora de decidir que “tratamento pastoral” dispensar aos casais de segunda união!

Ignorar as demandas desonestas só funciona, contudo, quando existe suficiente massa crítica para reconhecer, logo ao primeiro golpe de vista, a canalhice da proposta. Se não houver quem se levante – e arraste os demais após si – contra a simples ideia de esquartejar o oponente político e depois espalhar os seus pedaços retalhados ao longo das quatro entradas da cidade, então o infeliz terá sorte se conseguir um degredo perpétuo. O ponto aqui, note-se, é que as pessoas em princípio não estariam dispostas a exilar o pobre-coitado; no entanto, apresentadas ao quadro tétrico da cabeça degolada e hasteada na ponta de uma lança, tornam-se mais receptivas ao exílio que antes repudiariam com veemência. Diante da possibilidade da chacina brutal, a injustiça do degredo adquire contornos de misericórdia. Do mesmo modo, no âmbito eclesiástico: diante da possibilidade de louvar os méritos espirituais da união homossexual, a simples retirada das censuras à legislação civil que a equipare ao casamento parece a coisa mais razoável do mundo, uma vitória até. Oras, mas quem disse que o “casamento religioso gay” deveria ser sequer posto em consideração, antes de qualquer coisa?

Quando não é possível rechaçar certas propostas in limine, e quando existe verdadeiro risco de que “meios-termos” fraudulentos sejam conquistados, eu penso que há duas coisas que precisam ser feitas, e uma terceira que, dentro dos limites da prudência, pode ser realizada.

Primeiro, é preciso recusar-se à comparação maliciosa e insistir na análise das coisas consideradas em si mesmas: quer-se saber se a doutor Fulano, que vez por outra tem o hábito de frequentar casas de tolerância, pode ser concedido um prêmio de cidadão virtuoso, e não se ele é melhor do que o Estripador britânico. Quer-se saber se a imposição de degredo (ou trabalhos forçados) a um oponente político é uma pena razoável, e não se fazer isso é mais justo do que matar e esquartejar o réu. Quer-se saber, por fim, se é doutrinariamente possível ministrar o Corpo de Cristo a quem se sabe encontrar-se em estado de pecado mortal objetivo, e não se isso é menos escandaloso do que abolir a indissolubilidade matrimonial que Cristo instituiu.

Segundo, é preciso denunciar a má-fé de quem procede dessa maneira. É preciso dizer, com clareza, que as ideias de esquartejar o desafeto político, homenagear um assassino de prostitutas ou instituir o casamento religioso gay são completamente absurdas. É preciso denunciar que os que as propõem na verdade não querem que elas sejam aceitas, mas sim anestesiar a assembleia para fazer passar como menos absurdas outras propostas – o degredo, a exaltação do libertino, o silêncio diante da iniquidade civil – que, em situações normais, seriam prontamente rechaçadas.

Terceiro, em certas situações, penso que pode ser legítimo usar as próprias técnicas dos bárbaros e demandar em público propostas extremadas no sentido oposto – a fim de desempenhar o ignóbil papel de boi de piranha, permitindo ao bom senso que tenha alguma chance de sobreviver. Quer-se exilar o desafeto político? Acorram às ruas, exigindo que ele seja condecorado com uma pensão milionária vitalícia, por ter tido a coragem de lutar por aquilo em que acreditava! Deseja-se enaltecer o homem lúbrico? Exija-se veementemente a sua responsabilização penal, draconiana, pela corrupção dos costumes, pela exploração das mulheres, pela degeneração social que ele perpetua e fomenta! Almejam os pastores não se indispôr com os poderes seculares? Exija-se-lhes que bradem pública, vigorosa e ininterruptamente contra o nefando pecado contra a natureza que clama aos céus vingança, que organizem imensas procissões penitenciais suplicando a Deus misericórdia pelas horrendas ofensas dos sodomitas, que instem os homens públicos e as regiões à desobediência civil – ameaçando estas com o interdito e aqueles com a excomunhão!

Sabe-se que a Igreja de Cristo é dotada de infalibilidade; logo, temos a certeza – dada por Deus mesmo – de que Ela não há, jamais, de ensinar o erro no lugar da verdade. O horizonte da infalibilidade, contudo, é restrito: abarca as declarações sobre Fé e Moral feitas ex cathedra, e pronto (*). Na imensa maior parte da atuação que a Igreja exerce no mundo, portanto, existem amplos espaços para as coisas darem errado, para as decisões terem resultados desastrosos, para os homens não terem acesso ao Evangelho e Deus Nosso Senhor perder valiosas almas pelas quais Ele verteu o Seu precioso sangue. É nesta seara que os inimigos da Igreja têm conquistado admiráveis vitórias com técnicas como a que expus acima. São estes os territórios, portanto, onde precisamos lutar – sem descanso! – a fim de os reconquistar para Cristo.

[Na verdade, como lembrou aqui o Felipe – a quem agradeço -, para ser exato é preciso dizer que o objeto da infalibilidade inclui também as verdades conexas com as de Fé e Moral (v.g. conclusões teológicas, fatos dogmáticos, canonizações etc.); o seu sujeito é não somente o Papa mas também o conjunto dos bispos; e o seu modo de exercício inclui o ordinário além do extraordinário. Cf., p.ex., OTT, Ludwig, Tratado acerca de la Iglesia, Cap. IV, §13, in Manual de Teologia Dogmática. Delimitada assim com mais detalhes a esfera de abrangência da infalibilidade católica, enfatize-se que os “amplos espaços para as coisas darem errado” supracitados evidentemente não incluem aqueles nos quais a Igreja é de qualquer modo infalível.]

Quem debocha da Igreja é de Cristo que debocha

Causou-me espanto esta notícia segundo a qual uma revista jesuíta (!), em solidariedade à Charlie Hebdo, após o recente atentado, resolveu publicar algumas charges do semanário francês agressivas ao Catolicismo (!!). Segundo explicou originalmente Étvdes, a tese era que rir de certos traços da instituição “Igreja” era «uma demonstração de força» (!), uma vez que mostrava que aquilo a que os católicos estavam realmente ligados [Cristo, suponho] está «além das formas sempre transitórias e imperfeitas [nas quais a Igreja visível se manifesta, acredito]».

[No original francês a que tenho acesso somente de segunda mão: C’est un signe de force que de pouvoir rire de certains traits de l’institution à laquelle nous appartenons, car c’est une manière de dire que ce à quoi nous sommes attachés est au-delà des formes toujours transitoires et imparfaites.]

A extravagante iniciativa recebeu diversas críticas; em particular este pedido de um jesuíta francês por «um pouco de bom senso» merece-nos alguma atenção. Como é possível que um católico ache que o escárnio da sua Fé é algo cuja divulgação possa ser sequer considerada por uma revista religiosa? A falta de visão sobrenatural e a pouca importância com a qual os editores da Étvdes tratam as coisas mais importantes da vida são de estarrecer. A revista – que se diz «de culture contemporaine»… -, com isso, mais parece um veículo de toda a podridão debochada, de mau gosto e descartável que se auto-intitula “cultura” nos dias de hoje. Desse tipo de mundanidades o mundo já está muitíssimo bem servido. Para quê pôr religiosos no desempenho de tão deplorável papel?

As caricaturas foram posteriormente retiradas. No lugar delas, a revista pôs uma nota sobre a «Repercussão», dizendo que a reprodução das irreverências era «um meio de afirmar que a fé cristã é mais forte do que as caricaturas que [dela] se podem fazer, ainda que os cristãos se sintam ofendidos». Ora, a explicação não faz nenhum sentido.

Primeiro, porque é óbvio que a fé cristã é mais forte do que as caricaturas. Qualquer ideia é mais forte do que as representações caricaturescas que os seus oponentes possam conceber para a ridicularizar. Isso independe da veracidade ou falsidade da ideia, sendo um simples dado da realidade: por definição, a caricatura é menor do que o caricaturizado. Também a fé islâmica ou o Nationalsozialismus são maiores do que as garatujas de Maomé ou os cartuns antinazistas britânicos da década de 30, por exemplo.

Segundo, porque quem se ofende são as pessoas mesmo, e não as suas crenças. Em qualquer agrupamento humano civilizado, é esta a razão que faz com que certos comportamentos sejam socialmente aceitos e, outros, reprováveis. Pretender que não haja problema com a blasfêmia porque “Deus Todo-Poderoso pode muito bem aguentar uma piada” é uma argumentação que não tem cabimento nem teológica e nem sociologicamente. Teologicamente é um absurdo, porque do fato de Deus ser perfeitíssimo só segue que a Sua glória intrínseca não sofre dano com o pecado dos homens: a glória extrínseca d’Ele, por sua vez, dado que depende não d’Ele próprio mas do mundo que Lhe é externo, aumenta ou diminui de acordo com os homens honrarem-No ou O rejeitarem. E sociologicamente é um nonsense porque, para além de quaisquer possíveis desavenças teológicas, indiscutivelmente o crente é ofendido com a blasfêmia, e isso por si só dificulta o bom e pacífico relacionamento entre os cidadãos que é um dos fins mais óbvios de qualquer sociedade.

Terceiro, por fim, porque a revista comodamente “se esqueceu” do que dissera anteriormente – e que é o seu erro maior. A questão de fundo é que, para os jesuítas da Étvdes, como eles disseram originalmente, há uma distinção radical entre um Cristo invisível e espiritual e as instituições humanas que se reúnem para falar d’Ele, há uma Igreja espiritual que nada tem a ver com a Igreja visível e histórica: isto, sim, explica que eles não vejam problema em escarnecer da Igreja Católica!

O problema é que tal se trata de uma concepção herética incontáveis vezes condenadas: a Igreja Católica é o Corpo Místico de Cristo e, portanto, não existem essas «formes toujours transitoires et imparfaites» além das quais a revista parece crer que Cristo está. Entre incontáveis outros, quem o disse – e muito recentemente – foi o próprio Papa Francisco: «Nenhuma manifestação de Cristo, nem sequer a mais mística, pode jamais ser separada da carne e do sangue da Igreja, da realidade histórica concreta do Corpo de Cristo». O que passa pela cabeça desses jesuítas franceses, que não dão ouvidos ao Papa nem mesmo quando é um jesuíta a sentar-se no sólio pontifício?

«Quem vos ouve, a mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita», disse Cristo aos Apóstolos – à Igreja, portanto (cf. Lc X, 16). Estas palavras continuam válidas nos dias de hoje, e em observância a elas podemos muito bem concluir: quem debocha da Igreja é de Cristo que debocha. Não se trata de nenhuma conclusão teológica de altíssima sofisticação: é matéria de doutrina católica a mais comezinha, da mais básica piedade popular. É questão de bom senso! Bom seria se os editores da Étvdes não tivessem somente retirado os cartoons blasfemos por conta da repercussão que eles tiveram. Bom seria se estes jesuítas tivessem se dado conta de que, na verdade, escarnecem de Cristo quando não se pejam de escarnecer da Igreja d’Ele.

Siamo tutti conigli

conigli

Certas verdades são bastante óbvias para serem problematizadas. É bastante evidente que homens são criados à imagem e semelhança de Deus e, únicos seres no mundo sensível dotados de inteligência e vontade, possuem uma dignidade intrínseca que os coloca a uma distância virtualmente infinita dos animais irracionais – inclusive dos coelhos. É óbvio, portanto, que não são coelhos os seres humanos em geral e nem muitíssimo menos os católicos em particular.

Uma outra coisa que é evidente para além de toda a evidência é que a Igreja Católica possui uma doutrina peculiar e bem conhecida a respeito da contracepção, segundo a qual – na conhecida formulação da Humanae Vitae – é “de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” (HV 14). E à Igreja, Mestra infalível em Fé e Moral, pode-se até acusar de ser pretensiosa; jamais, no entanto, de ser incoerente consigo mesma. Admitindo que a um observador externo seja legítimo perguntar se o ensinamento católico é verdadeiro ou falso, uma sua característica ninguém pode negar: ele é incomodamente constante.

Causou certo frisson a última declaração do Papa Francisco, segundo o qual católicos não devem se reproduzir como coelhos. Ora, trata-se de verdadeira evidência. É lógico que os católicos não devem se reproduzir “como coelhos”, e sim como filhos de Deus – a quem foi dirigido aquele mandato de “crescei e multiplicai-vos”. Não foi aos coelhos que Deus ordenou encher a terra e a submeter, e sim aos homens! Cumpre, pois, a estes procriar como convém à sua dignidade – que é muito maior, repita-se, do que a dos coelhos.

Ainda, simplesmente não é possível aos católicos reproduzirem-se como os simpáticos leporídeos. Isso porque, como disse Chesterton em certa ocasião, um homem nunca age igual a um animal: ou age de modo muito superior a ele, quando se comporta como homem; ou, então, muito inferior a ele, quando se esquece de sua dignidade e age de maneira irracional, instintiva, animalesca. Os seres humanos, portanto, jamais se reproduzem como animais: caso se esqueçam de que são homens, então agirão de maneira muito mais baixa, vil e degradante do que os pobres coelhos. E uma das formas de se esquecerem de que são homens está, precisamente, na busca irresponsável e egoísta pelo prazer venéreo em si mesmo, que é marca registrada dos dias de hoje. Um homem que viva praticando relações sexuais “casuais” e sem compromisso está agindo muito mais como um animal no cio do que outro, que tenha com a sua esposa um número de filhos maior do que a nossa sociedade decadente julga “conveniente”.

Houve quem pensasse que, com a sua declaração sobre coelhos, o Papa Francisco estivesse a legitimar de algum modo o controle de natalidade. Tal é insustentável por um sem-número de razões. Em primeiro lugar, como disse um santo – recente! – da Igreja, “são criminosas, anti-cristãs e infra-humanas, as teorias que fazem da limitação da natalidade um ideal ou um dever universal ou simplesmente geral” – e o Papa, que já se disse outras vezes “filho da Igreja”, sabe perfeitamente disso.

Em segundo lugar, a doutrina da Igreja a respeito da natalidade encontra-se, por excelência, na citada Humanae Vitae de Paulo VI. E o que já disse o Papa Francisco a respeito do seu predecessor? Em duas ocasiões recentes:

1. No “Encontro das Famílias” praticamente da véspera (sexta, 16 de janeiro): “Num período em que se propunha o problema do crescimento demográfico, [Paulo VI] teve a coragem de defender a abertura à vida na família. (…) Mas ele olhou mais longe: olhou os povos da terra e viu esta ameaça da destruição da família pela falta de filhos. Paulo VI era corajoso, era um bom pastor e avisou as suas ovelhas a propósito dos lobos que chegavam. Que ele, lá do Céu, nos abençoe nesta tarde! O nosso mundo tem necessidade de famílias sãs e fortes para superar estas ameaças. As Filipinas precisam de famílias santas e cheias de amor para proteger a beleza e a verdade da família no plano de Deus e servir de apoio e exemplo para as outras famílias. Toda a ameaça à família é uma ameaça à própria sociedade”.

2. No próprio vôo onde foi feita a declaração “polêmica” dos coelhos (tradução do Fratres, aqui): “O que eu quero dizer sobre Paulo VI é que a verdadeira abertura à vida é condição para o sacramento do matrimônio. Um homem não pode dar o sacramento para a mulher, e a mulher dar para ele, se eles não estão em concordância neste ponto de estarem abertos à vida. […] Mas o que eu queria dizer era que Paulo VI não era muito antiquado, mente fechada. Não, ele era um profeta que com isso nos disse para tomarmos cuidado com o neo-malthusianismo que vem chegando. Era isso o que eu queria dizer”.

Ora, quem é Paulo VI? É o Papa da condenação ao controle de natalidade. O que é “abertura à vida”? É a atitude de um casal receber generosamente os filhos que a Divina Providência julgar por bem lhe confiar. O que é “neo-malthusianismo”? É a doutrina que prega uma superpopulação atual, com a consequente necessidade de reduzirmos as nossas taxas de natalidade. Como é possível, então, que um Papa que louva o campeão da causa católica anti-contracepção, que relembra aos casais que eles devem – sob pena de nulidade matrimonial! – estar dispostos a receber os filhos que Deus lhes enviar, que manda tomar cuidado com a estória de que estamos vivendo em uma superpopulação a nos exigir controle de natalidade – como é possível, em suma, que um homem desses esteja, justo ele!, fazendo coro aos inimigos da Igreja e condescendendo à mentalidade antinatalista que ele próprio, por todos os flancos, se esmera em desconstruir? Que sentido isso faz?

Em terceiro lugar, no seio da própria entrevista concedida no vôo, apenas por duas vezes o Papa Francisco fala em números de filhos:

  • “Conheci uma mulher há alguns meses numa paróquia que estava grávida de sua oitava criança, que tinha tido sete cesárias. Mas ela quer deixar 7 filhos órfãos? Isso é tentar a Deus.”
  • “Eu acho que o número de 3 filhos por família que você mencionou – me faz sofrer – eu acho que é o número que os especialistas dizem ser importante para manter a população “indo”. Três por casal. Quando isso diminuiu, o outro extremo acontece. Ouvi dizer, não sei se é verdade, que em 2024 não haverá dinheiro para pagar pensionistas por causa da queda na população.”

Ou seja, se existisse algum limite concreto que o Papa estivesse tentando determinar para os católicos – coisa que não há e nem pode haver; mas o imaginemos, para argumentar – tal seria um limite mínimo de três, e não máximo de nada. Ora, isso vai muito longe do que o mundo pagão entende por “responsabilidade” familiar!

Em quarto lugar, por fim, porque há não muito tempo – há menos de um mês – o Papa Francisco dirigiu um discurso à Associação Nacional das Famílias Numerosas. Ora, trata-se de pronunciamento com um objetivo específico e previamente preparado; portanto, a mais mínima honestidade intelectual há de reconhecer ser ele mais fidedigno – para entender o pensamento do Papa a respeito da natalidade católica – do que as sabatinas feitas num voo de retorno após uma viagem de uma semana na Ásia. E, no citado discurso, é possível ler – entre outras coisas – o quanto segue:

  • [O]s filhos e as filhas de uma família numerosa são mais capazes de comunhão fraterna desde a primeira infância. Num mundo muitas vezes marcado pelo egoísmo, a família numerosa é uma escola de solidariedade e de partilha; e destas atitudes beneficia toda a sociedade.
  • A presença das famílias numerosas é uma esperança para a sociedade.
  • Portanto espero, também pensando na baixa taxa de natalidade que desde há tempos se regista na Itália, uma maior atenção da política e dos administradores públicos, a todos os níveis, a fim de dar o apoio previsto a estas famílias. Cada família é célula da sociedade, mas a família numerosa é uma célula mais rica, mais vital, e o Estado tem todo o interesse em investir nela!
  • A este propósito, são João Paulo II escrevia: «As famílias devem crescer na consciência de serem protagonistas da chamada política familiar e assumir a responsabilidade de transformar a sociedade: de outra forma, as famílias serão as primeiras vítimas daqueles males que se limitaram a observar com indiferença» (Exort. ap. Familiaris consortio, 44).

Esta é, em suma, a posição de Paulo VI, de S. João Paulo II, de S. Josemaría Escrivá, do Papa Francisco, a respeito do “controle de natalidade”. Esta é a resposta de generosidade que somos chamados a dar ao mundo. Esta é a vida que a Igreja nos chama a viver. E a viveremos, por mais que se levantem contra nós as forças do mundo.

Quanto aos coelhos, que incendiaram a polêmica, há (pelo menos) duas possíveis comparações a respeito deles que é possível fazer. Por um lado, podem simbolizar o sexo irresponsável, animalesco, no cio, fugaz, instintivo: e, neste sentido, é preciso repetir fortemente, com o Papa Francisco, que evidentemente não podemos – ninguém pode! – procriar como coelhos! No entanto, os coelhos também são símbolo universal da fertilidade, de uma prole numerosa, de filhos como rebentos de oliveira ao redor de uma mesa – de uma mesa cheia de crianças. E, neste outro sentido, é preciso ter a coragem de dizer, ousadamente, com os santos, com os Papas, com a Igreja, contra quem quer que seja, che, sì, siamo tutti conigli – somos todos coelhos. Apraza a Deus que o sejamos.

A mídia nunca esteve interessada em transmitir fielmente o pensamento papal

Alguém já disse que a única coisa pior do que uma imprensa hostil ao Papa é uma imprensa que o festeje. Os católicos têm-no percebido ao longo do último pontificado: o Papa Francisco pode dar mostras inequívocas de catolicismo zeloso setenta vezes por dia, que – mesmo assim! – só serão alçadas às manchetes seculares aquelas coisas que forem capazes de incutir, no leitor, uma imagem distorcida da Igreja Católica.

Qualquer mínimo contato com a realidade demonstra isso que estou falando. Hoje mesmo um amigo, não-católico, dizia-me achar que o Papa Francisco estava preparando uma “religião mundial”. Ora, isso não faz nenhum sentido. Não apenas por uma questão de direito (a Igreja Católica, nós o sabemos, é a instituição fundada pelo próprio Cristo para perpetuar a mensagem da Salvação através do tempo, e conta com o auxílio infalível do próprio Deus para desempenhar essa divina missão etc.), mas também por uma questão de fato: o Papa Francisco repete, o tempo todo, que somente Jesus Cristo salva, que somente na Igreja Católica se encontra Jesus Cristo, que é necessário fazer parte da Igreja etc. Provavelmente se pode dizer que ele é o Papa que mais insistentemente tem falado isso nas últimas décadas! À guisa de exemplo, algumas das coisas que anotei aqui no Deus lo Vult! (todas são palavras do próprio Papa Francisco – as referências estão lá):

  1. Março de 2013: «Cristo é o único Salvador do homem todo e de todos os homens. Este anúncio permanece válido hoje como foi no início do Cristianismo».
  2. Abril de 2013: «[S]implesmente é isto que Jesus disse: ‘Eu sou a Porta’, ‘Eu sou o Caminho’ para nos dar a vida. Simplesmente. É uma porta bela, uma porta de amor, é uma porta que não nos engana, não é falsa. Sempre disse a Verdade. Há talvez caminhos mais fáceis, mas são enganosos, não são verdadeiros: são falsos. Somente Jesus é o Caminho».
  3. Setembro de 2013: «[N]ão existe caminho de vida, não existe perdão nem reconciliação fora da mãe Igreja».
  4. Janeiro de 2015: «Nenhuma manifestação de Cristo, nem sequer a mais mística, pode jamais ser separada da carne e do sangue da Igreja, da realidade histórica concreta do Corpo de Cristo».

É de uma eloquência invejável, de uma clareza cristalina: de Bento XVI ou de S. João Paulo II eu não teria uma antologia dessas para apresentar! No entanto, a dar ouvidos à voz do povo, o Papa que vai inventar uma supra-religião amorfa que congrace promiscuamente os mais diferentes credos é… o Papa Francisco! Como é possível tamanha discrepância entre o que o Papa passa os dias dizendo e a percepção que tem dele o não-católico (ou mesmo o católico médio)?

O problema, como eu disse acima, é a mídia. Pior do que falar mal é enaltecer seletivamente. Quando o Papa Francisco repete extra ecclesiam nulla salus de duzentas maneiras distintas, ninguém dá um pio. Quando o Papa fala alguma coisa da qual se possa construir uma interpretação contrária ao Catolicismo, então é esta interpretação que se alardeia aos quatro ventos como se fosse a última declaração infalível de um Pontífice falando ex cathedra. A pior forma de conhecer um Pontificado é o perceber através da mídia anti-católica! É a pior ignorância, porque ela se manifesta travestida de informação fidedigna.

De ontem para hoje, contudo, este relacionamento amoroso fingido (impossível não lembrar os versos de Augusto dos Anjos: cuidado, que «a mão que afaga é a mesma que apedreja»…) entre a imprensa anti-católica e o Papa Francisco parece ter sofrido um duro golpe. Foi no avião que o levava às Filipinas. Referindo-se à liberdade de expressão, o Sumo Pontífice disse que o seu amigo poderia esperar (no vídeo se ouve bem o verbo aspettare) uma bofetada caso falasse mal de sua mãe. No original: «se il dott. Gasbarri, grande amico, mi dice una parolaccia contro la mia mamma, gli arriva un pugno!». Foi o suficiente.

Papa fala bobagem!, disseram daqui; Papa tropeça e diz besteira!, berraram acolá. O Reinaldo, aliás, gravou até um vídeo sobre o assunto. A mesmíssima hipertrofia seletiva que nos acostumamos a ver a mídia fazer nos últimos meses; o mesmo cherry-picking tantas vezes empregado para apresentar ideias estranhas ao Catolicismo como se viessem do Pastor Supremo da Igreja. Dessa vez, contudo, em desfavor da figura do Papa Francisco. Que sirva de lição. Oxalá o imbroglio possa provocar, doravante, uma certa sadia desconfiança da mídia laica, cuja competência para transmitir o pensamento religioso alheio é (para dizer o mínimo) bastante questionável.

O assunto nem merece muito latim. Para mostrar que o Papa – é óbvio! – não estava “justificando” o atentado islâmico, bastaria citá-lo no parágrafo imediatamente anterior à “declaração polêmica”: «non si può uccidere in nome di Dio. Questa è una aberrazione. Uccidere in nome di Dio è un’aberrazione». “Não se pode matar em nome de Deus. Isto é uma aberração. Matar em nome de Deus é uma aberração” – do jeito enfático que lhe é peculiar. Sinceramente, pode haver alguma dúvida?

No entanto – e à semelhança do que é feito com as pregações pontifícias ostensivamente católicas que eu listei mais acima -, quem liga? A mídia nunca esteve interessada em transmitir fielmente o pensamento papal. O seu modus operandi é o de pinçar algumas frases soltas e lhes dar o primeiro sentido estapafúrdio que lhe vier à cabeça: há anos é assim. Se agora isso é feito de maneira a “azedar” as relações midiáticas com o Papa Francisco, louvado seja Deus!, tanto melhor. Tem feito muito mal à Igreja a imprensa que enaltece o Papa. Parece que estávamos precisando, de novo, de uma mídia que o denegrisse.

Quando morre um sacerdote do Deus Altíssimo…

Faleceu, na noite da última segunda-feira (12), aos 88 anos, o padre salesiano José Rolim Rodrigues. Recebi por WhatsApp o “santinho” abaixo, e reconheci pela fotografia o sacerdote de quem não me lembrava pelo nome: provavelmente a maior parte dos católicos que se confessaram, nos últimos anos, na igreja do Salesiano daqui de Recife, tem um débito espiritual para com o padre Rolim.

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Sim, eu o conheço…! Ouviu minha confissão por diversas vezes ao longo de anos. Entrar na portentosa Basílica antes do início da Missa vespertina e encontrá-lo, lá, na salinha que faz as vezes de confessionário, era um verdadeiro bálsamo para as chagas adquiridas na peregrinação espiritual nossa de cada dia. Ia haver confissão! Somente entenderão a alegria contida nessas simples palavras aqueles que já experimentaram a tristeza de se deparar com um confessionário vazio (*) num momento em que sua alma, estraçalhada, reunia as últimas forças para lançar aos Céus um desesperado grito de socorro – que se perdia no vazio.

[(*) “Confessionário vazio”, claro, é uma metáfora. Refiro-me a padres disponíveis para ouvir confissões. Praticamente não há mais confessionários em lugar algum, e infelizmente a igreja do Salesiano não é exceção a essa regra. Aos que tinham o costume de frequentá-la, talvez a imagem que lhes provoque semelhante desolação seja a da estola roxa posta sobre o genuflexório… esperando um sacerdote que a envergasse…]

Lembro-me das vezes em que com ele me confessei. “Quanto tempo que não se confessa?”, ele sempre perguntava. “Mora com seus pais?”, “é solteiro ou casado?”, “trabalha?”, “estuda?”, “tem ido à Missa?”, e tantas outras perguntas que o hábil médico de almas manejava para, mediante elas, conquistar aos seus penitentes uma confissão bem feita. E lá se iam os meus pecados, horrendos, sucedendo-se em assustadora profusão, desfilando tetricamente diante dos olhos da memória…! Ao final, ele, sereno, sorria e dizia – tocando-me paternalmente o braço – quase invariavelmente: “Tá bom. Arrependido de todos, todos os seus pecados diante de Deus, como você se encontra agora, peça o perdão e diga, por sua penitência, um pai-nosso e dez ave-marias. Diga o ato de contrição”.

E eu o rezava. Ato contínuo, em voz suficientemente alta para ser ouvido, iniciava o reverendíssimo sacerdote: «Deus, Pai de Misericórdia, que pela Morte e Ressurreição do Seu Filho reconciliou o mundo consigo…» – não era em todo lugar que se conseguia a fórmula completa da Absolvição! «E eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo». E eu respirava, enfim aliviado. E a Redenção acontecia de novo. E havia paz.

Eu costumo frequentar aquela igreja do Salesiano, onde me casei. E, agora, fico imaginando como vai ser passar ao lado da salinha de confissões e não mais encontrar lá, sentado, o sacerdote através de cujas mãos eu recebi, tantas e tantas vezes, o perdão de Deus e uma nova chance de Lhe ser fiel. O padre Rolim foi um fiel dispensador das graças do Altíssimo, e agora eu fico dividido entre dois sentimentos antagônicos: por um lado, o temor de não saber quem irá ocupar-lhe o posto (virá alguém?) e, por outro, a esperança de que ele esteja, agora, colhendo os frutos de uma vida dedicada à messe de Cristo. Mas a serenidade é maior do que a tristeza. As boas lembranças sobrepujam a ausência. A esperança é maior do que o temor do futuro. Obrigado, padre Rolim.

Quando morre um sacerdote do Deus Altíssimo e, dele, os seus fiéis se recordam com carinho e gratidão, é sinal de que ele pode dizer, diante do Justo Juiz, ter combatido o bom combate e terminado a sua carreira guardando a Fé. Que a Santíssima Virgem – a quem o padre Rolim tanto me fez rezar! – possa recebê-lo o quanto antes nas moradas celestes. Que as minhas feridas, tantas vezes saradas pelas mãos dele, possam pesar em favor do reverendíssimo sacerdote no seu julgamento. E que ele, que tantas vezes perdoou os meus pecados enquanto esteve aqui na terra, possa se lembrar de mim e de minha família, um pouco que seja, agora que pode mais diante de Deus.

Requiem aeternam dona ei, Domine,
et lux perpetua luceat ei.

Requiescat in pace,
amen.

A liberdade de expressão e os seus limites

Um leitor do Deus lo Vult! deixou, aqui, o seguinte comentário:

Sobre a liberdade de ofender e escarnecer, como se pode definir que alguém foi ofendido ou escarnecido se os pontos de vista são tão diferentes? Essa batalha que deve ocorrer no âmbito civil e com critérios muito claros. Pois muitos do movimento gay também consideram ofensivo que representantes das igrejas apareçam na TV bradando que os homossexuais são pecadores, pode-se evocar a liberdade de expressão nesse caso ou estamos diante de um outro limite para a liberdade de expressão?

Penso que o assunto merece um post à parte.

Antes de qualquer coisa, o problema, a nível teórico, se resolve de maneira muitíssimo simples: a rigor, a única liberdade que existe é «a liberdade fundamentada sobre a verdade» (Paulo VI, Mensagem para o 9º dia mundial das comunicações sociais, 19 de abril de 1975). A fórmula de Pio XII (Miranda Prorsus, Parte Geral, “Liberdade de Difusão”), por sua vez, é bastante intuitiva e pode nos ser muito útil nesta seara:

[A] verdadeira liberdade consiste no uso regrado da difusão daqueles valores que ajudam ao aperfeiçoamento do homem.

Assim, o único discurso que pode pretender propriamente um “direito” à existência em sociedade é, portanto, o discurso verdadeiro e bom. A mentira, o erro e o engano não podem ter um direito infrene à livre-proliferação em público, e não tem o menor cabimento conceder às verdades e às fábulas o mesmo status social. Enquanto este princípio generalíssimo não for assimilado, não se vai conseguir resolver a contento o problema da «liberdade de expressão» nas sociedades complexas contemporâneas.

Deve ser buscado o «aperfeiçoamento do homem», pois bem. Em teoria, está perfeito. A nível mais concreto, contudo, a questão se impõe com contornos mais complicados a partir do momento em que diferentes pessoas não conseguem entrar em mútuo acordo a respeito de qual seja, especificamente, o discurso verdadeiro e qual o falso, qual o pernicioso e qual o útil. O socialismo matou milhões de pessoas ou é o responsável por avanços civilizacionais de outro modo inalcançáveis? A democracia representativa brasileira contemporânea é eficaz para reproduzir fidedignamente a vontade política dos cidadãos, ou é um instrumento de manipulação demagógica concebido e executado para atender a interesses particulares inconfessáveis? A religião verdadeira é a Católica Apostólica Romana ou é o Islão? Como saber qual dos discursos é verdadeiro e proveitoso,  e qual é falso e daninho? Onde está a verdade?

Evidentemente, não se negam as dificuldades existentes para identificar quem está com a razão em cada caso concreto. É óbvio que a verdade a respeito de toda e qualquer coisa não é imediatamente evidente a toda e qualquer pessoa. Há, no entanto, maneiras civilizadas e inteligentes de minimizar esta contingência:

1. Via de regra, descobrir o que não é verdade é mais fácil do que identificar o que é verdade, e existem muitos casos em que fazê-lo está ao alcance de qualquer pessoa. Por exemplo, diante de alguém que apresenta o punho cerrado e pergunta “o que tenho na mão?”, pode ser bastante difícil descobrir o que a mão fechada esconde; não obstante, é facílimo dizer, com bastante segurança, o que ela não esconde. Diante de tal indagação, alguém pode não saber responder ao certo se o que está na mão do interlocutor é uma moeda, uma tampa de caneta ou um piolho-de-cobra; mas qualquer um consegue dizer, com bastante segurança, que o que está lá não é uma jaguatirica, um capacete de moto tamanho padrão ou a Grande Muralha da China.

As questões que interessam à sociedade são um pouco mais complicadas do que este exemplo ilustrativo, é verdade, mas mesmo entre aquelas é possível encontrar vastos territórios de coisas que inequivocamente não «ajudam ao aperfeiçoamento do homem», para usar a fórmula de Pio XII. Por exemplo, a imensíssima maior parte das pessoas há de concordar que a proposta de acabar com a pobreza exterminando fisicamente os pobres é totalmente inadmissível, e está disposta até mesmo a conceder que a veiculação pública de semelhante ideia possa e deva ser inibida pelos poderes públicos. No atual estado de coisas, aliás, não faz o menor sentido alguém protestar contra a “imposição de limites à liberdade de expressão”: em qualquer lugar civilizado do orbe ela já tem limites, aceitos pacificamente pela esmagadora maioria dos membros da sociedade.

2. Dada a intrínseca contingência humana e a (conseqüente) natural e inevitável falibilidade de tudo o que ele produz – inclusive julgamentos -, nenhum tema pode ser “indiscutível” em absoluto. Futebol, política e religião, tudo, há que se discutir sim. No entanto, duas coisas precisam ser aqui observadas. Por um lado, qualquer assunto só é discutível em razão inversa à solidez que ele estabeleceu na sociedade: isso significa que as coisas com as quais virtualmente todo mundo concorda precisam de novos e fortes argumentos para serem colocadas em discussão, enquanto aquelas que encontram maior resistência social para se disseminar têm exigências argumentativas mais modestas (*). Por todo lado, “discutir” significa se utilizar de um discurso racional argumentativo para convencer o interlocutor de uma determinada tese: a simples peça publicitária (pior ainda, enganosa), a ofensa gratuita, a desmoralização do “oponente” e coisas parecidas estão fora do escopo dessa discutibilidade universal de todas as coisas aqui apresentada.

[(*) No Brasil atual, note-se, ocorre justamente o contrário: coisas evidentíssimas e que gozam de ampla aceitação popular, como por exemplo que o aborto é moralmente condenável e não deve ser aceito, discute-se com a superficialidade das escalações da seleção brasileira, o tempo todo, em todos os foros possíveis e imagináveis. Por sua vez, a uma coisa de que ninguém (a não ser uma meia-dúzia de ditos intelectuais) se convence, que não haja diferença alguma entre o casamento vitalício e monogâmico entre o homem e a mulher e a mera união entre dois homens ou duas mulheres, quer-se conceder ares de indiscutibilidade, chegando até mesmo à criminalização do contraditório…]

Duas implicações decorrem daqui: inexiste um direito de ofender, uma vez que toda e qualquer discussão deve ser construída sobre as bases da argumentação racional e não de ofensas gratuitas; e ao mesmo tempo ninguém tem um direito de não ser ofendido, um vez que o detentor de uma ideia não pode alegar “ofensa” para coibir uma refutação intelectual, racionalmente fundamentada, daquela ideia. Abrem-se, assim, as portas para o futuro e o progresso, ao mesmo tempo em que se protegem as conquistas civilizatórias já historicamente adquiridas.

3. Por fim, é necessário que haja instâncias de decisão para apaziguar os ânimos e arbitrar possíveis discussões entre cidadãos que possam surgir, mormente nos casos-limites (“ah, isso é ridicularizar a minha crença!”, “não, senhor, trata-se de emprego de reductio ad absurdum para demonstrar racionalmente a falsidade da sua tese”…). Tais instâncias necessariamente serão uma espécie de elite intelectual, comprovadamente hábeis na arte de aplicar os princípios acima elencados na solução de conflitos concretos; e precisarão, igualmente, ser dotadas de legitimidade moral para fazer valer as suas decisões sobre os contendedores, i.e., precisarão exercer, em quanto maior medida melhor, uma autoridade natural sobre a sua esfera de “jurisdição”.

Em observância ao princípio da subsidiariedade, é preferível que tais instâncias se multipliquem em diversos níveis – familiar, condomínio/bairro, comunidade, município, região metropolitana, estado etc. -, preservando assim características e valores locais ao mesmo tempo em que se evita a ingerência de pretensos iluminados na autodeterminação dos legítimos agrupamentos sociais intermediários. Começa-se a discutir religião, assim, dentro de casa, e não nos jornais das metrópoles. São os grupos de pais que decidem a respeito da educação de seus filhos, e não os ministros de Brasília.

À luz de todo o exposto, por fim, responde-se ao comentário que deu origem a este post da seguinte maneira:

  • identifica-se a ofensa, primeiramente, pelo critério da evidência: um discurso argumentativo a respeito do que quer que seja é uma coisa, e a veiculação de peça publicitária aviltante é outra coisa completamente distinta;
  • nos hard cases, é necessária a intervenção de uma instância superior, o mais localizada possível, e que (evidentemente) goze de autoridade sobre todas as partes envolvidas no litígio, a fim de discernir se se trata de exercício adequado da liberdade de expressão ou não;
  • o critério para a difusão pública de discursos não é o “movimento gay” e nem ninguém “sentir-se” ou deixar de se sentir “ofendido”, e sim se a mensagem veiculada ajuda «ao aperfeiçoamento do homem» ou não; isso se determina, mais uma vez, pelos critérios supramencionados da racionalidade do discurso e do prestígio (ou falta de prestígio) social de que gozam as teses em lide.

Concordo que é muito difícil obter consenso entre pessoas diferentes; tal, contudo, torna-se completamente impossível se a discussão e o debate racional são socialmente desestimulados. É bem provável que a plena concórdia a respeito de tudo seja inalcançável; penso, no entanto, que existem amplas margens para consensos substanciais a respeito de um grande número de coisas – para a obtenção dos quais é contudo necessário, mais uma vez, que a discussão pública, séria e honesta seja cada vez mais incentivada e não tolhida. Um mundo perfeito é sem dúvidas impossível, mas isso não dá a ninguém o direito de desistir de trabalhar por um mundo um pouco melhor do que este que está aí: em direção a este objetivo, sim, nós podemos e devemos caminhar com valentia e determinação.

A Igreja universal e as Igrejas particulares

Creio na Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica – assim reza o Símbolo Niceno-Constantinopolitano que professamos nas nossas missas. Uma dúvida pode ocorrer a quem se demore a meditar um pouco sobre o assunto: ao que parece, «Igreja» pode significar duas realidades (interdependentes, sem dúvidas, mas a rigor distintas) com as quais os católicos travam contato em sua vida espiritual. Uma, a Igreja particular, concreta, à qual territorialmente pertencem; outra, a Igreja universal, “Católica” propriamente, da qual fazem igualmente parte todos os católicos de todas as partes do mundo. A uma Igreja particular pode pertencer um católico e, outro, não; à Igreja Universal, contudo, pertencem todos os membros (católicos, evidentemente) de toda e qualquer Igreja particular do orbe.

Consideradas as coisas dessa maneira, poderia ser tentador pensar que a Igreja universal fosse formada pela reunião de todas as Igrejas particulares – as quais, em seu conjunto, constituiriam a Única Igreja de Cristo. A relação entre Igreja Universal e Igreja Particular seria, assim, uma relação todo-parte. A ordem de constituição da Igreja seria “de baixo para cima”, do mais concreto ao mais abstrato, do particular ao genérico: das Igrejas particulares para a Igreja universal.

Este assunto foi abordado recentemente no blog do pe. Hunwicke, e a resposta do conhecido sacerdote é taxativa: na verdade, quem vem primeiro é a Igreja Universal. Ela vem primeiro temporalmente, porque já nasce Una em Pentecostes; vem primeiro teologicamente, porque é Ela que é o Corpo Místico de Cristo; e, por fim, vem primeiro ontologicamente, porque as Igrejas particulares provêm d’Ela e não o contrário. Não é exato, portanto, afirmar que a Igreja universal seja a soma das Igrejas particulares: são estas, na verdade, que são realizações d’Aquela.

Não se trata de mero preciosismo: o tema tem relevância, uma vez que (ainda) ganha espaço uma eclesiologia que pretende “construir” a universalidade da Igreja a partir das especificidades das Igrejas particulares. Assim, por exemplo, poderia haver espaço para certo desacordo – mesmo em temas morais ou doutrinários… – entre o Bispo de uma Igreja particular e o Papa, Pastor da Igreja universal. É a antiga tese de Kasper esposada pelo pe. Libânio (p. 127): a “precedência ontológica e temporal” da Igreja universal sobre a particular seria uma “eclesiologia (…) anterior ao Vaticano II”. A perspectiva na qual “a Igreja local está no centro de modo claro e decisivo”, por sua vez, seria a “virada eclesiológica do Concílio Vaticano II”.

Sabe-se bem que essas tentativas de opôr o Vaticano II ao (dito) Magistério pré-conciliar carecem de fundamento: são, sempre, retórica vaniloquente de falsos mestres, cuja propriedade para ensinar a Doutrina Católica é sempre inversamente proporcional aos arroubos com os quais alardeiam as maravilhosas novidades teológicas das últimas décadas. Neste caso, contudo, é ainda mais fácil demonstrar a falsidade da tese: há um documento da Congregação para a Doutrina da Fé, assinado pelo então Card. Ratzinger e aprovado por São João Paulo II, que a refuta específica e pormenorizadamente.

Trata-se da Communionis notio, que vale uma leitura na íntegra, e da qual cito (destaques no original):

  • «Por isso, a Igreja universal não pode ser concebida como a soma das Igrejas particulares nem como uma federação de Igrejas particulares. Ela não é o resultado da sua comunhão, mas, no seu essencial mistério, é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular» (n. 9).
  • «Na verdade, ontologicamente, a Igreja-mistério, a Igreja una e única segundo os Padres precede a criação e dá à luz as Igrejas particulares como filhas, nelas se exprime, é mãe e não produto das Igrejas particulares» (id. ibid.).
  • «O Bispo é princípio e fundamento visível da unidade na Igreja particular confiada ao seu ministério pastoral, mas para que cada Igreja particular seja plenamente Igreja, isto é, presença particular da Igreja universal com todos os seus elementos essenciais, constituída portanto à imagem da Igreja universal, nela deve estar presente, como elemento próprio, a suprema autoridade da Igreja: o Colégio episcopal “juntamente com a sua Cabeça, o Romano Pontífice, e nunca sem ele”» (n. 13).

Não há portanto espaço para tergiversar: até os termos são os mesmos. Ao contrário do que diz o pe. Libânio (e outros), portanto, a Igreja universal ainda «é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular», e isso é a única eclesiologia “vigente” – é a boa eclesiologia “moderna” da Igreja “pós-conciliar”, redigida pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (depois Papa) e chancelada por São João Paulo II. É assim que a Igreja  entende-Se a Si mesma. É esta a verdadeira eclesiologia católica. Qualquer coisa que se oponha a isso deve ser prontamente rechaçada como doutrina espúria e já condenada pelo Magistério – inclusive recente! – da única e verdadeira Igreja de Nosso Senhor: a única que pode, com propriedade, dizer ao mundo como Se compreende.