No amor e na verdade

As manchetes ribombam mundo afora: Papa quer que divorciados casados de novo não sejam tratados como excomungadosPapa pede que divorciados não sejam tratados como excomungadosPapa: divorciados que casam novamente ‘não são excomungados’! Dir-se-ia alguma revelação fantástica, alguma novidade inaudita; trata-se, no entanto, do lugar-comum mais comezinho, que certamente todas as pessoas saberiam se tivessem prestado atenção em suas aulas de catequese – e que, com toda a certeza, os correspondentes de religião dos jornais tinham e têm obrigação de o saber de cor, se quiserem fazer jus ao trabalho que se propõem a fazer.

É evidente que os divorciados não estão “excomungados” (ao menos não pelo fato de serem divorciados recasados) e nem nunca o estiveram. Os adúlteros sempre foram merecedores das mais ásperas censuras, é fato, mas não me consta que tenham sido em alguma época fulminados de excomunhão – e, certamente, não o eram até ontem (ao contrário do que as manchetes dão a entender!), antes de a imprensa alardear como se fosse a maior novidade do mundo aquilo que os católicos sempre souberam.

Simplificando as coisas (uma vez que a similaridade entre as palavras “comunhão [eucarística]” e “excomunhão” pode levar a crer que não poder participar da comunhão eucarística é o mesmo que estar excomungado), existem dois tipos de pessoas: as que fazem parte da Igreja Católica e as que não fazem parte da Igreja Católica. A “excomunhão” é uma pena mediante a qual o sujeito, que fazia parte da Igreja, é d’Ela expulso e a Ela deixa de pertencer. Portanto, quem é excomungado não faz parte da Igreja Católica. Por não fazer parte da Igreja Católica, evidentemente, não pode participar dos Sacramentos, como não o podem um herege protestante, um pagão ou um ateu.

As pessoas que fazem parte da Igreja Católica – e aqui, por definição, está-se falando daquelas que não estão excomungadas – dividem-se entre as que estão em estado de graça e as que não estão em estado de graça. O estado de graça é a situação de amizade com Deus que se adquire com o batismo, se perde com o pecado mortal e se recupera com a confissão sacramental; portanto, quem comete pecado mortal e não se confessa não está em estado de graça. O adultério é pecado mortal. Os divorciados recasados estão em adultério. Logo, os divorciados recasados, enquanto não se confessarem, estão em pecado mortal, não estão em estado de graça.

Certos sacramentos – chamados sacramentos “de vivos” – exigem o estado de graça para serem licitamente recebidos. Exemplo máximo desta espécie de sacramentos é o Sacramento da Eucaristia, do qual S. Paulo falou que comia e bebia a própria condenação quem O comesse e bebesse indignamente. A recepção da Santíssima Eucaristia – a comunhão sacramental – exige o estado de graça. Quem está em pecado mortal não pode, portanto, comungar. Adultério é pecado mortal. Os divorciados recasados estão em adultério. Os divorciados recasados não estão em estado de graça e, portanto, não podem comungar.

Nem todo mundo que não pode comungar não o pode por não fazer parte da Igreja Católica! Quem não é católico (p.ex., quem está excomungado) não pode comunga, é evidente; mas quem não está em estado de graça, mesmo sendo católico, também não pode se aproximar da comunhão eucarística. Os divorciados recasados não podem comungar por conta deste segundo motivo. Não pelo primeiro. É óbvio.

Que isso não se trata de novidade nenhuma é coisa bastante fácil de se mostrar. Abra-se, por exemplo, a Sacramentum Caritatis. Exortação pós-sinodal, escrita há apenas oito anos. Ora, isso é já no terceiro milênio; não é crível que a realidade familiar contemporânea seja substancialmente diferente daquela de 2007. Pois bem. Lá, na década passada, um Sínodo dos Bispos já discutiu o “problema” da admissão dos divorciados recasados ao Sacramento da Eucaristia – que, hoje, quer-se fazer acreditar que é uma discussão importantíssima e inédita em vinte e um séculos de Cristianismo. Um Sínodo dos Bispos, dizia-se, já o discutiu um dia desses. E decidiu (negrito meu):

O Sínodo dos Bispos confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (Mc 10, 2-12), de não admitir aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o seu estado e condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados re-casados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos (Sacramentum Caritatis, 29).

Ora, dizer que os divorciados recasados «continuam a pertencer à Igreja» é a mesmíssima coisa que dizer que eles «não são excomungados». O que Bento XVI disse há oito anos, o Papa Francisco repetiu-o agora. À época, a mídia fez um escarcéu porque o Papa dissera que o divórcio era una piaga; hoje, a mídia faz uma festa para ocultar que o Papa disse que é preciso acolher os divorciados recasados no amor e na verdade.

No amor e na verdade! A expressão se encontra na catequese pontifícia (o itálico é meu): «é necessário um fraterno e atento acolhimento, no amor e na verdade, para com os batizados que estabeleceram uma nova convivência depois do fracasso do matrimônio sacramental». Amor na verdade. Lembra alguma coisa?

«A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira». Assim se inicia um outro documento de Bento XVI, a encíclica Caritas in Veritate. Tudo bem, é uma encíclica social. Mas veja-se se a introdução não serve como uma luva para as presentes celeumas a respeito de divorciados e acesso aos sacramentos:

Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente (Caritas in Veritate, 3).

E ainda, a se grafar em faixas enormes a serem estendidas a cada vez que alguém vier falar em dar a comunhão aos divorciados recasados:

Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo (CV 4).

Eis, portanto, o que significa acolher «na verdade» – e outra coisa não é possível fazê-lo significar. Não dentro da Igreja de Nosso Senhor – Aquela que, «fundada sobre Cristo, não obstante as inúmeras tempestades e os nossos muitos pecados, permanece fiel ao depósito da fé no serviço, porque a Igreja não é dos Papas, dos Bispos, dos padres e nem mesmo dos fiéis; é só e unicamente de Cristo» (Papa Francisco na homilia de 29/06/2015).

Decerto o mundo, inimigo da Igreja, havia de tentar obscurecer a mensagem do Evangelho; decerto a mídia anticlerical haveria de tentar semear a confusão. Não é a primeira vez, nem será a última. O que importa aos homens é permanecer firmes na Verdade, e não dar ouvidos às opiniões levianas que saem na mídia. Porque a Igreja, que não é nem mesmo dos Papas, muito menos o é da imprensa. Muito menos o é das reivindicações da moda. Por mais que rujam os demônios, a Igreja é e vai continuar sempre sendo «só e unicamente de Cristo». E, por mais que se tente, ninguém será capaz de vencer a força desta verdade.

Fala-se muito em como a Igreja deveria se portar; ninguém quer ouvir como a Igreja ensina que os homens devem proceder. Não engrossemos o coro dos primeiros. Ouvir a voz da Igreja outra coisa não é que ouvir a voz de Cristo. E felizes – mil vezes felizes! – os que, ouvindo esta Doutrina, puserem-na em prática.