A tradução cega-nos à nossa ignorância

Descobri ontem, ouvindo em latim o Evangelho das Bodas de Caná, que o chefe dos serventes — aquele que primeiro provou a água que Nosso Senhor transformara em vinho — se diz, em latim, architriclino. Ainda: que a palavra existe em português, ar·qui·tri·cli·no, Mordomo-mor da Roma Antiga: trata-se de uma função social específica, inserida em um contexto cultural que nos é estranho, e cujos contornos não nos é possível enxergar com clareza. A tradução de um substantivo comum para uma locução substantiva chamou-me a atenção para (mais) esta dificuldade de se traduzir línguas antigas: certas coisas deixam de existir com o passar do tempo, e isso faz com que as palavras que se lhes referiam caiam também em desuso — a ponto de se transformarem em termos técnicos incompreensíveis ao leitor vulgar.

Há não muito tempo eu lia também em algum lugar que, entre os judeus, o grau superlativo se formava pela repetição da palavra: assim “rei dos reis” ou “santo dos santos”, que nos dias de hoje se diriam provavelmente realíssimo e santíssimo. Aqui, ao menos a locução não é desprovida de significado, e o leitor vernacular consegue perceber que o “rei dos reis” está acima dos reis assim como estes estão acima dos que a eles são sujeitos. Mas é só quando se entende a lógica da gramática semítica — duplicar a palavra para significar o seu grau máximo — que é possível perceber a dimensão do que significar dizer, de Deus, que Ele é ἅγιος ἅγιος ἅγιος – Santo, Santo, Santo.

São dois pequenos exemplos apenas para dizer que o recurso aos originais é importante. Mais até: que as traduções constituem-se em um verdadeiro obstáculo ao conhecimento, na medida em que nos impedem de enxergar as nuances do texto antigo que não são perfeitamente reprodutíveis na língua moderna. Em uma palavra, a tradução cega-nos à nossa ignorância, na medida em que, por compreendermos — até perfeitamente — o recorte linguístico, simplesmente não percebemos os sentidos possíveis do texto original. Isso significa que há provavelmente uma infinidade de coisas que não sabemos por detrás de cada perícope bíblica, independente do quanto estejamos familiarizados com ela. É preciso muito cuidado ao se aproximar das Escrituras Sagradas: as mais das vezes, não somos capazes senão de arranhar-Lhes a superfície.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

5 comentários em “A tradução cega-nos à nossa ignorância”

  1. SÓ A IGREJA CATÓLICA DETÉM VIA SANTOS E DOUTORES A CHAVE DA INTERPRETAÇÃO ORIGINAL – o quanto possa em certos detalhes!
    Imagine pois o que sucede nas não sei quantas milhares de seitas hereges protestantes, dissensas entre si, em cada um é o senhor deus da biblia e lhe dá a interpretação que acha certa, ou de acordo com as inspirações do “Espírito Santo”, de quem receberiam nas “revelações” que alegam rreceber, hem?

  2. Isso demonstra o mal que esse populismo irresponsável do “LEIA A BÍBLIA ” pode causar.

    As pessoas mal conseguem compreender um manual de aparelho doméstico,mas se acham plenamente capazes de interpretar a Bíblia e ainda querem dar lições nos incautos.

  3. Assunto bastante interessante. De fato, o caso é que o idioma influi ao menos um pouco no modo de pensar, os caminhos que o raciocínio percorre digamos assim. Esse é aliás o argumento usado por judeus e muçulmanos para considerar inválidas as escrituras deles noutros idiomas.

    Uma curiosidade é que, quanto mais antigos, mais ricos os idiomas, o que é mais uma evidência que realmente a humanidade só vem decaindo desde Adão e não evoluindo.

  4. Observação fundamental. Me faz lembrar da Vulgata e do trabalho imenso de São Jerônimo.

    E me lamento de não conhecer as línguas antigas.

  5. No mesmo trecho o Evangelho usa o substantivo “διάκονοι”, que a Vulgata traduz por “ministri” e a Ave Maria por “serventes”. Quem saiba que diaconia significa serviço, compreende as traduções, mas nem todos o sabem. Uma tradução, como muito bem disse Cervantes, é uma tapeçaria ao contrário: a gente até divisa o contorno, mas perde quase completamente os detalhes. Tendo eu largado o tradicionalismo, comecei a ter pena dessa insistência exclusiva de certos católicos com latim. Há quem ache melhor uma tradução da Vulgata — ou seja, uma tradução de uma tradução — do que uma edição moderna traduzida por filólogos experimentados direto dos originais hebraicos e gregos!

Os comentários estão fechados.