Só a Igreja combate a pedofilia com coerência

Mentes pequenas discutem pessoas enquanto grandes mentes debatem idéias. Trata-se de um lugar comum; mas todo lugar comum encerra importantes verdades. As pessoas passam e seu horizonte de atuação é muito restrito; as idéias permanecem, transcendem os homens e modificam o mundo. Discutir pessoas, destarte, é mesquinho, é pequeno, é insignificante. Quem detém pretensões um pouco mais ambiciosas precisa voltar-se para as idéias que levam as pessoas a agirem de tal ou qual maneira.

As idéias, contudo, para produzirem os seus efeitos no mundo, precisam de tempo. Raras vezes os primeiros propagadores de uma nova idéia verão todas as consequências de sua disseminação. Talvez não fosse claro, por exemplo, aos adeptos entusiasmados da revolução sexual da década de 60 que, poucos anos depois, crianças de 12 anos estariam fazendo filmes pornográficos. Por esses dias eu ouvia uma professora comentar que os anos 80 foram estranhos — eu já o comentei aqui. De fato foram tempos sinistros aqueles; considerá-los imprevisíveis, contudo, parece-me excessiva ingenuidade.

O abuso sexual infantil é uma lástima sob quaisquer aspectos deplorável. Creditá-lo à Igreja Católica, no entanto, é de uma hipocrisia avassaladora. Ora, não é possível esquecer — para ficar só no exemplo talvez mais paradigmático — que, há bem pouco tempo, a sexualidade infantil mereceu o apoio entusiasmado e aberto do cinema nacional; e de uma maneira tão constrangedora que a protagonista do filme, posteriormente, empregou sem sucesso a sua fortuna para tentar removê-lo de circulação. Não se diga que foi apenas uma excentricidade isolada da época: hoje mesmo, em pleno terceiro milênio, não falta quem chame de “cultura” o funk que estimula o estupro de meninas. Ora, as idéias têm consequências, por mais que o ignorem os seus propagadores. Nos dias de hoje parece haver um certo consenso de que o abuso sexual de crianças é uma coisa condenável. No entanto, somente a Igreja Católica o tem consistentemente condenado com a devida coerência!

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Ninguém faz mais que a Igreja contra a pedofilia. Recentemente se noticiaram novas medidas tomadas pela Santa Sé para facilitar a responsabilização de bispos que forem lenientes em casos de abusos infantis. Fui procurar; o documento que o Papa Francisco promulgou no último 4 de junho chama-se Come una madre amorevole — assim, em italiano mesmo, fugindo ao latim com que se costuma dar título aos documentos pontifícios. A Mãe Amorosa revela-se aqui implacável logo no primeiro artigo: os bispos podem ser legitimamente removidos de suas dioceses se a sua negligência provocar ou não impedir que seja provocado um grave dano a alguém.

Parágrafo primeiro: este dano pode ser físico, moral, espiritual ou patrimonial.

Parágrafo segundo: o bispo pode ser removido ainda que sua negligência não constitua culpa pessoal grave.

Parágrafo terceiro: em casos de abusos sexuais, basta que a indiligência seja grave (em oposição à molto grave do parágrafo antecedente).

Fico pensando em que hipótese um bispo pode ser negligente em matéria de abuso infantil e, ao mesmo tempo, não ser moralmente réu de culpa grave. Porque é evidente que a negligência pode configurar pecado mortal — e, para afastá-lo, é preciso que o agente ou não tenha visto com clareza a dimensão do problema, ou não dispusesse de plenas condições para o evitar. Em uma palavra: a negligência só não implica em pecado mortal se ela não for exigível. Mas, ora, se a atitude que se omitiu não era exigível, é ainda possível dizer que subsiste a própria negligência? Afinal, ser negligente é precisamente deixar de fazer algo que devia ser feito. Se devia ser feito, como é possível que não importe em culpa pessoal? Se não devia, como se pode falar ainda em negligência?

Penso que a novidade do documento reside precisamente nesta possibilidade de responsabilizar pessoas sobre as quais não é possível formar com segurança um juízo moral negativo. Fui olhar o Sacramentorum Sanctitatis Tutela e, nele, não encontrei semelhante previsão; a Graviora Delicta — que afirma ser «Congregationi pro Doctrina Fidei reservata» , entre outros, o «delictum contra sextum Decalogi praeceptum cum minore infra aetatem duodeviginti annorum a clerico commissum» — tampouco a traz. Não me recordo de a ter já visto em algum lugar — e, no entanto, ei-la reluzindo no frontispício da Madre Amorevole do Papa Francisco!

No Direito Penal secular isso provavelmente seria considerado responsabilidade objetiva — a possibilidade de se punir pessoas sem que lhes esteja caracterizado o dolo ou a culpa — e os doutrinadores contemporâneos, ciosos das garantias individuais contra a hipertrofia punitiva estatal, esmerar-se-iam por pintá-la aos olhos de todos como uma excrescência odiosa, não sossegando enquanto não a lograssem proscrever do Ordenamento Jurídico. No entanto, a justiça de Deus não deve prestar contas à justiça dos homens e, se é verdade que Leviathan não pode aplicar uma pena sem um fato típico, antijurídico e culpável, a Esposa de Cristo pode, sim, prescindir dessa culpabilidade na hora de desferir os golpes necessários à proteção dos Seus filhos.

É evidente que pode. Mais até: deve. Em se tratando de uma matéria grave como o abuso sexual de menores, mais do que estabelecer a culpa dos responsáveis importa fazer cessar o abuso e tomar medidas para que ele não se repita. Se determinado bispo não foi capaz de impedir a lepra da pedofilia de apodrecer parte do seu clero, é evidente que este bispo precisa ser substituído independente de sua culpa própria na propagação da epidemia — porque o papel do bispo é proteger os fiéis a ele confiados, e este dever é grave demais para que alguém possa eximir-se dele simplesmente dizendo “não consigo”. Ora, uma pessoa pode, perfeitamente, ser pessoalmente incapaz de enfrentar pervertidos sem que isso lhe acarrete culpa particular alguma. No entanto, tal pessoa não pode ser bispo católico. Não pode, porque de um bispo se exige mais do que de um católico comum. É bom que seja assim. Não pode não ser assim.

Amor_Estranho_AmorO abuso sexual de crianças é uma coisa terrível; nossa sociedade doente, no entanto, encontra e sempre encontrou mil modos de condescender com essa mácula! Lembremo-nos, o cinema brasileiro já filmou Amor Estranho Amor. Os nossos programas de auditório infantis já estiveram repletos de mulheres seminuas. As músicas cantadas ainda hoje por nossas crianças e adolescentes incentivam o sexo mais animalesco. O STF já há alguns anos flexibilizou a presunção de violência no estupro de vulnerável. O MEC há muito propõe aulas de educação sexual para crianças e jovens.

Somente a Igreja é de uma intolerância obstinada, medieval, contra o sexo infantil. Somente a Igreja afirma, sozinha, que o sexo é sagrado e que o seu lugar é dentro do Matrimônio com vistas à formação de uma família. Somente a Igreja prega, sozinha, que é preciso fugir do pecado e das ocasiões de pecado, e que é preciso mortificar os sentidos, e que a pornografia é pecado grave, e que certas modas imodestas muito ofendem a Nosso Senhor. Somente a Igreja ensina, sozinha, que o consentimento mútuo não elide o pecado contra a castidade, e que as depravações sexuais exaltadas pelo mundo moderno não deixam de ser depravações quando são consentidas. E, agora, somente a Igreja, sozinha, determina punição independente de culpa para quem não faz cessar os abusos sexuais sofridos por menores que de algum modo estavam sob sua responsabilidade.

A pedofilia é uma desgraça que cresce assustadoramente no mundo sob o impulso das concepções modernas a respeito do sexo. E somente a Igreja a combate com a coerência exigida. Somente à luz d’Ela este mal poderá ser vencido. Apenas esta Mãe Amorosa é capaz de proteger verdadeiramente os pequenos e indefesos.