Os cruzados e os pregadores

Ontem um padre foi assassinado na França. Mais que isso: foi atacado enquanto celebrava Missa e barbaramente degolado por dois covardes muçulmanos. Não se pode dizer que a tragédia tenha sido inesperada; mesmo assim ela nos choca quando enfim acontece. Se a flecha que nós já conhecemos chega mais devagar, como canta Dante, nem por isso ela nos machuca menos quando — a despeito de tudo — nos atinge em cheio. É incrível: das coisas previsíveis nós deveríamos nos precaver. No entanto, apenas assistimos, atônitos, as tragédias que — de longe! — víamos avançar contra nós!

Fr.-Jacques-Hamel-martyed

O mais aterrador é saber que há quem tema que fatos assim sejam imputados indistintamente a todos os muçulmanos, mesmo aos pacíficos. Ora, este problema está posto em uma clave totalmente equivocada. A questão não é saber se há ou não há uma minoria radical muçulmana; a questão é saber, primeiro, se o islamismo deve ser enfrentado e, segundo, de que maneira se o deve enfrentar.

Que ele deva ser enfrentado é uma posição que encontra, graças a Deus, cada vez menos opositores — o discurso de Ratisbona já vai completar dez anos e nunca esteve tão atual. O passar dos anos tem nos mostrado que há um número cada vez maior de muçulmanos e que eles estão cada vez mais próximos de nós: são nossos compatriotas, nossos colegas de trabalho, nossos vizinhos. E se os nossos vizinhos têm um conceito tão importante quanto — por exemplo — «jihād», que evidentemente diz respeito às relações intersubjetivas entre os homens no seio da sociedade, não parece prudente tratar esta categoria como se não nos dissesse respeito. É preciso, sim, enfrentá-la. Se há um grupo de pessoas que acredita ter o direito — por vezes o dever — de nos impôr as suas crenças, está cada vez mais claro que não podemos tratar isso apenas como uma excentricidade que nós podemos ignorar. Não dá para ignorar. É preciso reconhecer o diferente que está do nosso lado; é preciso ouvi-lo e falar com ele.

E, evidentemente, é preciso por vezes impôr-lhe limites: a sanha expansionista do Islã, que nos atentados do ISIS revela a sua faceta mais desumana, precisa, sim, ser enfrentada pelo Ocidente, se o Ocidente quiser sobreviver. Isso é até pouco polêmico. O problema maior surge quando discutimos de que maneira a devemos enfrentar. Os próceres do relativismo dizem que é preciso distinguir o muçulmano normal do fundamentalista, para que não ataquemos de maneira indiscriminada pessoas inocentes. A preocupação é verdadeiramente estapafúrdia, e revela uma ignorância histórica que seria cômica se não fosse tão perigosa.

Porque sempre houve dois mouros: o dos negócios e o da guerra. O súdito e o soldado. O teórico e o prático. E com ambos sempre soube tratar a Cristandade, sem generalizações rasas nem distinções bizantinas. Santo Tomás pode até ter pensado certa feita em cruzar espadas com Averróis; pode até ter passado um dia pela cabeça de Ricardo Coração de Leão desafiar Saladino para uma disputatio universitária. Não há no entanto dúvidas de que um é um acadêmico e, outro, um militar; contra aquele a escolástica levantou tratados, contra este os nobres lançaram cruzadas. Ambos foram inimigos da Cristandade, mas as armas que ela empregou contra um e outro foram totalmente diferentes. Um é o mister do pregador; outro, o do cruzado. Não é só este o que atualmente faz falta; há uma indigência terrível, devastadora, clamorosa, de pregadores nos dias de hoje!

Há um clamor cada vez maior por cruzados. Sim, cruzados fazem falta; mas nem só de cruzados era composta a Cristandade. Sim, o mouro precisa ser combatido; mas é preciso saber de que modo o combater. Porque queremos, sim, fazer guerra contra os infiéis; mas não — sempre — a guerra das armas, não — necessariamente — a guerra dos soldados. É com idéias que as idéias se combatem; fossem os muçulmanos evangelizados, aliás, não precisariam ser hoje combatidos. Há hoje necessidade de cruzados, porque faltaram, e faltam, pregadores do Evangelho.

Mas as pessoas têm medo do sadio combate ao islamismo, porque pensam, primeiro, que as únicas coisas que os católicos sabem fazer contra os muçulmanos são as cruzadas; segundo, que as campanhas medievais contra os turcos eram, todas, uma espécie de pogrom voltado para o extermínio dos mouros. Ora, nada disso não faz o menor sentido.

As Cruzadas foram movimentos de guerra, ad extra, desempenhados em campo aberto, de peito aberto, cabeça descoberta, contra inimigos — atenção, que isso é importante — igualmente em guerra, igualmente em combate, igualmente armados e mortíferos. Não se trata (e nem nunca se tratou) de perseguir minorias pacíficas e indefesas. Eram a guerra dos homens livres e corajosos, com os reis à frente dos exércitos, sem alistamento militar obrigatório. Hoje, com soldados enviados à força para países estranhos, com máquinas voadoras não-tripuladas bombardeando alvos civis, aquelas coisas já não se compreendem; não cedamos, contudo, à fácil tentação de conferir maior incivilidade aos nossos antepassados que a nós próprios. O ius in bello nasceu muito antes do Tribunal de Haia, e tanto os reinos cristãos quanto os califados foram forças de agregação social das quais a ONU jamais chegou perto. Chesterton tinha razão quando disse que um soldado lutava mais por amor àquilo que protegia atrás de si do que por ódio ao que tinha à sua frente; e o guerreiro medieval talvez seja o melhor arquétipo deste soldado pintado pelo polemista inglês.

A Cristandade fez guerra contra o mouro, sim. Mas não a fez com a covardia com a qual, hoje, os bastardos de Baphomet atacam o Ocidente. Os atentados modernos aliás talvez nem mereçam novas cruzadas, porque os terroristas contemporâneos não são herdeiros dignos dos sarracenos que os nossos antepassados enfrentaram. Em campo aberto um dia o cruzado lutou com o mouro; a espada cristã e a cimitarra turca entrechocaram-se, a Cruz contra a Crescente, sob o sol de Deus. A guerra, a boa guerra, exige e pressupõe uma certa consideração mútua entre os adversários, um certo respeito entre inimigos — coisas em tudo ausentes nas saraivadas de balas disparadas contra jovens desarmados, nos caminhões lançados sobre transeuntes, nas facas decapitando sacerdotes durante a celebração da Santa Missa. Saladino ficaria envergonhado.

SAN-PERFECTO

E ainda mais: nem só de guerras viveu a Idade Média! É evidente que nem todo muçulmano é pessoalmente um homem-bomba; isso, no entanto, é completamente irrelevante. Há o mouro soldado e há o mouro simples fiel; se é verdade que devem ser ambos combatidos, não é menos verdade que o primeiro se combate com as armas e, o segundo, com as letras. Ninguém teve jamais dúvida disso. A pretensão de passar a fio de espada populações inteiras só poderia surgir do totalitarismo laico contemporâneo — dessa antropologia canhestra que, de tanto criticar o Antigo Testamento, incorporou os demônios que lá julgou encontrar. O que os homens modernos não parecem perceber é isto: ninguém vai ter tempo de hostilizar muçulmanos pacíficos se estiver em guerra contra muçulmanos belicosos. A Cruzada não é um pogrom. A Cruzada evita pogroms.

Até porque o muçulmano “funcional” — o fiel islâmico que, mais ou menos bem integrado ao país do Ocidente onde reside, cumpre com seus deveres cívicos e não é um elemento desagregador da sociedade — está para a República moderna assim como os antigos mouriscos para os reinos católicos. Ora, jamais se fez na Península Ibérica contra os mouros batizados a mesma guerra que se travou inclemente contra os otomanos no Mediterrâneo. O mundo moderno precisa aprender com os antigos como tratar o Islã; e a primeira coisa que ele precisa aprender é que nem toda interação cristã-muçulmana se deu nos moldes do Saque de Constantinopla!

Distinguir um mouro do outro, assim, é essencial para proteger os próprios mouros. Os muçulmanos pacíficos não estarão seguros enquanto os agressivos formarem, com eles, uma massa indistinta. E clamar contra a “islamofobia” (ou qualquer bobagem do tipo) diante do ISIS chacinando “infiéis” diariamente não é proteger os muçulmanos. É pô-los, a todos, sob constante suspeita. É impedir a sadia atuação distinta dos pregadores e dos cruzados. É reducionista e obtuso.

Mas distinguir um mouro do outro é fundamental também para os próprios cristãos: afinal, somente assim a posição deles se torna defensável — ou mesmo exequível. Cada combate precisa ser travado com as suas armas adequadas; e embora o Islã seja sem dúvidas o velho inimigo, uma coisa é o muçulmano rezando na mesquita e, outra, o muçulmano assassinando inocentes. Um se enfrenta com as armas da apologética; outro se combate com armas de fogo. Um demanda a força intelectual e, outro, a força física. Foi assim que sempre se fez. Não tem sentido conclamar uma guerra contra “o mundo árabe” assim, indistintamente, como se todo muçulmano devesse ser combatido da mesma maneira. É preciso compreender a unidade do inimigo, sim, para que se tenha clara noção da importância da guerra; mas é preciso distinguir o mouro do mouro, igualmente, para que os cruzados e os pregadores tenham cada qual o seu devido campo de atuação.

missa-turca

Ontem um padre católico foi assassinado dentro de uma igreja, e é difícil imaginar que não tenhamos chegado ao ápice da pusilânime letargia ocidental. É de se esperar que, quem sabe?, agora a França — a filha dileta da Igreja — desperte do seu torpor. Os cães sarracenos tocaram num ungido de Cristo, profanaram uma igreja, derramaram o sangue de um padre diante do altar do Senhor, assassinaram um sacerdote do Deus Altíssimo! Será possível que a França continue inerte? Terão os franceses se esquecido do seu passado de glória? A gesta Dei per francos será somente uma expressão antiga, incapaz de inflamar nas almas francesas o amor a Cristo?

O sangue dos mártires é semente dos cristãos; ficará o testemunho do pe. Hamel sem frutificar? Quero crer que não. Que o Senhor Se levante para nos proteger; que desperte e tenha misericórdia de nós. Que suscite santos cruzados e santos pregadores, todos repletos de uma santa coragem, imbuídos da abnegação de consumir a própria vida a serviço de Cristo. O Ocidente precisa de santos capazes de fazer frente ao mouros. Cruzados que os impeçam de vitimar inocentes. Pregadores que os arrastem aos pés de Cristo Salvador dos Homens.

Escola sem Partido: méritos e riscos

A proposta do “Escola sem Partido” está dando o que falar, principalmente por conta de uma consulta pública no site do Senado que vem provocando uma verdadeira guerra virtual nos últimos dias — com a vitória pendendo ora para um lado, ora para o outro. Muita gente me havia pedido para escrever sobre o assunto, e eu estava reticente. Talvez a própria escrita deste texto esclareça as razões da minha resistência original.

Antes de qualquer outra coisa, cabe deixar claro que não se trata de um tema propriamente católico; quero dizer, não se trata de um tema sobre o qual seja possível apresentar uma “resposta católica” universalmente aceita. Conheço gente que está muito entusiasmada com o projeto; conheço, igualmente, gente que tem ressalvas contra ele. Com isso não quero dizer que o problema seja de tal natureza que mereça a indiferença dos católicos; é claro que não. Apenas a solução apresentada não é a única aceitável. A um mesmo problema se pode quase sempre apresentar soluções distintas: por exemplo, a morte de mulheres em decorrência da prática do aborto é sem dúvidas um problema. Isto reconhecem, facilmente, os católicos e as feministas. Já as soluções apresentadas por um grupo e pelo outro são em tudo distintas: os primeiros querem evitar todas as mortes evitando o próprio aborto, e as últimas querem evitar as mortes das mães mediante o asséptico, legal e profissionalizado assassinato dos filhos.

Escola_sem_partido

Aqui a situação é diferente. O problemaa existência de doutrinação nas escolas — é no geral incontestável, ao menos entre os católicos; os inimigos da proposta, por sua vez, debatem-se entre afirmar que não há doutrinação e reclamar o próprio direito de doutrinar em paz. Não nos ocupemos tanto com estes últimos. Procuremos entender o porquê de haver discórdias entre nós.

Os católicos temos uma diferença radical para com os incrédulos do século moderno: nós acreditamos firmemente na existência de uma verdade, com relação à qual os homens têm um dever moral de reconhecimento. Isto significa que não nos é permitido ficar inertes diante das mentiras que contam nas nossas escolas — das quais a comparação entre um santo católico e um assassino comunista é apenas o absurdo mais patente. Teríamos este dever, aliás, ainda que as escolas não tivessem nada a ver conosco; sendo compulsórias para os nossos filhos como o são, no entanto, este dever se nos reveste de maior premência. Trata-se de um problema da mais alta gravidade, cujo reconhecimento é necessário ainda que se possa licitamente divergir quanto aos meios de o enfrentar.

A questão é que, havendo este problema, há (pelo menos) três coisas diferentes em jogo.

a inspiração original do Escola sem Partido, que pode ser resumida na seguinte proposta:

Nada mais simples: basta informar e educar os alunos sobre o direito que eles têm de não ser doutrinados por seus professores; basta informar e educar os professores sobre os limites éticos e jurídicos da sua liberdade de ensinar.

Há modelos de projeto de lei do mesmo Escola sem Partido, dos quais o Federal contém coisas como a que segue:

Art. 8º. O ministério e as secretarias de educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato.

Parágrafo único. As reclamações referidas no caput deste artigo deverão ser encaminhadas ao órgão do Ministério Público incumbido da defesa dos interesses da criança e do adolescente, sob pena de responsabilidade.

E há o projeto de lei efetivamente em tramitação no Congresso, que é praticamente igual ao modelo acima apresentado, com talvez uma única diferença — um dispositivo que proíbe “a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes” –, sobre a qual o próprio idealizador do movimento já se manifestou de maneira contrária.

A grande questão é que da inspiração primeira ao que é possível fazer vai uma distância muito longa, por vezes maior do que aceitável pelos partidários da insatisfação original. Que há um problema de doutrinação nas nossas escolas, há; mas como combatê-lo eficazmente? Uma lei não funciona somente para o que ela “foi pensada” para fazer; mormente no caos jurídico contemporâneo, uma lei tem vida própria e os seus efeitos podem se espraiar por situações muito distantes das que os seus idealizadores originalmente imaginaram. O PL 867/2015, por exemplo, diz um dos princípios aos quais atenderá a educação nacional é o “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”.

A justificativa do projeto e o histórico da educação brasileira nos dizem que, com isso, pretende-se limitar o discurso hegemônico da esquerda; mas não é difícil imaginar uma situação na qual professores decentes passem a ser perseguidos com base nesta lei. Afinal de contas, se é para haver “pluralismo de idéias”, então um professor que diga que os homens e as mulheres são naturalmente diferentes entre si precisa, também, contrabalancear esta afirmação dizendo igualmente — e de forma neutra, isenta — que há quem diga que ser homem ou ser mulher é meramente uma construção social, e que qualquer das duas teorias é em princípio aceitável. Do mesmo modo, uma professora de biologia que diga que a vida do indivíduo humano se inicia com a concepção deverá, de maneira equilibrada e imparcial, afirmar que há também quem diga que ela só inicia em outro momento — com a nidação, a formação do sistema nervoso central ou sabe-se lá o quê, e antes disso o embrião ou o feto humano não passa de um punhado de células com as quais é possível fazer qualquer coisa. Em suma: a lei, que objetiva dar espaço à verdade no meio de um oceano de mentiras, pode muito facilmente ser usada para exigir que a mentira seja introduzida naqueles (já escassos!) espaços onde a verdade é privilegiada.

Não vou me alongar muito. Não sei exatamente o que pensar sobre o projeto; por um lado intuo que a gritaria das esquerdas é sinal de que o Nagib acertou no ponto correto e, ao mesmo tempo, não quero simplesmente fazer “fogo amigo” contra pessoas que têm uma visão de mundo correta, sadia e necessária. Por outro lado, compreendo as ressalvas que outras pessoas — também católicas, também sérias, também preocupadas com os rumos da sociedade — fazem a respeito do projeto, e até faço minhas algumas delas. Arrisco-me a dizer somente duas coisas.

Uma: que o efeito simbólico do projeto de lei pode ser salutar. O próprio Miguel Nagib já disse que, no seu projeto, “o que interessa é o cartaz com os deveres do professor”. Talvez fosse interessante, então, remover os elementos burocráticos que podem dar azo a perseguições políticas e insistir somente no constrangimento que o cartaz onipresente pode provocar em educadores picaretas. A lei assim não haveria de ensejar punições administrativas; mas teria um efeito retórico que talvez não seja de se negligenciar.

Duas: que o mais importante em matéria de educação é firmar independência frente ao Estado, e não chamá-lo para tutelar os interesses legítimos da sociedade! O importante é que os pais eduquem os filhos — e exijam que eles sejam bem educados se, por acaso, precisarem terceirizar este seu dever. O importante é garantir o direito de ensinar o que é correto, e não demandar que o Estado exija quotas iguais para a verdade e para a mentira a todos os que exercem o múnus da docência. Não é suficiente fazer concessões para limitar o avanço do mal; é preciso, corajosamente e com uma santa altivez, fazer o bem. De peito aberto, de fronte erguida, sem a ninguém dever nada.

Receber a Liturgia, não reformá-la

Não li ainda o livro do Card. Sarah (grande cardeal!) que, segundo consta, chegou há poucos meses às livrarias do Brasil; mas hoje, no Facebook, tive acesso a uma peça publicitária do livro-entrevista que me chamou a atenção. Traduzo livremente:

Se nós fabricamos a liturgia por nossa própria conta ela se afasta do divino; ela se transforma em um ridículo, vulgar e maçante jogo teatral. Acabamos, assim, com liturgias que se parecem com programas de auditório, com uma festa dominical engraçada para relaxar após uma semana de trabalho cheia das mais variadas preocupações. Uma vez que isso acontece, os fiéis voltam para a casa após a celebração da Eucaristia sem haverem encontrado Deus pessoalmente — ou sem O terem ouvido no mais profundo dos seus corações.

Tenho para mim que esta questão é importante e, a ela, não se costuma dar a devida atenção fora dos ambientes (ditos) tradicionalistas. O cerne do argumento aqui desenhado é o seguinte: os homens vão à Igreja para se relacionar com Deus. Para tanto, é necessário que eles encontrem, na Igreja, algo maior do que eles próprios, algo que eles próprios não seriam capazes de confeccionar com suas próprias mãos. Mas, ora, tornar a Liturgia uma coisa que cada “comunidade” produz — ainda que seja uma “construção coletiva” — é fazer com que ela seja percebida não mais como algo que se recebe (de Deus, do passado ou de um determinado conjunto de pessoas santas), mas como algo que se constrói. E se eu construo a Liturgia, então eu não preciso ir à Igreja: é o corolário mas óbvio aqui, de cuja precisão o esvaziamento de nossas igrejas (mormente no pós-Concílio) dá a prova mais triste e incontestável.

Os homens já se relacionam consigo próprios o tempo inteiro — afinal de contas, a vida secular é exatamente isso. Não se vai à Igreja para fazer, lá, o que mesmo que já se faz no mundo; vai-se para a Igreja, ao contrário, para lá se abrir ao diferente. É aliás esta uma característica muito própria da Religião Cristã: nela se tem não a obra de um grande homem, não o resultado acumulado do progresso da humanidade, nem nada disso, mas o próprio Deus que vem ao encontro da humanidade que, sem esta Vinda, estaria para sempre condenada a nunca O encontrar. É por isso que se vai à Igreja: porque n’Ela Deus vem até nós. E imaginar que Deus poderia vir até nós mediante a virtude de qualquer coisa propriamente nossa não passa de uma superstição ímpia; achar que somos capazes de O invocar mediante determinado conjunto de palavras e gestos inventados por nós é ainda mais insano do que acreditar, por exemplo, que determinada dança é capaz de fazer chover. É bárbaro e primitivo.

A Liturgia só funciona (lembrando, Sacramento é um sinal sensível e eficaz da graça divina) porque Ela nos foi dada: não é obra nossa mas do próprio Cristo, através do Seu Corpo que é a Igreja. Essa verdade, fundamental para um relacionamento sadio com Deus, fica completamente obscurecida quando «nós fabricamos a Liturgia por nossa própria conta»: é o que o Card. Sarah está dizendo. Nós perdemos a capacidade de nos abrir a Deus (lembrando, os Sacramentos agem ex opere operato mas os seus efeitos só se percebem ex opere operantis) se não somos capazes de enxergar, nos gestos e palavras da Santa Missa, mais do que uma simples convenção arbitrariamente definida pelos católicos que nela tomam parte. No limite, como se disse, a Liturgia artificialmente produzida torna desnecessária a própria ida à Igreja.

Penso que o maior problema da questão litúrgica não se encontra na parte objetiva, mas sim na subjetiva; i.e., não na capacidade do rito de conferir a graça, mas sim na de tornar os fiéis propícios a recebê-la. Isto, penso, respeita a Doutrina Católica no que diz respeito à indefectibilidade da Igreja em matéria litúrgica; isso, igualmente, explica a situação de miséria espiritual em que se encontra o catolicismo com o Novus Ordo.

Com uma interessante vantagem. Se a questão é subjetiva e não objetiva, então ela depende das disposições interiores dos que se acercam dos Sagrados Mistérios — e, portanto, a possibilidade de correção orgânica é muito maior. Ora, uma Missa repleta de invencionices locais é sem dúvidas uma coisa muito artificial. Um rito produzido por uma comissão burocrática é artificial também; mas ele só o é dentro de um horizonte temporal muito restrito. Quanto mais se caminha no tempo, mas o Rito de Paulo VI deixa de ser uma novidade para se tornar algo que simplesmente é assim na Igreja — para as novas gerações a Missa simplesmente “sempre foi assim”, é a missa que os seus pais sempre assistiram, dentro de algumas poucas décadas se tornará a missa de que os seus pais e avós sempre participaram e assim sucessivamente. Em algumas gerações a aura da ancestralidade irá reluzir também sobre o Novus Ordo; é simplesmente questão de tempo para que os católicos encontrem, nele, algo que vem de um passado (cada vez mais) remoto da Igreja — e, portanto, algo que é recebido e não confeccionado. O problema apontado pelo Card. Sarah, assim, naturalmente deixa de existir.

É justamente para impedir essa correção orgânica que os assassinos da Liturgia precisam, o tempo inteiro, inventar coisas e mais coisas para atormentar os fiéis que assistem à Missa. Celebrar estritamente o N.O.M. não atende mais à sanha iconoclasta dos inimigos da Igreja, exatamente porque para as novas gerações o N.O.M. é a liturgia tradicional. É por isso que é preciso lhe acrescentar cada vez mais coisas, cada vez mais novidades: para mantê-lo indefinidamente como uma coisa fabricada, sempre construída pela comunidade, nunca recebida da Igreja. As posições do Card. Sarah, assim, não são uma nova intervenção Ottaviani: o alvo dele é a mentalidade de que a Liturgia deva (ou mesmo possa) ser continuamente fabricada, e não um rito específico. E este combate é prévio a qualquer discussão sobre forma ordinária ou extraordinária do Rito Romano. Sem esta concepção, qualquer apostolado litúrgico é vão. Para que qualquer “Reforma da Reforma” possa ser possível, é preciso antes entender — por paradoxal que pareça — que a Liturgia se recebe e não se reforma. Sem isso estaremos apenas recauchutando velhos erros.

Os templos são uma profissão de Fé

Hoje é a festa de Nossa Senhora do Carmo e calhou de eu me encontrar em João Pessoa; há lá uma bela igreja erigida em honra à Virgem do Carmelo, que eu não conhecia e que remete ao século XVI. Aos alvores portanto da colonização brasileira; à tenra infância da Terra de Santa Cruz. Contemplar aquele templo é contemplar, em um lance de vista, todo o tempo transcorrido daquela época aos dias de hoje. Há nisto duas coisas que me chamaram particularmente a atenção nesta visita despretensiosa e não planejada. Admira o que se perdeu; é de se pasmar o que se manteve.

Singela a igreja. É tombada pelo IPHAN e, como é infelizmente comum acontecer nestes casos, não se encontra no seu melhor estado de conservação. Todavia esta circunstância, providencial, tornava a edificação toda ainda mais admirável aos meus olhos. Hoje em dia as coisas que construímos se desfazem com assustadora facilidade; a cultura do descartável, presente nas roupas e nos aparelhos eletrônicos, já se espraia confortavelmente sobre o mercado automobilístico e parece exigir seu espaço também nas nossas construções. Lembro o viaduto que caiu em Minas Gerais durante a Copa ou o a ciclovia tragada por um vagalhão no Rio de Janeiro ainda este ano; e hoje, na Igreja do Carmo, eu olhava para cima — o teto estava nu, sem o forro, mostrando apenas as vigas de madeira cobertas de telhas — e pensava em como os nossos antepassados se sentiriam se pudessem conversar com os nossos engenheiros e mestres-de-obras sobre a durabilidade das edificações do século XXI.

Porque não deixa de haver nisso uma espécie de “moral da história”, como se da comparação entre as velhas igrejas e os passeios modernos pudesse exsurgir uma parábola — se não a respeito da verdade das coisas, ao menos da maneira diferente como os nossos antepassados e os nossos contemporâneos concebiam e concebem as suas obras. Parece que em algum momento da história nós já construímos coisas para durar até a Segunda Vinda de Cristo; e, hoje, com todo o progresso e toda a técnica de que dispomos — ou talvez até mesmo por conta destes progressos e técnica –, nós realizamos obras para serem substituídas dentro de um espaço de tempo cada vez mais curto. Nós já acreditamos na Eternidade e, disto, os templos antigos nos dão testemunho; hoje não acreditamos em nada além de nós mesmos, e as coisas que construímos são feitas para morrer conosco. Tudo isso me dizia a igreja quinhentista, e eu não podia senão concordar com ela: chega a ser impressionante como foi possível termos regredido tanto em apenas quatro séculos.

2016-07-16 09.10.00

Mas talvez até mais impressionante do que o declínio da arquitetura seja a preservação da Fé; e, hoje, ao final da solene celebração de Nossa Senhora do Carmo, um irmão terciário dizia, com orgulho, que o Sodalício Carmelita da Parahyba (ele não disse deste jeito; assim chamo-o eu) tinha 310 anos. “Só não é mais antigo que o de Recife” — e eu não pude conter um sorriso ufano. Bairrismos à parte, o que importa é perceber como a festa atravessa gerações e chega ao nosso século ateu, se não com a vivacidade original, ao menos com algo daquele antigo frescor. Algo que se recusa a passar. “Temos até algumas orações e cânticos em latim, que os bispos sempre nos deixaram manter”.

E isto, na verdade, é uma vitória retumbante, um triunfo glorioso, um refrigério do Céu que nos permite manter acesa a chama da esperança: enquanto as obras deste século ruem estrondosamente e jazem no chão, os servos da Virgem ainda hoje cantam as glórias da Rainha do Carmo — e cantam-nas nos templos que foram construídos para durar até a consumação dos séculos porque Aquela em cuja honra eles foram levantados não passará jamais. As antigas construções são em si mesmas uma profissão de Fé. Ela vencerá o mundo porque a cada ano, a cada festa, a cada nova geração ela é renovada. Sempre haverá quem ouse desfraldar bem alto o estandarte da Virgem; sempre haverá porque até hoje não faltou quem o desfraldasse.

bandeira-carmo

O Imaculado Coração da Virgem triunfará. Acima de todas as coisas que passam reina a Senhora do Carmo, e a vitória d’Ela é tão certa quanto o raiar de um novo dia após uma noite longa, por escura que ela seja. O mundo dá voltas mas o Carmelo permanece — é o testemunho que cada 16 de julho dá ao mundo. Não precisamos nos atormentar. Acima de nós e a nos proteger, resplandece e fulgura Aquela que é o esplendor do Céu.