A morte de um exorcista

O recente falecimento do pe. Gabriele Amorth pegou-me de surpresa. Sim, o velho exorcista já contava com 91 anos e, nesta idade, a morte não é propriamente um acontecimento inesperado; a manchete, no entanto, mostrou-me o quão pouco eu estava acompanhando as notícias a respeito dele. Não sabia que estava doente, aliás nem me lembrava ao certo da idade dele. Na sexta-feira passada, no entanto, ele deixou o campo de batalha terreno para nos ajudar lá do Alto, onde agora pode mais junto a Deus.

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Há um mau hábito — já devo ter falado dele em algum momento por aqui — no Catolicismo contemporâneo de ser muito condescendente para com as imperfeições alheias, principalmente no que diz respeito à tendência de conceder uma imediata ascensão aos Céus às almas daqueles que minimamente admiramos. Todo mundo é santo sùbito, toda morte é entrada gloriosa no Paraíso. Esquecemo-nos do Purgatório — e isso pode até ser falta de caridade de nossa parte, na medida em que nos sentimos desobrigados de rezar pelas almas daqueles que já consideramos salvos. Esquecemos do Purgatório e queremos que todos os nossos mortos estejam, desde já, desde o instante seguinte à morte, gozando da Bem-Aventurança dos eleitos de Deus.

Ainda assim, eu disse acima que o pe. Amorth já agora estava nos ajudando de junto de Deus. Justifico. Em primeiro lugar, o venerável sacerdote chegou a uma avançada idade, e isso significa duas coisas. Primeiro que não foi apanhado de surpresa pela Morte; segundo, que pôde padecer os sofrimentos próprios da velhice em expiação pelas próprias faltas e em preparação para o Dia sem ocaso. Muitas pessoas acham que a melhor morte é aquela que nos chega sem que percebamos; o famoso “ir dormir e acordar morto”. Não vou dizer que este seja uma má morte (até porque a morte ser boa ou má depende essencialmente das disposições interiores em que nos encontramos no instante derradeiro, e não de ela ser mais demorada ou mais lenta, mais consciente ou mais súbita); mas se trata, parece-me, pelo menos de uma morte arriscada. As pessoas perderam o hábito de pensar na morte e, com isso, a morte repentina, de um mal súbito, ou a morte em um acidente, podem chegar sem que a casa esteja devidamente preparada, sem que as disposições interiores estejam suficientemente lapidadas, sem que a alma esteja pronta, em suma, para se encontrar com Deus e com os pecados de toda uma vida.

A morte na velhice, após uma doença mais ou menos longa, é o contrário. A Inimiga das Gentes vem devagar, vem anunciando a própria presença, vem a passos lentos — e, com isso, dá mais tempo para que nos preparemos. Podemos fazer um demorado exame de consciência; podemos suplicar mais demoradamente o perdão e a misericórdia de Deus. Podemos nos confessar, receber a Extrema Unção e o Viático; podemos até mesmo oferecer os inconvenientes da doença, os achaques, o medo, as dores — os sofrimentos todos em suma — em expiação pelas nossas faltas. Li que o pe. Amorth expirou após algumas semanas internados em um hospital; quero crer, portanto, que ele tenha sabido aproveitar todas essas oportunidades de apressar a própria chegada no Céu.

Uma segunda razão pela qual imagino que o pe. Amorth esteja junto de Deus é o ofício ao qual ele dedicou a própria vida. Não foi apenas sacerdote (como se isso fosse pouco), mas sim sacerdote e exorcista. Foi nesta terra inimigo ferrenho de Satanás, lutando corajosamente contra ele exatamente naqueles aspectos em que a presença demoníaca no mundo é mais forte e mais perturbadora: a obsessão, a infestação, a possessão. O mundo moderno vive em uma crise de Fé que, se muito esquece de Deus, muito mais esquece do Diabo; esta figura é muitas vezes relegada à superstição medieval, à ignorância de um passado obscuro, a concepções maniqueístas primitivas que não encontram mais lugar em um mundo onde Deus é Amor.

Ora, mas Deus sempre foi Amor; Deus é Amor desde a criação dos Anjos e a Queda de Lúcifer, e uma coisa não tem nada a ver com a outra. Satanás não é um “deus do mal”, mas isso não significa que não seja uma criatura capaz de fazer muito mal. Há entre os homens ladrões e assassinos, sádicos e estupradores, salteadores e bandidos de todos os naipes; a quantidade de mal que o homem tem provocado ao próprio homem é enorme e capaz de assombrar por toda uma vida aqueles que dela tenham ainda que um pálido vislumbre. Senão vejamos: se os homens podem causar mal uns aos outros sem que isso seja um óbice à existência de um Deus que é Pai Amoroso, por que um anjo não poderia também provocar o mal aos filhos de Deus sem que isso minimamente maculasse a Onibenevolência do Altíssimo? Não há maniqueísmos dentro da Doutrina Cristã e nunca os houve; não há um deus mau ao lado do Deus que é Bom. No entanto, o mistério da liberdade que permite a existência do mal moral dentro do mundo criado não se restringe apenas aos seres humanos. Também os anjos têm inteligência e vontade, também eles são seres livres, também podem fazer o mal. Satanás não é uma hipótese ingênua e contraditória com a noção de um Deus sumamente bom, pelo menos não mais do que um estuprador ou um serial killer. Na verdade é o contrário: ingenuidade é imaginar que, havendo ladrões e assassinos no mundo, não pudessem existir também seres angélicos voltados à prática do mal.

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O pe. Amorth foi inimigo ferrenho de Satanás nesta terra, eu dizia, e venceu-o por incontáveis vezes, e por isso eu também quero acreditar que Deus o tenha levado depressa para os Céus; pode ser sentimentalismo, mas acho que não convém que aquele que foi inimigo aberto do Demônio no mundo tenha a sua entrada no Céu postergada por causa de algum apego de sua alma aos pecados que nada mais são do que as obras do mesmo Satanás que ele dedicou a vida a combater. Mas há ainda uma terceira razão. É que o tempo e a Eternidade relacionam-se de maneira, digamos, curiosa: aqui a história se desenrola de maneira sequencial mas, lá, é tudo já e(vi)terno.

O padre Pio certo dia rezava pelo seu avô. “Mas padre, o senhor não disse que ele já estava no Céu?”, um amigo perguntou; “sim, está, mas as orações que eu fiz por ele até hoje e as que eu ainda farei até o fim da minha vida o ajudaram a chegar lá”. O John McCaffery registrou a história em seu livro de memórias, e compreendê-la ajuda a contemplar melhor o mistério da Comunhão dos Santos. O Céu já está completo enquanto a História se desenrola; e por mais tempo que uma alma justa tenha passado no Purgatório, já agora ela está no Céu, já agora ela pode interceder por nós.

É com este ânimo que olho para o pe. Amorth e quero já vê-lo em esplendor — o velho guerreiro revestido de suas armas gloriosas, impingindo já a Satanás maiores tormentos do que nos mais formidáveis exorcismos que ele exerceu durante a sua vida…! Que assim seja. Que o bom Deus olhe com misericórdia para o seu pobre servo e lhe dê o descanso eterno, a luz e a paz. E que, do alto dos Céus, o padre Gabriele Amorth continue a fazer guerra terrível contra todos os espíritos malignos que andam pelo mundo para perder as almas.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

9 comentários em “A morte de um exorcista”

  1. “Satanás não é um “deus do mal”, mas isso não significa que não seja uma criatura capaz de fazer muito mal. ‘
    Parabéns pelo texto.

  2. O Pe. Gabriele Amorth deixou um legado tão significativo em termos de conhecimentos e experiências, no confronto com o mal personificado, que será sempre um referencial para todos os que labutam no dia a dia para diminuir o raio de ação do poder das trevas, especialmente para os sacerdotes que em nome da Igreja exercem o ministério exorcístico. Hoje, mais do que em qualquer outro período da história da humanidade, a realidade do mal, na pessoa de satanás e seus demônios, está se confirmando cientificamente por conta de pareceres abalizados de psiquiatras e psicanalistas sérios e responsáveis. A afirmação de que obsessões, infestações e possessões demoníacas eram tão somente um traço cultural da Idade Média, sustentada pela Igreja, está cada vez mais fragilizada, e o Pe. Gabriele contribuiu muito para desmascarar os embustes do inimigo de Deus e da Igreja através de seus escritos e declarações corajosas e audaciosas, Como ele mesmo dizia foi um digno sucessor do Pe. Cândido, grande exorcista da Igreja de Nosso Senhor, no entanto deixa para a Igreja um número bem maior de sacerdotes exorcistas se comparável ao período em que ele começou o seu ministério e creio, que, agora com o seu passamento, a tendência é aumentar. Que a alma do Pe. Gabriele Amorth pela Misericórdia e Amor de Deus descanse em paz.

  3. Jorge, muito bom texto. Apenas fiquei com dúvidas sobre este trecho: “O Céu já está completo enquanto a História se desenrola; e por mais tempo que uma alma justa tenha passado no Purgatório, já agora ela está no Céu, já agora ela pode interceder por nós”.
    Penso que entendi o que queres dizer (inclusive também tenho e li o livro sobre Pe. Pio mencionado no parágrafo). Mas essa forma de colocar não poderia dar margem a outras interpretações nada ortodoxas (como a ressurreição na hora da morte, por exemplo)?
    Além do mais, as almas do Purgatório também podem interceder por nós. Não é imprescindível que uma alma esteja no Céu para poder interceder. Não apenas os santos, mas também os salvos podem rezar por nós, da mesma forma que podemos (e devemos) rezar por eles, para que se purifiquem e alcancem a glória o mais rapidamente possível. Não é assim?
    De qualquer forma, fiz apenas observações construtivas. Gostei muito do texto. Falaste muito bem sobre o Pe. Gabriele Amorth.

  4. Dani,

    Não é certo que as almas do Purgatório possam interceder por nós, uma vez que não gozam de visão beatífica (cf. Summa, II-IIae, q. 83, a. 11, ad. 3). No entanto, é certo que elas o podem fazer “quando” chegam ao Céu. Como o ponto do texto é justamente chamar a atenção para o caráter relativo deste “quando” — uma vez que não há relação direta entre o tempo da História e o “tempo” da Vida Eterna –, essas discussões técnicas são de somenos importância e, sim, os mortos rezam por nós “desde já”, quando menos porque a pergunta a respeito de “onde eles estão neste instante, se já no Céu ou ainda no Purgatório” não faz lá tanto sentido.

    A “Ressurreição na hora da morte” (que, sim, é uma doutrina heterodoxa), no fundo, nega a possibilidade de separação entre o corpo e alma (ou melhor, de a alma subsistir separada do corpo). Aqui não se trata disso: há, de fato, o “tempo” em que a alma passou no purgatório e o “tempo” em que ela está no Céu (e haverá depois o “tempo” da Ressurreição da Carne) — são “momentos” distintos.

    O que se está dizendo aqui é, primeiro, que este “tempo” não guarda relação direta com o nosso tempo e, segundo, que os santos na Glória não estão sujeitos a limitações temporais (e, portanto, a cada momento a Igreja Militante goza do auxílio da Igreja inteira, Militante e Padecente e Gloriosa, entre as quais a relação não é de desenvolvimento temporal linear).

    Abraços,
    Jorge

  5. ATÉ OS DESENHOS “INFANTIS” ESTÃO CARREGADOS DE DIABOLISMO!
    Sendo um sacerdote exorcista, o Pe Gabrielle Amorth possuiu dons especiais no múnus de livrar as pessoas de infestações ou possessões demoníacas, subtendendo-se imaginar que seja também uma pessoa que cuidava particularmente de sua vida espiritual para que, nos exorcismos, o diabo não o interpelasse acerca de seus procedimentos e o envergonhasse, assim como o inibisse em seus exorcismos.
    O Pe Gabrielle já disse que após o aparecimento dos meios de comunicação, particularmente da internet, com varios programas dissimulados doutras aparencias, embora satanistas, incluindo-se as novelas e indo até em desenhos “infantis”, os quais praticamente todos eles carregados de mensagens subliminares satanistas bastante sutis e apropriados à idade, aumentou e muito o números de pessoas infestadas ou possessas, inclusive de crianças acossadas, cujos procedimentos passaram a ser muito desconexos e agressivos e após os exorcismos, restabeleceram-se.
    Os globalistas material-ateístas, maiores donos dessa empresas de comunicações pretendem introjetar as mentes infantis desde a mais tenra idade no diabolismo para demonizar a sociedade, bastando conferi-lo para notar nos desenhos que apresentam “Espíritos salvadores da Terra, Bruxinhos do Bem, brinquedinhos e/ou Invocações satanistas para as crianças tomarem parte repetindo invocações sem saberem que atraem sobre si o demonio…
    A situação complica mais hoje em dia por o purgatorio, mais ainda o inferno terem sido proscritos das homilias praticamente excluindo a existencia do diabo – especialmente quando se referem à morte de algum falecido pelo qual a S Missa é celebrada e dizem abertamente: o fulano já está nas mãos do Senhor, e pelo modo de falar, dão impressão que esteja salvo, em plena gloria, e nunca imaginam que poderia estar ao menos no purgatorio, quem sabe, pagando pelas penas devidas aos pecados e que não foram remitidas nessa vida pela indulgencia plenaria, a qual, para saber se foi válida ou não, apenas na outra vida se terá certeza!

  6. Que os filhos espirituais de Amorth se multipliquem sobre esta terra subjugada pelo maligno.

  7. Esta frase do texto: “Esquecemo-nos do Purgatório — e isso pode até ser falta de caridade de nossa parte, na medida em que nos sentimos desobrigados de rezar pelas almas daqueles que já consideramos salvos.”

    Me fez lembrar uma notícia que li sobre uma parte da oração de Fátima que, segundo algum eclesiástico que conversou com a irmã Lúcia, havia sido alterada. A parte que me refiro, já corrigida, seria esta:

    “Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, aliviai as almas do purgatório, sobretudo as mais abandonadas.”

    Me parece mais lúcida esta oração, pois bem sabemos que nem todas as almas irão ao Céu. Creio que esta fórmula atenua a nossa ignorância das almas que deixamos de rezar por considerá-las já no Céu sem que isso tenha acontecido.

  8. Uma dúvida de alguém que nunca viu um exorcismo: ele é realmente tão, digamos, “brutal” como em filmes como o (clássico) “O Exorcista”, ou isso é exagero de Hollywood?

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