O que importa é a luta pela santidade

Após a divulgação da última pesquisa Datafolha que anunciou uma nova redução do número de católicos no Brasil — hoje somos apenas 50% dos brasileiros –, a Folha de São Paulo noticiou que a CNBB comentou os dados dizendo que a «[l]uta por justiça é mais relevante que porcentagem de católicos». O aparente absurdo da declaração deixou a muitos perplexos. Olhemos, no entanto, a questão com um pouco mais de cuidado.

Em primeiro lugar, cabe um registro do nosso já antológico mau jornalismo. O primeiro parágrafo da reportagem diz o seguinte:

Mais importante que a porcentagem de católicos no Brasil é “quantas pessoas realmente buscam justiça e vivem o amor até as últimas consequências”, diz o secretário-geral da CNBB (conferência dos bispos brasileiros), dom Leonardo Ulrich Steiner, bispo auxiliar de Brasília.

Aqui já não se fala na «luta» estampada na manchete, embora o sentido ainda seja o mesmo. No entanto, olhando a íntegra da entrevista que a própria matéria disponibiliza mais abaixo, não se encontra a frase entre aspas que abre a reportagem!

O que tem de mais parecido na entrevista de D. Leonardo é o seguinte:

Desse modo, a resposta para a declaração de pertença das pessoas à Igreja ganha um significado mais espiritual que estatístico. Falta-nos, a todos, mais disposição para a conversão de vida e adesão ao cerne da mensagem cristã que é formado pela busca intransigente da justiça e da vivência do amor até as últimas consequências.

Ao que parece, para a sra. Ana Estela de Sousa Pinto (que assina a reportagem), as aspas não significam mais uma citação literal. Aparentemente, no seu estilo jornalístico, o texto que vem entre estes conhecidos sinais gráficos tanto pode significar algo reproduzido literalmente, palavra a palavra, como pode ser qualquer coisa que o jornalista ache que foi dito por alguém. E o pior é que, aqui, o próprio sentido da declaração episcopal foi distorcido: não se trata apenas da mesma coisa dita com palavras diferentes (o que, empregado entre aspas, já seria um absurdo), mas de duas declarações completamente distintas. Porque uma coisa é a «luta por justiça» ser mais importante que o número de católicos, e outra coisa é a constatação de que falta, a todos, uma maior «adesão ao cerne da mensagem cristã»!

Quem passa os olhos pela manchete, ou mesmo quem lê apenas os primeiros parágrafos, fica com a impressão de que a CNBB faz pouco caso da apostasia de milhões de fiéis, trata-a com indiferença, julga que ela não importa; quando na verdade o que se lê na entrevista é um lamento e um pesar pelos tristes números que os anticlericais divulgaram na noite de Natal. Não há o tom de menosprezo que abre a matéria. Este escândalo, portanto, por uma questão de justiça, não seja colocado nas já sobrecarregadas costas de D. Leonardo Steiner. O desdém da instituição não está na pena do seu secretário-geral, mas sim na redação defeituosa da sra. Ana Estela.

Em segundo lugar, é preciso dizer que o número absolutamente não surpreende. Não é verdade que o Brasil seja um país de maioria católica; há muito dizemos que pode até ser grande o número de batizados, mas não o de católicos. Porque “católico não-praticante” é uma contradição em termos, uma vez que a Fé ou bem é vivida, ou não é crida simplesmente. Isso é muito fácil de explicar. Entre diversas outras coisas, a Fé Católica manda que se vá à Missa aos domingos e dias santos. Se a pessoa de ordinário não vai à Missa, então é porque ela não acredita que precise ir à Missa aos domingos e dias santos — não crê na Fé Católica portanto. Uma outra pesquisa feita em 2013 dava conta de que apenas 28% dos que se diziam católicos –ou seja, 16% da população — iam à Missa uma vez na semana. Ora, isso — a prática religiosa semanal — é absolutamente o mínimo! Com menos do que isso não dá para ser adepto do Catolicismo. O número real de católicos brasileiros, assim, deve estar perto de uns 14% da população — o que está bem longe dos 50% que a última pesquisa tão generosamente nos concede.

A vastidão da impiedade sem dúvidas nos entristece; é verdadeiramente de se pasmar que quatro em cada cinco dos nossos conterrâneos estejam privados da graça dos sacramentos sem a qual não é possível obter o perdão dos pecados e a amizade com Deus. É preciso rezar, e rezar muito!, como o Anjo ensinou em Fátima, pedindo perdão pelos que não amam a Nosso Senhor. É preciso fazer apostolado vigoroso e incansável; não nos é permitido ficar indiferentes diante desta multidão de almas se perdendo à falta dos remédios espirituais mais básicos, e que estão aí, ao alcance de uma caminhada, distribuídos em profusão nas igrejas que os nossos antepassados espalharam Brasil afora. Deus pediu a Caim contas do seu irmão (cf. Gn IV, 9); também nós seremos cobrados, e n’Aquele Dia não Lhe poderemos responder que não somos custodiantes das almas que aprouve a Ele colocar em nosso caminho.

Mas há um terceiro aspecto a ser mencionado. É que, talvez por um ato falho, quiçá pela primeira vez em muitos anos, a resposta da Conferência dos Bispos à apostasia católica é surpreendentemente adequada. Dom Steiner — eu vivi para ver isso! — disse que a Igreja «cuida do anúncio dos valores do Evangelho» e «sua missão central (…) é anunciar integralmente o Evangelho de Cristo».

Sim, a Missão da Igreja é levar a toda criatura humana — a todos os confins da terra — o Evangelho de Cristo, a Boa-Nova da Salvação, em toda a sua integridade: sem nada lhe acrescentar ou suprimir. Como a CNBB é conhecida por há décadas desfigurar a mensagem de Nosso Senhor (cabendo-lhe, em perturbadora parcela, a responsabilidade pelo êxodo de católicos que a Igreja no Brasil vem sofrendo ano após ano), é um alento ver no secretário-geral da CNBB, justo nele!, essa preocupação (ao menos diante da imprensa) com a integralidade do anúncio do Evangelho. Se isso, apenas isso!, fosse feito com os devidos zelo e dedicação, assistiríamos muito em breve a um maravilhoso reflorescimento da Igreja Católica na Terra de Santa Cruz.

A despeito das conotações políticas que a palavra tem no discurso público contemporâneo, «Justiça» é uma palavra muito cara à teologia bíblica e significa santidade. Neste sentido, a frase falsamente atribuída a D. Steiner seria profundamente católica e verdadeira, profética até: para além das pesquisas demográficas, o que importa é a luta pela santidade! Fazendo isso, somente isso!, Deus saberia abençoar o plantio e prover uma colheita generosa. Afinal, não foi o próprio Cristo quem disse que deveríamos buscar primeiro o Reino de Deus e a Sua Justiça, que tudo o mais nos seria dado por acréscimo (cf. Mt VI, 9)? Ouçamos as palavras d’Ele, inadvertidamente ecoadas na manchete adulterada de uma má jornalista. Saibamos lutar, com denodo e galhardia, pela justiça de Deus! Pois com isso teremos a certeza de que omnia adicientur nobis.

Isso é impossível para a natureza humana

Recentemente um amigo me perguntou se a Virgindade Perpétua de Nossa Senhora, na formulação do dogma católico, dizia respeito apenas à pureza da Virgem Maria ou se englobava, também, aspectos físicos e corpóreos. O tema é propício para esta Oitava de Natal em que nos encontramos.

Não há dúvida de que o dogma diz respeito à integridade física de Nossa Senhora. Neste sentido, Ott: «a virgindade de Maria compreende a virginitas mentis, isto é, a virgindade perpétua de seu espírito; a virginitas sensus, quer dizer, a imunidade de todo movimento desordenado do apetite sexual; e a virginitas corporis, ou seja, a integridade corporal. O dogma católico se refere antes de tudo à integridade corporal» (Manual de Teologia Dogmática, Livro Terceiro, Parte Terceira, Capítulo Segundo, §5).

E não podia ser diferente. Ora, a formulação clássica do dogma diz “Virgem antes, durante e depois do parto”; e se a virgindade fosse aqui mera ausência de relações sexuais, a expressão “virgem durante o parto” não faria nenhum sentido.

De Cristo diz-se que não somente a concepção foi milagrosa, mas também que o Seu próprio parto foi miraculoso. Ora, o milagre aqui é, justamente, que Cristo saia das entranhas da Sua Mãe Santíssima sem Lhe corromper minimamente o corpo. A imagem clássica, que mais uma vez nos ajuda aqui, é a da luz atravessando o vitral mantendo-o intacto: Passa o sol pela vidraça, / já passou, sem tocar nela; / assim foi a Virgem Pura, / levou Luz, ficou donzela. Sim, isto é um milagre possível somente a Deus. Por que deveria nos surpreender? Acaso a Noite em que o Verbo respirou pela primeira vez poderia transcorrer sem um portento desta magnitude? Ou o nascimento do Deus-Menino deveria passar em tudo igual ao dos homens, sem nenhum distintivo da Sua divindade?

Alguém poderia questionar o silêncio de São Jerônimo sobre isso no seu conhecido Tratado da Virgindade Perpétua. Helvídio, seu contendedor, dá o perfeito ensejo: «[s]e julgam que há alguma desgraça nisto [= em uma virgem unindo-se a seu esposo legítimo], não deviam coerentemente acreditar que Deus nasceu da Virgem por parto normal» (Cap. 20). O polemista, aqui, não increpa o herege como seria de se esperar; não diz que o parto do Salvador foi miraculoso e não «normal». Ao contrário até: fala que Helvídio bem poderia acrescentar «as outras humilhações da natureza, o útero de nove meses se tornando cada vez maior, a doença, o parto, o sangue, os cueiros» (id. ibid.).

Não sei exatamente o que o padroeiro dos tradutores quis dizer nessa passagem. De qualquer forma, não se pode usar a aparente lacuna no raciocínio de São Jerônimo para inferir que o santo não acreditasse na virgindade da Mãe de Deus durante o parto, nem muito menos para sustentar que a crença no parto virginal fosse inexistente em fins do séc. IV. Até porque o Tratado de São Jerônimo contra Helvídio não é a primeira obra cristã sobre o tema: o testemunho mais antigo de que Maria Santíssima foi Virgem no parto — e que a virgindade diz respeito à integridade física — está nos capítulos XIX e XX do Proto-Evangelho de Tiago, escrito em torno do ano 140 da Era Cristã. Lá, em Belém, quando Cristo acabara de nascer, uma parteira diz a uma sua conhecida (provavelmente outra parteira):

– Preciso contar-lhe uma maravilha jamais vista: uma virgem deu à luz. Como sabes, isso é impossível para a natureza humana.

A outra, cética, redargue:

– Pelo Senhor, meu Deus, não acreditarei enquanto não puder tocar os meus dedos em sua natureza para examinar-lhe.

E Salomé pôs seu dedo na natureza [de Maria] e soltou um grande grito: “Ai de mim! Minha malícia e incredulidade são culpadas! Eis que minha mão foi carbonizada e desprendeu-se do meu corpo por tentar ao Deus vivo!” (Proto-Evangelho de Tiago)

Este testemunho desde então reverbera no mundo, e a Igreja outra coisa não faz que o ecoar.

Há alguns anos causou estupor a revelação de que o card. Müller, então recém-nomeado prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, escrevera certas linhas que pareciam ir de encontro ao dogma católico. A resposta dele foi imediata: interpretaram-no errado. Fez questão de imediatamente professar, junto com a Igreja, a Fé na «virgindade de Maria, Mãe de Jesus, Mãe de Deus, antes, durante e depois do nascimento de Cristo». Diz, portanto, respeito o dogma sim a questões físicas, empíricas, corpóreas — é um dogma sobre um milagre, não meramente sobre as virtudes espirituais da Virgem Mãe de Deus.

Já várias vezes ouvi as pessoas perguntarem por que isso importa. Bom, em primeiríssimo lugar e antes de qualquer outra coisa, importa porque é verdade, porque aconteceu exatamente assim — e as coisas factuais, que aconteceram de determinada maneira, não precisam de um “sentido prático” para serem acreditadas.

Depois, importa porque o corpo humano importa. Somos, os seres humanos, uma unidade substancial de corpo e alma; o nosso corpo não é algo externo a nós mesmos, como se fosse uma máquina que pilotamos. Nós somos o nosso corpo. Ora, danificar o nosso corpo — de qualquer maneira que seja — é causar um dano a nós. Por isso não convinha, de nenhuma maneira, que o Salvador, no ato mesmo de vir ao mundo, causasse alguma espécie de dano Àquela que O deu à luz.

Ainda: importa porque é um milagre, porque é um daqueles sinais distintivos de Deus dos quais a história da Salvação está repleta. Por que importa que Lázaro tenha ressuscitado, que Bartimeu tenha passado a enxergar, que um paralítico tenha saído de uma casa carregando a sua liteira debaixo do braço? São sinais que marcam a passagem de Deus pela terra: é da natureza de Deus fazer milagres. Se os milagres sempre acompanharam a vida de Cristo como um séquito obsequioso, como esperar que eles estivessem ausentes justo na noite do Natal, justo na Gruta de Belém, justo no momento em que Deus nascia por nós?

Importa, por fim, porque é uma reafirmação da importância dos sinais exteriores na vida humana. É claro que a virtude é a pureza e não a integridade física. Mas a integridade corpórea está para a virgindade assim como, por exemplo, beijar um crucifixo está para a meditação da Paixão: é um sinal sensível de uma realidade interior. A Religião Verdadeira não é meramente interior, invisível, espiritual: a nossa religião é a do Verbo Encarnado e, portanto, a nossa prática religiosa é igualmente um exercício exterior. Aprouve a Deus fazer com que, na Virgem Santíssima, as virtudes interiores tivessem inequívoca expressão corporal: assim o nosso agir deve estar em conformidade com a nossa Fé, assim a nossa boca deve transbordar o que conservamos no coração, assim devemos nos mostrar ao mundo em coerência com o que afirmamos ser. Não apenas “interiormente”, mas com tudo o que somos, com a integridade do nosso ser.

Post partum, Virgo, inviolata permansistiDei Genetrix, intercede pro nobis. Que a Bem-Aventurada e sempre Virgem Maria seja em nosso favor, e nos alcance a pureza de mente e de corpo que agrada a Deus.

Desde então o mundo é diferente

“O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; sobre aqueles que habitavam uma região tenebrosa resplandeceu uma luz.” (Is IX, 1).

Na verdade, o mundo jamais esteve tão escuro quanto antes d’Aquela Noite hoje lembrada! Aquela Luz que resplandeceu nas trevas não foi um clarão passageiro, como um relâmpago após o qual a escuridão cresce ainda maior e mais ameaçadora; não. O Verbo feito Carne uniu-Se permanentemente à nossa humanidade, e o rosto da Igreja do Deus Vivo há de resplandecer até a consumação dos séculos a luz dos povos que é Cristo. Esta é a nossa Fé.

Sem dúvidas há noites escuras na história da humanidade. Mas, daquele 25 de dezembro para cá, toda escuridão é relativa e todas as trevas são residuais. A Encarnação mudou profundamente a tessitura da realidade: da mesma forma como o altar reservado ao culto da Igreja é sagrado, também adquire notas de sacralidade a própria natureza humana que Deus tomou para si, a terra onde Ele Se dignou descer. A realidade não é mais a mesma desde aquele Gloria in Excelsis em uma noite escura pela primeira vez entoado. A própria Criação até hoje ecoa a voz dos anjos — porque uma mente que se abre a uma nova idéia não torna jamais ao seu tamanho original e, com muito mais razão, o mundo que um dia acolheu o Eterno não pode mais voltar a ser como antes. Sim, o mundo é mais amplo desde que Deus aqui pisou, e todas as forças humanas reunidas não seriam jamais capazes de apagar os rastros que a passagem d’Ele deixou por esta terra. A despeito da fúria das forças infernais, o mundo nunca mais foi o mesmo.

Há noites escuras em nossas vidas — mas há o Natal! Há a lembrança imarcescível de que, um dia, em uma estábulo, em uma Manjedoura, Deus fez-Se Menino para a nossa salvação. E desde então o mundo é diferente. E, daquela Noite em diante, podem destruir um, dois ou três presépios, mas jamais conseguirão conter a força do nascimento do Verbo. Non praevalebunt.

Um Menino nos nasceu; alegremo-nos! Ele veio ao mundo em uma noite — não terá medo da escuridão de nossas almas. Enfrentou o desconforto e o frio — não estranhará, portanto, a dureza e a frieza do nosso coração. Veio para salvar os homens do pecado — e por isso não desistirá de nós, pecadores miseráveis, que há tantos natais protelamos a nossa conversão. Ele veio e sempre vem; que nós, quando menos à força da insistência!, saibamo-Lo acolher hoje em nossas vidas.

Um feliz e santo Natal a todos! Que a alegria contagiante dessa Noite possa alcançar cada vez almas sedentas de Deus; que, malgrado as árvores de Natal derrubadas, o Nascimento do Verbo possa lançar raízes cada vez mais profundas em cada vez mais corações. Que a Sagrada Família recém-completa possa abençoar-nos e proteger-nos a todos.

Se não acreditamos nisso é porque não cremos na justificação

É falsa a oposição — hoje tão disseminada — entre verdade e caridade, ou entre doutrina e pastoral, que no fim das contas não passa de uma reedição da falsa dicotomia entre Fé e obras. O problema já fora resolvido há muito tempo, pelo menos desde o Concílio de Trento; mas o enxame de satanases, demônios e lucíferes do qual o nosso século está particularmente infestado sempre consegue semear a confusão e, por vias tortuosas, lograr que a dúvida espraie suas sombras por sobre o campo outrora plenamente iluminado pelas luzes do sol da verdade. Seria frustrante se não fosse este o lavor cristão quotidiano: repisar a cabeça da velha serpente sempre ávida por se levantar, combater os mesmos combates já vencidos pelos nossos antepassados. É assim que aprouve a Deus que nos santifiquemos, no fim das contas: cada geração precisa exorcizar — de novo e mais uma vez — os mesmos demônios que, no passado, os que nos precederam já precipitaram no Inferno. Satanás quer sempre ganhar o mundo e, nesta intenção, não cessa jamais de fazer as suas investidas: mas são sempre as mesmas, com os mesmos erros e as mesmas tentações, sempre e sem jamais mudar. Somente Nosso Senhor é Aquele que faz novas todas as coisas (Ap 21, 5); o Demônio está condenado a sempre insistir nas mesmas velharias já mil vezes vencidas.

Mas voltemos à verdade e à caridade. Todo o problema está exposto e resolvido na seção VI do Concílio de Trento, de janeiro de 1547: «na justificação é infundido no homem por Jesus Cristo, a quem está unido, ao mesmo tempo, tudo isto: fé, esperança e caridade» E isso é assim porque nem «a fé nem une perfeitamente com Cristo, nem faz membro vivo de seu corpo, se não se lhe ajuntarem a esperança e a caridade».

Não existe portanto «verdade» demais, ou «doutrina» demais, ou «Fé» demais. Não existe nada disso porque uma «verdade» que não conduza à prática da caridade é antes um engodo que uma verdade, e uma «doutrina» que afaste a prática do Cristianismo é no fundo uma falsa doutrina, e uma «Fé» à qual não se lhe sigam as boas obras do homem regenerado não é Fé verdadeira. Não existem essas oposições e elas não podem existir simplesmente porque é um só e o mesmo Deus o autor de ambas, da verdade como da caridade, da Fé como das obras. Não existem essas oposições porque, em suma, como diz o Concílio, a justificação faz infundir no homem «ao mesmo tempo tudo isso: fé, esperança e caridade».

E se não acreditamos nisso é porque não cremos na justificação. E se nela não cremos — se achamos realmente que a verdade pode ser um empecilho à caridade, que a doutrina pode afastar da prática dos ensinamentos de Cristo, que a Fé pode elidir a prática das boas obras –, se não cremos na justificação, eu dizia, então católicos não somos, então não precisamos (e aliás não podemos) nos dizer cristãos. Se nós achamos a sério que a caridade pode ser estimulada em oposição à verdade, ou que a pastoral pode ser vivida sem o supedâneo da doutrina, ou que as boas obras podem ser praticadas prescindindo da Fé Católica e Apostólica, então nós não somos católicos e sim naturalistas que não têm Fé, não guardam a Doutrina e estão distantes da Verdade. Se achamos isso então a nossa caridade não é sobrenatural, a nossa pastoral não é cristã e as nossas obras não são meritórias. E se é assim, então ai de nós.

É evidente que há católicos que não praticam a caridade com todas as suas exigências; mas tal se dá justamente porque eles não estão suficientemente convencidos da verdade de que há um mandamento da caridade a cujo cumprimento os cristãos não se podem furtar. Salta aos olhos que as nossas paróquias apresentam muitas vezes abordagens pastorais inadequadas; isso, contudo, acontece precisamente porque lhes falta a Doutrina de que o Evangelho precisa ser anunciado a toda criatura. Ninguém nega que o mundo esteja carente de boas obras cristãs; isso no entanto só acontece porque a Fé Cristã não é acreditada e vivida em toda a sua radicalidade. Em resumo, há problemas pastorais, há falta de caridade e há escassez de boas obras, claro que os há: mas tudo isso é fruto precisamente da má Doutrina, da falta de Fé e do afastamento da Verdade.

Se cremos na justificação, sabemos que as obras são fruto da Fé Católica, que a caridade constrange mediante a Verdade que é Cristo, que o anúncio do Evangelho é ponto central da Doutrina Cristã. E se é assim não podemos jamais pretender fomentar a caridade escondendo a verdade, multiplicar as obras ocultando a Fé, viver o Cristianismo prescindindo da doutrina — tudo isso é engodo e ilusão. As nossas obras não frutificam como as dos primeiros cristãos porque a nossa Fé já não reluz como a deles; a Igreja não cresce mais como nos tempos áureos da Igreja porque a nossa Doutrina não é mais tão límpida como já foi no passado; e a caridade já não transforma o mundo como antigamente porque, hoje, a Verdade não detém o mesmo lugar de honra que lhe reservavam os que nos precederam. O problema não é excesso senão falta de Fé; não é insistência na Verdade mas sim descaso para com ela; não é Doutrina demais, senão Doutrina de menos!

É preciso, portanto, coroar a Verdade para que a caridade reine no mundo. É preciso aumentar a Fé do povo cristão para que as boas obras espalhem o doce odor de Cristo pelo mundo. E é preciso que a Doutrina seja conhecida e mantida em toda a sua integridade a fim de que a Igreja expanda o Reino de Cristo até os confins da terra. Qualquer estratégia diferente dessa é loucura e desvario; qualquer abordagem que não leve em consideração os liames íntimos entre o que se crê e o que se vive não levará senão ao fracasso do apostolado e ao descrédito do Cristianismo.