A maior “inconveniência” é o próprio Evangelho

Um leitor me perguntou aqui sobre uns documentos do início da Era Cristã que supostamente trariam informações “revolucionárias” sobre o Cristianismo. De antemão e antes de qualquer análise sobre o conteúdo específico dessa notícia, não tenho medo de já adiantar que ela não merece crédito.

Isso porque o Cristianismo tem um acentuado caráter público que, ao longo da história, sempre lhe valeu os maiores problemas. Fosse a mensagem cristã um conhecimento esotérico restrito somente aos iniciados, a Igreja não precisaria ter sempre se indisposto tanto com os poderes do mundo. Aqui, a imagem do antigo Pantheon romano sempre foi muito significativa: lá sempre couberam todos os deuses do mundo, mas os cristãos jamais aceitaram colocar a Cristo ao lado dos outros ídolos pagãos.

Não se tratou somente de exclusivismo; quero dizer, o conflito não surgiu somente do fato de Cristo pretender-Se o único Deus. Esta é uma pretensão clássica do judaísmo: afinal de contas, os judeus já cantavam o Sh’ma Yisrael quando Rômulo e Remo ainda cheiravam a leite de loba. O problema maior é o caráter público da Revelação cristã: Cristo não apenas é o único Deus como essa doutrina precisa ser ensinada a todos os povos da terra, passando por cima das antigas tradições e reduzindo a cacos os ídolos dos povos pagãos.

Os cristãos sempre levaram muito a sério aquela história de anunciar o Evangelho de cima dos telhados — e foi isso e não outra coisa o que sempre lhes valeu as maiores perseguições. O Cristianismo nunca foi uma questão de foro íntimo, mas ao contrário: sempre foi uma religião que exigiu cidadania e, exigindo-a, entrou em rota de colisão com os poderes constituídos de todos os impérios da terra. Nunca foi suficiente acreditar que Cristo é o Senhor; os cristãos sempre precisaram dizê-lo em público, e esse hábito — humanamente falando — sempre lhes rendeu os maiores dissabores. A paz que havia dentro do Pantheon foi quebrada quando os cristãos condicionaram a salvação de todos os homens ao sacrifício da Cruz somente. À parte ser verdade, é forçoso reconhecer que se trata de uma mensagem bastante desagradável de se ouvir — principalmente para quem não é cristão.

Ora, diante de tudo isso, a idéia de um “complô” eclesiástico para esconder as “verdades inconvenientes” do Cristianismo não goza de nenhuma verossimilhança. A maior “inconveniência” é o próprio Evangelho — é essa história de dizer que é preciso arrepender-se dos próprios pecados, amar os inimigos, desprezar os prazeres da terra, abandonar os ídolos e adorar a Deus somente. As coisas mais inconvenientes são justamente as exigências do Novo Testamento tais e quais nos chegaram: basta ver como até hoje o mundo não suporta a mensagem cristã. Sendo as coisas assim como são, se fosse para esconder uma doutrina inconveniente melhor negócio fariam os cristãos primitivos em proscrever os Quatro Evangelistas e divulgar o Evangelho de Tomé!

Se os primeiros cristãos quisessem esconder a mensagem de Cristo, o crível é que apenas o fariam na própria conveniência — ou seja, é de se esperar que, se alguém vai cometer alguma falsidade, fá-lo-á somente para obter para si algum benefício. Mas, ora, os primeiros cristãos não foram beneficiados com o anúncio do Evangelho, muito pelo contrário. Não ganharam honrarias nem riquezas, não obtiveram poder e nem tranquilidade: foram perseguidos e caluniados, torturados e mortos. Ninguém inventa uma história para perder tudo o que tem e sofrer uma morte horrível. Nem se diga que a perseguição foi um resultado imprevisto e indesejado: primeiro porque era evidente que aquela história de «obedecer antes a Deus que aos homens» iria desagradar os poderosos da terra, e segundo porque certamente os fautores da lenda confessariam a própria mentira quando começassem a ser perseguidos. Ninguém sustenta uma mentira às custas da própria vida.

O fato é que os primitivos cristãos teriam sofrido muito menos se adotassem o discurso encontrado nos evangelhos gnósticos — e que fazem tanto sucesso na espiritualidade New Age contemporânea. Não há nada de «revolucionário» naquelas mensagens grosseiras que apenas acentuam o dualismo do mundo, o descompromisso com a vida pública, o subjetivismo individualista. Vou mais além e digo até que nunca se poderá, jamais, encontrar nada mais revolucionário, porque o homem não seria nunca capaz de criar uma mensagem mais perturbadora do que Aquela que o próprio Deus fez ressoar no mundo. Os códices antigos, com suas doutrinas primitivas, só servem para enobrecer os Evangelhos por comparação.

Os cristãos são os portadores de uma mensagem inovadora — da mais inovadora mensagem que já foi anunciada no mundo, e à qual as velharias descobertas em cavernas esquecidas pelo tempo não poderão jamais fazer frente. Nós somos os herdeiros da Boa-Nova que não coube no Pantheon e, justamente por isso!, ganhou o mundo. Não nos impressionemos com os paganismos grosseiros sobre os quais a Igreja há muitos séculos já triunfou.

Pode-se deixar de lado a verdade histórica?

O texto-base da Semana de Oração para a Unidade dos Cristãos deste ano provocou estranheza ao dizer, entre outras coisas, que Martinho Lutero — o reformador protestante — seria uma «testemunha do Evangelho». Literalmente, o documento fala logo no início:

Deixando à parte o que é polêmico, nas visões teológicas da Reforma, católicos agora são capazes de ouvir o desafio de Lutero para a Igreja de hoje, reconhecendo-o como uma “testemunha do evangelho” (Do Conflito à Comunhão 29).

Infelizmente, a referida «semana de oração» presta-se muitas vezes ao mesmo papel que, no Brasil, a CNBB desempenha com a sua Campanha da Fraternidade: obscurecer a mensagem do Evangelho com um discurso anódino cujo objetivo maior é quase sempre afirmar lugares-comuns. Porque, ora, «deixando à parte o que é polêmico» pode-se afirmar qualquer coisa, é lógico. Afinal de contas, sempre e por definição, tirando tudo o que está ruim tudo está sempre muito bem e não há como ser diferente. À parte tudo o que tem de errado a Reforma Protestante só tem coisas corretas, e o mesmo se pode dizer de absolutamente qualquer coisa na face da terra.

O problema é que «deixando à parte o que é polêmico» nós estaremos deixando de lado o próprio protestantismo, exatamente naquilo que o faz ser o que é, no que o distingue do Catolicismo. Deixando de lado o fato de que Lutero, falsificando o Evangelho, levou milhões de almas à perdição nos séculos seguintes, então se pode dizer, é claro, que ele tenha sido «testemunha» da mensagem cristã. Mas a pergunta que interessa aqui é: pode-se deixar de lado, desse jeito, a verdade histórica?

Porque quando a comissão conjunta atribui a Lutero o pomposo “título” de «witness to the Gospel» o que ela está fazendo é exatamente isto: valorizando as (supostas) intenções do monge atormentado e desculpando-lhe as atrocidades pelas quais ele passou à história. É rigorosamente o que se diz no «Do conflito à comunhão» (p. 22):

29. Aproximações implícitas com as preocupações de Lutero levaram a uma nova avaliação de sua catolicidade que teve lugar no contexto do reconhecimento de que sua intenção era reformar, não dividir a Igreja. Isso é evidente nos posicionamentos do Cardeal Johannes Willebrands e do Papa João Paulo II. A redescoberta dessas duas características centrais [de que não queria dividir e que queria reformar] de sua pessoa e teologia levaram a uma nova compreensão ecumênica de Lutero como “testemunha do Evangelho”.

Ou seja, pode-se chamar o velho alemão de «testemunha do Evangelho» porque, na verdade, a «sua intenção era reformar, não dividir a Igreja». Parece importar pouco que, historicamente, ele tenha dividido a Igreja ao invés de A reformar; a aproximação dita ecumênica autoriza ignorar os fatos para se ater às motivações ocultas. Ora, o problema é que desse jeito se pode justificar quase qualquer coisa! Deve ser muito pequeno o número de indivíduos no curso da história que não tinham, ao menos em alguma medida, intenções boas (e então, pra ficar só em um exemplo, a intenção de Fidel Castro provavelmente era libertar, e não escravizar o povo cubano); o ponto é que não é isso o que importa, e sim o resultado exterior, observável, das ações das personalidades históricas. A ignorância de Lutero, ou a sua demência, ou sua possessão demoníaca ou qualquer outra coisa do tipo, pode até lhe ter mitigado a responsabilidade pelos gravíssimos pecados que cometeu; mas não tem, no entanto, e nem pode ter, o condão de, externamente, transmutá-lo em defensor Fidei!

A investigação psicológica das motivações íntimas — essa espécie de história da vida privada — tem decerto relevância na medida em que o conhecimento verdadeiro é em si mesmo bom; mas é um claro equívoco utilizá-lo para lançar um manto de esquecimento sobre a tradicional história da vida pública, externa e factualmente observável. Não é sem razão que a sabedoria popular diz que de boas intenções o inferno está cheio. Lutero pode ter tido as melhores intenções do mundo: o fato objetivo e incontrastável, no entanto, é que causou um dano terrível à Cristandade, tendo precipitado ao inferno as almas — multidões de almas! — que deram mais ouvidos às suas sandices do que às palavras de Vida Eterna ecoadas pelo Vigário de Cristo.

Pesadas todas as coisas, sem deixar «à parte o que é polêmico», é evidente que a verdadeira testemunha do Evangelho, no contexto da Reforma Protestante, foi Leão X e não Lutero. O silêncio sobre isso corre o sério risco de se tornar uma inverdade histórica por omissão. É preciso haver reconciliação entre os cristãos, sim, porque é preciso que o filho pródigo retorne; mas qualquer reconciliação somente é possível na verdade e não no auto-engano — e simplesmente não tem lá muito sentido dizer que, deixando à parte o fato de se tratar de comida estragada, a lavagem dos porcos foi o alimento que deu ao irmão mais novo o vigor necessário para empreender o retorno à casa paterna.

Nam oportet et hereses esse ut et qui probati sunt manifesti fiant in vobis (ICor XI, 19): importa que haja heresias, para que se manifestem os que são probos. Esta passagem de São Paulo aplica-se também aqui. Lutero só é «testemunha do Evangelho» no sentido em que o erro é testemunha da verdade: por oposição. Aliás, é até curioso que a comissão luterana tenha subscrito aquele texto: de acordo com ele, só é possível reconhecer o testemunho evangélico de Lutero na exata medida em que a sua obra pública contradiz a presumida nobreza de suas intenções privadas.