A Noite diferente das outras noites

Por que esta noite é diferente das outras noites? Esta é a frase que Mel Gibson coloca nos lábios da Virgem Santíssima no início do seu Paixão de Cristo. Trata-se ali de uma espécie de responsório judaico tradicional, o Ma Nishtana que há milênios é cantado no Seder de Pessach. Os judeus têm razão e esta noite é de fato diferente, tão diferente que merece uma liturgia própria e sem paralelo em todo o ano litúrgico. A missa da Quinta-Feira Santa é diferente de todas as outras missas, e nos comove e enleva, e nos compunge e assusta.

Há branco e há órgão, há flores e há incenso e parece até que a atmosfera lúgubre da Quaresma foi deixada para trás. Mas a impressão dura pouco, somente enquanto estamos na Ceia, somente enquanto Nosso Senhor está de toalha à cinta para lavar os pés aos Seus discípulos: dentro em breve é Getsêmani e tentação, é coorte e deslealdade, é julgamento e prisão. Esta parte da história não nos é contada nas leituras do Evangelho que, hoje, mantêm-nos no Cenáculo: mas ela exsurge terrível dos ritos que se sucedem em perturbadora profusão após o Lava-Pés.

A começar pelo cânon, que possui Communicantes próprio e mesmo um inaudito Qui pridie exclusivo para o dia da instituição da Eucaristia. É certo que estas mudanças nas orações sagradas, ditas em voz submissa pelo sacerdote que adentra sozinho o Santo dos Santos, não são notadas pelos fiéis que de joelhos acompanham o Santo Sacrifício: mas estes não deixam de perceber o som abafado das matracas que, após o Sanctus, ressoa sombrio por todo o templo. O órgão já estava em silêncio desde o Gloria, mas o estrépito de metal e madeira provocado por elas produz um efeito aterrador. Fazia um ano que não as escutávamos! E o seu barulho seco nos momentos em que estávamos acostumados a ouvir os sinos nos diz, de maneira insofismável, que alguma coisa está perturbadoramente fora de lugar. É a velha Missa que conhecemos muito bem mas, ao mesmo tempo, é outra coisa. Que Liturgia é essa que, iniciando festiva e pomposa ao som do órgão, chega ao seu ápice assim vazia e desolada?

E então o Sacrário fica aberto, e Nosso Senhor é trasladado para a sacristia enquanto O acompanhamos ao som do Pange Lingua. Depois o retorno à nave e o desnudamento do altar, e a sensação de estranheza a cada momento fica mais intensa: que igreja é esta onde as imagens estão todas cobertas de roxo, onde a lâmpada do sacrário não mais refulge, onde o altar está em pedra nua? Se a intenção era nos conduzir àquela noite tão diferente de todas as outras noites, àquela noite terrível onde o Filho do Homem foi entregue aos Seus inimigos, àquela primeira Quinta-Feira Santa, então é preciso dizer que o objetivo dificilmente poderia ser melhor alcançado. Em nenhum outro momento do ano o templo fica com um ar tão grave de abandono, onde realmente parece que Cristo nos foi tirado e estamos vivendo a hora do poder das trevas.

E saímos da igreja e voltamos para casa desamparados, com a angustiante sensação de que a última Missa de todas acabou de ser celebrada e o mundo está agora desprotegido porque todos os altares da terra estão desnudos, e em nenhum deles se celebra mais um sacrifício para aplacar a cólera de Deus.

A humanidade que resplandece em meio à dor

O terrível acidente aéreo que nessa madrugada vitimou a delegação da Chapecoense não cessou de nos desconcertar ao longo de todo o dia. É difícil fugir à impressão de que existe uma grande injustiça cósmica por trás do trágico acontecimento: são muitos os níveis de inconformação que existem aqui. Primeiro que toda morte é uma tragédia. Depois, a morte na juventude, quando se tem toda a vida pela frente, é ainda mais trágica e mais incômoda. Dentre todas as mortes trágicas, parece que as envolvendo acidentes aéreos nos perturbam sobremaneira: talvez porque elas muitas vezes se devam ao mais brutal acaso, ou talvez porque revelem a nossa impotência diante do inevitável. Mais ainda: nem todo acidente destrói uma instituição inteira! A morte de um ou dois jogadores seria, lógico, sempre uma tragédia; mas a morte de praticamente o time inteiro é uma catástrofe de dimensões tão grandes que nos deixa pasmos e perdidos. E há, por fim, o momento em que sobreveio o acidente: a Chapecoense vinha de uma campanha belíssima de esforço e determinação, havia heroicamente conquistado uma vaga na final da Copa Sul-Americana e se preparava para disputar o seu primeiro troféu internacional. Tudo isso junto nos comove e atinge de uma maneira particular: este acidente não é igual aos outros acidentes. Sim, pessoas morrem todos os dias e todas as vidas são infinitamente valiosas, é óbvio; mas é forçoso reconhecer que a comoção que a queda do vôo 2933 da LaMia nos provoca não é artificial ou fabricada, ao contrário: tem uma justa razão de ser.

As grandes tragédias não deixam nunca de proporcionar terreno fértil para toda sorte de irresignação: hoje não é diferente e hoje não há nada de diferente a se dizer. As mesmas reflexões que foram feitas aqui quando da queda do vôo 447 da Air France continuam valendo: a dor é parte indissociável da existência humana e o que Cristo prometeu à humanidade foi o consolo nos tormentos, não imunidade contra os males da terra. A Fé não implica em uma insensibilidade diante dos sofrimentos, mas ao contrário: aqueles que têm Fé os sentem em toda a sua intensidade, mas são capazes de os colocar na perspectiva da Cruz de Nosso Senhor. É isto o que ensina a Salvifici Doloris, é desse ponto central do Cristianismo que o mundo moderno padece tanta falta.

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Os pequenos heroísmos aparecem de maneira tão mais admirável quanto mais impiedosamente a dor se expande por pessoas que em princípio nem teriam muita proximidade com os envolvidos na tragédia. É edificante, por exemplo, ver Alan Ruschel — um dos poucos sobreviventes do acidente — dar entrada no hospital pedindo à equipe médica que tome cuidado com a sua aliança de casamento. Pode parecer uma preocupação extemporânea com um bem material, mas é exatamente o contrário: uma aliança não é nunca um bem material e sim uma realidade espiritual, e ela não vale senão na medida em que simboliza um compromisso de uma vida. O valor da aliança (como o de qualquer outro símbolo) não está no símbolo em si, senão naquilo que é simbolizado.

E é diante da morte que as coisas são colocadas em perspectiva e as mais importantes ressaltam com um fulgor todo próprio, não raro escondido sob a monotonia do quotidiano: olhar no fundo dos olhos da Morte e ser capaz de pensar na família é um exemplo que nos inspira, e bem faríamos em trazê-lo sempre diante dos olhos e em praticá-lo todos os dias — sem que nos seja necessário passar por tudo aquilo que passou o lateral da Chape. Se tem algo que aprendemos com as tragédias é que a vida é frágil e preciosa. Não sabemos até quando nos será concedido vivê-la; temos, portanto, o dever de fazer dela o melhor possível.

O futebol não tem a fama de ser a ocupação mais virtuosa do mundo: mas a imensa corrente de solidariedade à qual acorreram hoje os mais diversos times do mundo mostra que o ser humano é sempre o ser humano e, portanto, onde quer que ele esteja, ele consegue fazer refulgir aquela imagem de Deus que nem o Pecado Original foi capaz de apagar. Nada surpreendentemente, parece ser sempre possível encontrar virtude — mesmo que em lampejos — em tudo o que é propriamente humano: mesmo em meio às maiores contradições, o homem está condenado a arrastá-la sempre atrás de si. É a vitória da Criação sobre a Queda, ilustrada de maneira admirável de onde menos se esperaria.

Uma coisa em particular me chamou a atenção nessa história, e foi a declaração do técnico da Chapecoense após o último jogo, poucos dias atrás: “Se eu morresse amanhã, morreria feliz”. Caio Júnior estava provavelmente no ápice da sua carreira e demonstrava uma serenidade, uma placidez, uma tranquilidade no trabalho bem realizado que — mais uma vez — muito nos tem a ensinar. Se existe a santificação no exercício do próprio trabalho, penso que ela se reveste desse ânimo com o qual o treinador da Chape levou o seu time a Medellín. Oxalá cada um de nós pudéssemos cumprir assim as nossas obrigações.

Enfim, a morte é sempre uma tragédia, principalmente quando vem de surpresa — e rezar pelos que sofrem é obra de misericórdia cristã a que estamos sempre obrigados. Que a Virgem Santíssima possa interceder pelas vítimas do vôo 2933! Que Ela alcance a misericórdia de Deus para os que partiram; aos que ficaram, o consolo necessário para continuarem as suas vidas em meio a este Vale de Lágrimas. Com o melhor que tiverem. Até a Pátria Definitiva.

A fidelidade é também um martírio

Quanto autem eis praecipiebat, tanto magis plus praedicabant.

O bem é por sua própria natureza difusivo. Nosso Senhor ordenou-nos, no final de Sua vida terrestre, que fôssemos pelo mundo inteiro anunciando o Evangelho a toda criatura; mas a rigor nem precisaria ter-nos ordenado. Os discípulos de Cristo, é certo, sentiriam no seu âmago a necessidade contar a todo mundo a Boa Nova que haviam descoberto — e haveriam de sair pregando o Evangelho da Salvação Cristo tendo-o ordenado ou não.

Aliás, mesmo que o tivesse proibido! As Escrituras não nos dão testemunho? Certa feita, por exemplo, Nosso Senhor curou um surdo-mudo. Os que O acompanhavam ficaram extasiados. Cristo — diz-nos o Evangelista —  «[p]roibiu-lhes que o dissessem a alguém. Mas quanto mais lhes proibia, tanto mais o publicavam» (Mc VII, 36).

O anúncio do Evangelho não pode ser proibido. Todas as experiências históricas o demonstram de forma cabal. Não já foi a Igreja perseguida milhares de vezes em centenas de circunstâncias diferentes? Em cada uma delas o Cristianismo não sucumbiu, mas ao contrário: soube crescer e germinar sob a terra, a fim de florescer na primeira oportunidade. Os séculos se encarregaram de provar verdadeiro o dito de Tertuliano segundo o qual o sangue dos mártires é semente de cristãos. Mas, ora, a ridicularização também não é uma forma de martírio? Foi o que São João Paulo II disse certa vez aos jovens, em uma mensagem que se tornou antológica:

Também hoje, caríssimos amigos, crer em Jesus, seguir Jesus pelas pegadas de Pedro, de Tomé, dos primeiros apóstolos e testemunhas, implica uma tomada de posição a favor d’Ele e, não raro, quase um novo martírio: o martírio de quem, hoje como ontem, é chamado a ir contra a corrente para seguir o divino Mestre, para seguir «o Cordeiro por onde quer que vá» (Ap 14, 4). Não foi por acaso, queridos jovens, que eu quis que, durante o Ano Santo, se recordassem junto do Coliseu as testemunhas da fé do século vinte.

Talvez não vos seja pedido o sangue, mas a fidelidade a Cristo é certo que sim!

19 de agosto de 2000
Vigília de Oração — XV Jornada Mundial da Juventude

Talvez o sangue não nos seja pedido; mas a fidelidade sim! E esta fidelidade contra tudo e contra todos, da qual o mundo debocha e por conta da qual somos chamados de fanáticos e intolerantes, que nos fecha portas e nos afasta de amizades, que merece escárnio, desprezo e piadas, esta fidelidade, em suma, que tanto dói e tanto machuca… não é também uma forma de martírio? E sendo essencialmente martirial, não terá também o condão de difundir a Fé? A fidelidade não será abençoada por Deus, a fim de que se torne, ela também, semente de cristãos?

O bem é difusivo e não pode ser contido. O Evangelho é uma Boa Nova cuja descoberta não pode deixar de ser partilhada — quem O guardasse para si, na verdade, não O teria realmente encontrado. O Apostolado não é uma exigência que nos é feita desde fora, mas um impulso que brota da própria Fé e nos move a partilhar com os nossos próximos aquilo que outros partilharam conosco — aquilo de que todo ser humano precisa, pelo qual todo homem anseia.

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O cristão ou é apóstolo ou é apóstata. O apostolado não é uma opção, não é algo que possamos desempenhar ou retrair a nosso talante. São Paulo uma vez exclamou: «Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!» (ICor IX 16b) — e bem faríamos em ter esta imprecação ressoando, sempre, nos nossos ouvidos indolentes. Não nos podem proibir o anúncio do Evangelho; nenhuma autoridade sobre a terra tem este poder.

O Evangelho precisa ser anunciado por sobre os telhados. Precisa, aliás, ser tanto mais anunciado quanto mais o desejarem silenciar — ai de nós se nos calarmos! É nas perseguições que o Cristianismo floresce; sempre foi assim e não é hoje que haverá de ser diferente. A fidelidade nos é tanto mais exigida quanto mais força fizerem para que sejamos infiéis: que o bom Deus nos conceda sempre a graça de resistir a cada dia. A fidelidade é também um martírio — que a saibamos bem sofrer. Deus não deixará que seja em vão; o Altíssimo, que tudo vê e tudo pode, saberá fazer da fidelidade dos novos mártires a semente da Igreja.

O dia que ficou de fora da Bíblia

À primeira vista, o sábado de hoje é o dia em que nada acontece: na contramão de um saudável carpe diem, parece que hoje é um dia que existe apenas em função da madrugada que há-de vir. Na Quinta-Feira acompanhamos Nosso Senhor ao Horto e, na Sexta, presenciamos a sua crudelíssima Paixão. Hoje apenas esperamos a Vigília de mais tarde.

Se fomos primeiro ao Horto e em seguida ao Gólgota, a lógica talvez nos mandasse ir, hoje, ao Sepulcro. Mas a narrativa bíblica é diferente. Um versículo fala do entardecer da Sexta-Feira — “[f]oi ali que depositaram Jesus por causa da Preparação dos judeus e da proximidade do túmulo” (Jo XIX, 42); o subsequente fala já da alvorada do Domingo — “[n]o primeiro dia que se seguia ao sábado, Maria Madalena foi ao sepulcro” (Jo XX, 1a). O mesmo Túmulo une os dois versículos contíguos; entre eles, contudo, passa silente um Shabbat inteiro!

Hoje estamos exatamente entre o último versículo do Cap. XIX e o primeiro versículo do Cap. XX do Evangelho de São João; é o dia que ficou de fora da Bíblia. Talvez por isso a Igreja silencie seu culto público e, nos nossos templos, durante todo o dia não vejamos mais do que os altares desnudos e os sacrários abertos — com os quais já quase nos acostumamos desde aquela noite angustiante da Última Ceia.

Trata-se de um dia inteiro sem que a Igreja de Deus nada celebre, caso único em todo o Calendário Litúrgico. E neste silêncio da Igreja nós encontramos e vivenciamos o silêncio do Túmulo Santo. Hoje devíamos ir ao Sepulcro, eu disse acima, e na verdade é exatamente isto o que acontece nesta não-Liturgia: como os Apóstolos, experimentamos o desalento porque o Filho de Deus está morto e não temos para onde ir. Todo ofício litúrgico é Cristo que fala mediante a Igreja: quando o sopro frio da morte silencia os lábios do Divino Mestre, quando a pedra do Túmulo encerra para além do nosso alcance o Verbo de Deus, a Igreja — eco fiel do Salvador — também emudece. Na Quinta-Feira Cristo era traído e a Igreja ecoava os Seus gemidos na prisão; na Sexta-Feira Ele era crucificado e a Igreja repercutia os Seus gritos no patíbulo da Cruz. Hoje, no entanto, Ele está morto, e a Igreja reverbera no mundo o silêncio do Sepulcro calando-se também.

Talvez o silêncio da Bíblia sobre este Sábado seja, justamente, a melhor forma de expressar o seu vazio e a sua desolação.

Mas neste dia de solidão nós podemos contar com Alguém que aqui ficou: Alguém que nos foi deixada como penhor de que Ele voltaria, Alguém que a Cruz não arrancou ao mundo dos vivos. Alguém a quem foi dado manter a chama da Graça acesa na terra, enquanto o Criador do mundo descia à escuridão do Hades. Alguém que Deus amou tanto que Lhe confiou o mundo durante os três dias em que Ele precisou se ausentar.

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Todo Sábado é dia de Nossa Senhora justamente em referência a este Sábado terrível de hoje, em que o Criador foi expulso do mundo pela criatura. O Verbo fez-Se homem e nós O crucificamos; veio até nós e nós O fizemos sair à força; sufocando-O no alto da Cruz nós O expulsamos do mundo dos vivos, e selando-O no interior da terra, longe dos nossos olhos, tentamos afastar de nós até mesmo a lembrança do que Ele havia sido.

A nossa impiedade, grande o suficiente para destruir o Filho de Deus, não ousou contudo levantar-se contra a Virgem Santíssima! Fomos maus o bastantes para crucificar o Verbo Encarnado; diante da Mãe do Verbo, no entanto, mesmo a nossa imensa maldade chegou a vacilar. Crucificamos o Filho e O expulsamos do nosso mundo; a Mãe, no entanto, não fomos ímpios o bastante para degredar também.

E Ela aqui ficou, e foi a nossa salvação, porque talvez o mundo não resistisse ao Sepulcro de Deus se nada d’Ele houvesse restado sobre a terra. Restou-Lhe a Mãe; e foi suficiente para atravessarmos este sábado, e para que hoje pudéssemos celebrar, no silêncio do templo deserto, a espera da Ressurreição. Hoje como n’Aquele Shabbat terrível, é a Santíssima Virgem Maria quem retém a graça de Deus que restou no mundo — a parcela da Graça que não ousamos expulsar — e sustenta, durante o silêncio enlouquecedor deste dia, os discípulos do Seu Divino Filho.

É aos pés d’Ela que choramos os nossos crimes. É sob o manto d’Ela que nos protegemos da morte de Deus. É unidos a Ela somente que sobreviveremos até a Ressurreição.

O luto da Sexta-Feira Santa

O preto de hoje talvez seja uma das maiores mudanças da Liturgia pascal antiga em relação à do Novus Ordo. A Celebração da Paixão do Senhor, desde que me entendo por gente, assisto-a com o sacerdote vestido de vermelho: cor do sangue, cor do martírio. Hoje, na Forma Extraordinária do Rito Romano, vi a Paixão ser celebrada com o sacerdote ostentando paramentos pretos — negros como a morte, escuros como a Noite que se fez durante a Crucificação hoje rememorada.

Paramentos negros! A bem da verdade, a estola somente sobre a alva — na função litúrgica de hoje, não propriamente sacramental, o padre não enverga a grande casula negra das missas de Réquiem — é até bastante discreta. Mas não perde em eloquência. A prostração diante do altar vazio com a qual se inicia o rito de hoje é bem expressiva daquele abandono ao qual fiz referência ontem, no fim da Missa in coena Domini: parece que deu tudo errado, parece que acabamos de perder algo que já nos havíamos acostumados a ter sempre conosco, parece que os nossos pecados desta vez foram demais e, por conta deles, a desolação fez-se presente no lugar santo — e o templo, vazio, censura-nos a impiedade.

Mas é durante as Grandes Orações que o negro dos paramentos se faz mais vívido. O padre voltado para o altar, diante de nós, com o pluvial preto, a grande capa escondendo-lhe praticamente todo o brancor da alva. Agora, sim, o luto da cerimônia se faz mais presente, mais pesado, quase como se lhe pudéssemos tocar. Dirigimos as nossas súplicas Àquele que crucificamos: pedimos pelo Papa, pela Igreja, pelos sacerdotes, por nós próprios. E num arroubo missionário que brota do lado do Crucificado, é como se as graças alcançadas no Calvário não se contentassem com a Igreja apenas. O Sangue vertido na Cruz do Gólgota pede mais — e o sacerdote de negro clama ao Deus Altíssimo sucessivamente pelos hereges e cismáticos, pelos judeus, pelos pagãos. É de Cristo que nasce a Igreja, mas é também da Cruz que Ela se expande para abarcar aqueles que, antes, a Ela não pertenciam: e a cada vez que nós celebramos a Sexta-Feira da Paixão, nós nos lembramos disso e, solenemente, enlutados, pedimos ao Deus elevado no madeiro da Cruz que Se digne atrair a Si o mundo inteiro.

Sem dúvidas o luto é bem apropriado ao dia de hoje. E se trata de uma dupla tristeza: há a falta que nos faz o Cristo, sem dúvidas, que até ontem estava conosco e hoje nos foi retirado; há a dor da Crucificação, evidentemente — ó vós que passais pelo caminho, olhai e vede se há dor como a minha!, como nos interpela a Pietà. Mas há uma dor ainda maior e mais pungente, uma dor que enlouquece e desespera: há a dor da culpa, e é essa que não suportamos, é essa que somos constantemente tentados a afastar de nossa frente — e é exatamente por isso que devemos sempre acompanhar piedosamente o Tríduo Santo, ano após ano, para ver se daqui para o dia da nossa morte, com a graça de Deus, conseguimos nos emendar.

Tudo isso que estes dias estamos vivenciando, tudo, tudo, o Getsêmani e a traição, a prisão e os julgamentos injustos, a flagelação e as bofetadas, a coroa de espinho e as cusparadas, o caminho do Calvário, as quedas, a transfixação dos pés e dos pulsos, a sede, o vinagre, a asfixia da Cruz, tudo é por culpa nossa, tudo é por culpa minha. E não se trata aqui da culpa difusa que estamos acostumados a dividir com os nossos contemporâneos, por exemplo, a culpa de uma equipe pelo fracasso de um projeto. No geral, um determinado conjunto de pessoas é capaz ainda de alcançar o objetivo a que se propõe mesmo que um de seus membros falte com os seus deveres, e a falha de um só não é de ordinário capaz de frustrar os esforços de todos. Quando fracassa uma empresa de muitos, não é geralmente por conta de um apenas: o malogro de um projeto comum ocorre devido aos erros de vários, e isso de certo dilui a culpa de cada um dos corresponsáveis pela empreitada.

Na Paixão de Cristo, no entanto, não é assim. A Redenção é da humanidade inteira, é verdade, mas ela se aplica toda a cada pecador. Dito de outro modo, não foi um grande conjunto de pecados que fez Cristo sofrer e morrer — um grande conjunto para o qual a minha contribuição é bem modesta e, portanto, bem pequena a minha responsabilidade. Não; Cristo sofreu tudo por cada pecado, e isso de tal modo é verdadeiro que, se fosse eu o único ser humano a pecar na face da terra, a Paixão seria a mesma, e os mesmos seriam os gritos de dor, as mesmas as lágrimas que atravessam os séculos, o mesmo o Sangue que tinge de rubro o madeiro da Cruz. Não foi por uma imensidão genérica de pecados que Cristo morreu, mas pelos meus! Vistas as coisas assim, é até bem pouco o luto que hoje nós manifestamos: nem mesmo no silêncio litúrgico é possível ouvir os gemidos que nos deveriam aflorar do fundo do peito, e a pequena dor que sentimos ao acompanhar a procissão do Senhor Morto é somente um pálido reflexo da compunção que nos deveria vergar o corpo por terra.

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Esta Sexta-Feira Santa é também 25 de Março, é também o dia da Anunciação (*): convergem hoje para o mesmo dia a Encarnação e a Paixão, e o “alegra-Te!” do Anjo à Santíssima Virgem divide espaço com as lágrimas que Ela verteu ao pé da Cruz. Hoje uma Virgem trouxe Deus aos homens; hoje uma Virgem entregou o Seu Filho a Deus. Se o nosso arrependimento não está à altura da multidão dos nossos pecados, olhemos corajosamente para a Virgem Maria, confiemos n’Ela, recorramos a Ela — e Lhe supliquemos que todo este horror não seja em vão.

[(*) Liturgicamente, como as celebrações da Semana Santa têm precedência sobre quaisquer outras festas, a Liturgia da Anunciação é transferida para a segunda-feira depois da Oitava de Páscoa. Este ano, portanto, celebrar-se-á a Festa da Anunciação aos quatro de abril, já em pleno tempo pascal.]

Os contrastes da Quinta-Feira Santa

“Será que vai ter Gloria”? Eu me perguntava enquanto o coral entoava o Kyrie da Missa de hoje, Missa da Quinta-Feira Santa celebrada segundo as rubricas de 1962. Era a primeira vez que eu assistia ao Sagrado Tríduo celebrado na Forma Extraordinária do Rito Romano. A Missa do Lava-Pés, a Nova, sei-lo bem, tem Glória sim; o último Glória antes do da Vigília Pascal.

Lembro-me deste Glória em específico por conta da Paróquia da Torre: é apenas após ele que os instrumentos, todos, emudecem, e os cânticos populares serão conduzidos pela voz dos cantores somente — até a Missa de Aleluia. A mudança do barulho para a sobriedade é notória; o contraste chega a ser chocante. Já o disse outras vezes, creio, que a música litúrgica não é lá o ponto forte daquela paróquia querida, onde me crismei e onde fui por anos catequista: mas, de todas as celebrações do ano, as da Semana Santa — mais especificamente as do Tríduo Santo — eram primorosas. Era o Glória que marcava tudo: era a passagem da alegria para a tristeza, dos Ramos para o Tríduo, da Ceia para a Paixão.

Hoje, ao final do Kyrie, o padre imóvel diante do altar, o órgão entoa as notas conhecidas: vai ter Gloria sim. Esboço um sorriso e comento de lado: “faz já uns dois meses…!”. Porque na Missa Tridentina o Hino de Louvor cessa bem antes da Quaresma, já na Septuagesima. Nem me lembro direito de quando fora a última vez que o havia ouvido. E hoje ele foi mais uma vez entoado, como primícias do que há-de vir no Sábado Santo, como o último suspiro de alegria antes do horror da Sexta-Feira Santa. Gloria in Excelsis Deo, enche toda a nave da Igreja, e parece que os anjos estão, de novo, como naquela Noite Feliz de dezembro, anunciando a Redenção que é a mesma coisa que a Encarnação. O que cantaram antes pode ser cantado hoje também e em toda Missa onde o mesmo mistério se celebra: et in terra pax hominibus bonae voluntatis. É o último grito de júbilo! Após, tudo cessa. Após, o silêncio. Após começa a Paixão.

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É uma das Missas de que mais gosto, esta da Quinta-Feira Santa. O Evangelho, com aquele início extraordinário onde Cristo, cum dilexisset suos qui erant in mundo[,] in finem dilexit eos (cf. Jo XIII, 1). Logo após o mandato, com o sacerdote — estola atravessada, à diácono, detalhe que só hoje percebi — lavando os pés aos fiéis. O Santo Sacrifício, pela última vez celebrado antes da gloriosa Vigília Pascal: e quando Cristo é elevado à adoração dos fiéis por sobre a cabeça do sacerdote, em vão se espera o toque da sineta de todas as Missas. Os sinos não mais dobram: Cristo elevado da terra, hoje, não recebe mais que a batida seca e abafada da matraca.

E ao final o Traslado.

O Sacrário aberto, os vasos sobre o altar, o sacerdote devidamente paramentado, de pluvial e umeral, a cruz processional — coberta — e os candelabros, o incenso elevando-se maviosamente pela igreja: passa a procissão pela nave central, e os fiéis vão-lhe atrás. Canta-se o Pange lingua, e é por volta de seis e meia da noite, a Igreja no centro da cidade: as pessoas param à porta para olhar. Os passos lentos da procissão e o canto, ritmado apenas pelo barulho rude da matraca de tempos em tempos, e todos aqueles acólitos de batina e sobrepeliz, e todas aquelas mulheres de véu, e a cena toda adquire contornos fantasiosos — parece vinda de muito longe, saída de muito distante no tempo, e é isso o que atrai tanto o olhar dos transeuntes.

Sim, é uma cena de um outro tempo: de há quase dois milênios atrás, em uma outra noite de lua cheia, quando um Homem ceou com Seus discípulos, e depois se retirou para o monte para rezar, e depois foi entregue por um de Seus amigos, e julgado às pressas, no meio da noite e, preso, passou a noite no cárcere. É este drama que hoje se repete ou, melhor, que na Sagrada Liturgia se faz hoje presente: são os contrastes da Quinta-Feira Santa! A Páscoa ritual celebrada. A Eucaristia instituída. O Horto. A Agonia. O Beijo. As correntes, os bofetões, as escarradas. Os julgamentos. A Prisão. E tudo isso expresso em uma celebração única, que começa com um Gloria e termina com um altar vazio. Um Gloria, explosão de alegria que há dois meses não era ouvido; o sacrário aberto e vazio, tristeza que os nossos templos não comportavam desde o ano passado.

Cristo Sacramentado na sacristia, no pequeno Altar da Reposição onde aguardará a Vigília do Sábado Santo. E o altar principal cerimonialmente desnudado, com as toalhas cuidadosamente dobradas e retiradas, enquanto o coral entoa o divisérunt sibi vestiménta mea. Não há bênção, não há despedida, não há nada; as pessoas levantam-se desordenadamente e apenas pouco a pouco deixam a igreja. Fica no ar um desconforto, uma sensação de que as coisas, por algum motivo, não estão terminadas. E de fato não estão. O Tríduo Santo está apenas iniciado. Diferente de todas as outras, esta Liturgia se prolonga para além do tempo normal da cerimônia e se arrasta por três dias. Somente no Sábado de Aleluia ela estará consumada. Até lá teremos muito o que viver.

À luz da eternidade

Correndo os olhos pelo noticiário político, tenho cada vez menos vontade de escrever textos específicos sobre o assunto. As coisas, simultaneamente, parecem correr numa velocidade estonteante (a notícia de hoje pela manhã é já velha, tendo sido já esmiuçada e destrinchada por um sem-número de textos internet afora…) e não sair nunca do mesmo lugar (todos os protagonistas continuam onde sempre estiveram, por semanas, meses, anos a fio). O problema parece ser tão íntimo a nós próprios, tão próximo, que se confunde com a nossa história e a nossa índole, e (parece que) antes conseguiremos emancipar o homem pós-moderno da natureza humana que atingir um governo cujo fim precípuo não seja — ou pelo menos não explicitamente — espoliar o povo brasileiro.

O trabalho — de formiguinha! — que há de ser feito, embora não disponhamos absolutamente dos meios para o tornar socialmente significante, é bem conhecido: é a educação para a virtude, é a valorização da cultura, é o exercício da própria atividade no mundo com a devoção de um sacerdócio. Pode parecer pouco efetivo, e talvez o seja mesmo. Paciência, que ninguém está obrigado ao impossível; Deus haverá de nos julgar pelo (pouco) que conseguirmos fazer, ainda que fracassemos vergonhosamente em conduzir a nossa Pátria a um destino melhor do que este que hoje se lhe descortina.

À desesperança para com os rumos da Cidade dos Homens em cujo interior vivemos, contudo, não se nos deve somar espécie alguma de tibieza no que diz respeito aos nossos deveres cristãos para com o nosso horizonte próximo de influência: nossa família, nosso trabalho imediato, nossos amigos próximos. Se o destino dos reis e das nações foge ao nosso controle, cada vida é uma nação em miniatura e cada homem é rei e senhor do seu futuro. Talvez não dê para mudar o Brasil, mas decerto é possível salvar a própria alma — o que é muito mais importante.

A vida no século deve ser encarada à luz da Eternidade; somente assim é possível sobreviver-lhe. Aquela história de omnia hæc adicientur vobis (cf Mt 6, 33) tem implicações universais: também o bem público (só) é concedido aos homens por acréscimo. Não se ganha o mundo lutando contra ele; esta vitória só é possível alcançando Aquele que venceu o mundo. O mais é desperdiçar preciosas energias debatendo-se em vão.

Enquanto houver pecadores

Estamos às vésperas do Natal, e estamos cansados. Não foi fácil este 2015; estamos cansados, esgotados até!, a ponto de se nos faltarem as forças mesmo para seguir em frente. Retrospectiva? Talvez o ano não tenha sido de tantas vitórias a celebrar, de tantas coisas positivas assim. Perspectivas? O próprio suor no rosto embota a visão e não permite enxergar longe, e os músculos tesos sob o fardo do ano que finda parecem incapazes nos conduzir à próxima esquina.

Estamos cansados, e na verdade importa pouco se tal cansaço é legítimo ou não. Tanto as trevas da noite quanto a cegueira nos impedem de ver o caminho que devemos trilhar, e diante do corpo que já não responde ao desejo de continuar andando não cabe perguntar se tal é fruto de desgaste ou de lassidão. A fadiga que a gente sente cansa do mesmo jeito.

Mas estamos às vésperas do Natal e isso importa. Porque não existe ano difícil que não possa ser consolado pelo nascimento de um Deus feito menino, e não existe cansaço que resista às ordens d’Aquele que prometeu aos fatigados que lhes daria descanso. Não existem trevas que não dêem lugar à luz verdadeira que ilumina todo homem! Enquanto houver pecadores Deus virá ao seu encontro. Hoje, como naquele dezembro distante, Ele vem para os Seus. E hoje, ao menos, importa que O recebamos.

Tem sido obviamente má compreendida a ênfase na misericórdia que o Papa Francisco por vezes impinge aos seus discursos. Ter misericórdia não significa o mesmo que condescender com o comportamento alheio, e em nenhum dicionário decente pode significar “chamar o mal de bem”. A misericórdia pressupõe o pecado; não o nega e nem o pode negar. A misericórdia, aliás, pressupõe os miseráveis: a eles — e só a eles! — se dirige. Haverá misericórdia enquanto houver pecadores. Retire-se o pecado, a misericórdia deixa de fazer sentido.

Mas também a misericórdia, para ser misericórdia verdadeira, precisa ser transformadora e não tem como ser diferente: ela transforma o homem pecador em virtuoso e não o pecado em virtude. É somente no coração dos homens que ela age e precisa produzir os seus efeitos. De outro modo é apenas oferta graciosa rejeitada pelos insensatos. De outra maneira é, mais uma vez, lux [quae] in tenebris lucet et tenebræ eam non conprehenderunt. Nada de novo, para vergonha nossa.

É Natal e é tempo — se assim se pode dizer — de atávicas ingratidões. Dois mil anos de Cristianismo não transformaram a Encarnação do Verbo no grande evento de conversões profundas que se poderia imaginar. Hoje, como naquele primeiro Natal, são poucos os que se reúnem em torno ao Deus feito Menino. Mas enquanto houver pecadores Ele nascerá. O nascimento de Jesus Cristo não exime ninguém de lutar pela própria perfeição: a voz de São João Batista clamando no deserto logo o dirá. Enquanto ainda houver pecadores, jamais se falará em misericórdia o suficiente. E enquanto continuar havendo pecadores, não se terá dado à Misericórdia a resposta que ela merece.

Estamos cansados, eu dizia, mas é Natal e temos duas opções. Podemos nos fechar no nosso próprio cansaço e, desanimados, acreditar que nada mais pode ser feito; mas podemos também deixar que o canto de Gloria dos anjos ecoe nos mais profundos recônditos de nossa alma e, abrindo-a de par em par ao Deus-Conosco, enxugar o suor e seguir em frente. Espera-se conversão daqueles a quem é oferecida misericórdia; aos que se oferece descanso, o que se exige — sem dúvidas — é a luta. Ad majorem Dei gloriam. Melhor do que vimos fazendo até então.

Que desta vez o Menino Jesus encontre ao menos mais uma alma disposta a velar-Lhe o sono infantil. Que Nosso Senhor seja recebido por pelo menos mais um daqueles para os quais Ele veio sofrer e morrer. Que desta vez as trevas cedam — um pouco mais! — à Luz que vem do Céu. Que não seja em vão.

Afinal, um Menino nos foi dado! Mostremo-nos agradecidos. Façamos — minimamente! — por onde O merecer.

Feliz Natal!

A criança no banco da frente da Missa

Havia uma criança no banco da frente, e a pequena não parava quieta um instante sequer! Era Missa; e a frutuosa participação no Sacrifício de Cristo exige algumas disposições interiores de ordinário avessas à distração inevitavelmente provocada por uma criança irrequieta. Em poucas palavras, a gente precisa se concentrar pra rezar direito, e é difícil concentrar-se com uma criança chamando a sua atenção o tempo todo…

Lembrei-me de que “o problema” das crianças na Missa já fora abordado de um sem-número de maneiras. Há quem defenda que elas sejam simplesmente deixadas em casa. Há quem pugne pelo oferecimento de uma estrutura paroquial – uma salinha separada, a “acolhida das crianças” – para “tomar conta” dos pequenos enquanto os seus pais assistem à Missa. Há quem diga que os pais devem se impôr mesmo e fazer as crianças ficarem quietas, retirando-as do recinto sagrado se necessário for. Domingo, havia uma criança no banco da frente, e eu me peguei a pensar no assunto. E, curiosamente, a solução a que cheguei foi esta: é preciso deixar as crianças serem crianças. E deixar os pais serem pais.

A menina – era já um pouco grandinha, não sei, três anos… – olhava para tudo ao redor, com aquela curiosidade própria de quem tem um mundo inteiro a desbravar. Subia no banco. Descia do banco. Abraçava o pai. Segurava a mãe. Tinha uma voz estridente, de cujo volume as convenções sociais ainda não tivera tempo de aprender. Pegava o papel. Derrubava o papel. Ia de um lado para outro, para o braço de um e de outro. Olhava, sorria. Desinteressava-se. Falava. Ensaiava um choro. Um momento houve até em que, em pé no banco, começou a pisar forte e ritmadamente – com o insofismável fito de fazer barulho. (Neste instante, aliás, o pai a pegou no braço. E ela não fez escândalo. Em momento algum ela fez escândalo.)

Pela descrição, parece até que a igreja estava a ponto de vir abaixo; dir-se-ia um verdadeiro pandemônio instaurado no templo santo de Deus. Houve até um momento em que eu próprio olhei para a criança e me perguntei se não haveria algum fenômeno preternatural a explicar aquele incansável empenho infantil em roubar do Altar a atenção dos fiéis. Mas, na verdade, a impressão agora é ilusória, como o fora no decorrer da Missa. A criança não atrapalhava a celebração mais do que outras coisas com as quais a Igreja sempre conviveu – e é bom que conviva.

Li, há anos, em não me lembro agora qual historiador, uma descrição de uma provável Missa celebrada em um típico vilarejo medieval. Não havia os bancos que hoje nos acostumamos a encontrar, a fim de organizar os fiéis que se reúnem para a assistência do Santo Sacrifício; o espaço aberto da nave ocupava-se de maneira natural, orgânica, à medida que os católicos fossem chegando e na proporção do seu fervor religioso na ocasião. O povo também não se pejava de adentrar o templo do modo como se encontrasse; às vezes carregando um saco de frutas a vender na feira, ou dois patos adquiridos no caminho e que iriam servir de alimento à família. O ápice da Missa era – como ainda é – a Consagração; assim, no instante em que o sacerdote elevava a Hóstia Consagrada por cima de sua cabeça, todos se acotovelavam para, acima dos ombros uns dos outros, vislumbrar – por um instante fugaz que fosse – o Santíssimo Sacramento. E, imaginando as penas voando, o grasnar dos patos, a melancia espatifando-se no chão e um monte de gente se empurrando para ver melhor (que os outros) o altar… aquela criança no banco da frente da Missa de domingo passado parecia-me transmitir uma quietude elísia.

O quadro, dirão, é “pouco piedoso”. Ora, mas é claro que é pouco piedoso; é um quadro que retrata todas as mazelas e defeitos dos seres humanos de carne e osso para cuja salvação existe a Igreja! Mas não se trata sempre de pouco zelo; às vezes, há circunstâncias pessoais bem razoáveis a justificar certos comportamentos dos fiéis. E para as encontrar não é preciso retroceder a nenhum obscuro vilarejo medieval; basta pensar, por exemplo, nas missas celebradas em campanha. Ou alguém acha que em Iwo Jima não havia soldados fazendo a guarda, olhares apreensivos para todos os lados, tiroteios e ribombos de canhões ao fundo, essas coisas que costumam acontecer nas guerras?

Tampouco é preciso ir à guerra; vá-se a uma festa popular de maior monta. Aqui, em Recife, fui recentemente (como o disse) à de Nossa Senhora no Carmo. E havia crianças comendo, e gente mexendo no celular, e empurra-empurra na nave central (da qual, em talvez involuntária homenagem ao vilarejo medieval que referi acima, haviam retirado os bancos), e guardas-chuvas e capas pingando (sim, chovia lá fora), e pessoas chegando e saindo o tempo inteiro. Perto disso, repita-se mais uma vez, a criança no banco da frente da Missa de domingo passado transparecia a placidez de um mosteiro cartuxo.

O ponto, em suma, é o seguinte: não nos deve surpreender que a assistência à Missa revista-se dos elementos naturais da vida social. Mais até: quanto mais fortes forem esses elementos, mais isso significa que a religião está entranhada no dia-a-dia das pessoas, mais as pessoas a vêem com familiaridade. Atenção, que não se está aqui falando nada de Liturgia! A Liturgia é para ser sempre impecável, é evidente, como convém ser o culto prestado ao Deus Todo-Poderoso. Mas a forma como as pessoas assistem a este culto pode, sim, adquirir os rasgos de espontaneidade não-institucional que sejam socialmente aceitáveis e razoavelmente justificáveis. E é até bonito que assim se faça; chega a ser um testemunho da vitalidade do Evangelho, ao qual se curvam as necessidades sociais. Falo, por exemplo, de pessoas entrando e saindo da igreja durante a Missa, aproveitando o intervalo do horário de trabalho para assistir, se não a celebração inteira, ao menos o pedaço que conseguem. Falo de militares de serviço assistindo à missa de farda camuflada, quepe às costas. Falo de doentes tossindo. E, claro, falo de mães embalando seus filhos, ou retirando-se para lhes trocar as fraldas, e falo de crianças correndo e gritando.

Dir-me-ão que essas coisas são muito diferentes, e que nada tem a ver uma guerra com um feirante, ou com um pedreiro sujo de cimento, ou com uma criança mal-comportada. Eu digo que todas essas coisas têm muito mais em comum entre si do que parece à primeira vista: são, todas elas, exemplos de seres humanos tentando conciliar os seus deveres de estado com a prática religiosa. Assim como o soldado deve combater, e isso talvez lhe exija prestar atenção nos arredores do acampamento mesmo durante a celebração da Missa, assim o trabalhador deve prover o sustento da sua família – e isso talvez lhe exija levar à igreja os seus instrumentos de trabalho. Isto é um sinal de que a sociedade anda sadia e está ordenada; é um indício de que, apesar de tudo, as coisas estão indo bem.

Mas um soldado não é a sua patente e, um feirante ou pedreiro, não é o seu comércio ou sua construção civil. Uma mãe, contudo, é indissociável da sua maternidade. O soldado tem o seu dia de folga, onde ele não exerce o serviço de militar; um pai, contudo, não dispõe de um instante sequer onde esteja dispensado de seus serviços paternos. Nem aos domingos. Nem na igreja.

Uma família com crianças é uma campanha militar permanente. E se deixamos sem maiores olhares de censura os soldados (ou os policiais, ou os médicos, ou os bombeiros) assistirem às nossas missas, mesmo que estejam fardados, mesmo que o rádio que levam à cintura possa eventualmente tocar, mesmo que precisem sair às pressas da celebração; se os deixamos e, ainda, sentimo-nos gratos porque eles protegem as pessoas, salvam vidas, cuidam de nós, e é bom tê-los por perto; se, até mesmo!, olhamos com admiração para essas pessoas que, no meio do serviço, fazem malabarismos para conciliar os seus deveres com algum tempo de oração e de agradecimento a Deus; por qual razão censuraríamos as famílias que vão à missa fardadas com bolsas e fraldas, e carrinhos de bebê, e mamadeiras?, e por qual motivo não agradeceríamos àqueles que, mesmo durante a Missa, não descuidam do cuidado dos seus filhos, que outra coisa não é que o cuidado com o nosso futuro?, e por quê, em suma, não olharíamos com admiração e reconhecimento para estas pessoas que, sem descuidar de seus deveres – mesmo a serviço! -, desdobram-se para dedicar um pouco de tempo à vida de oração e aos seus deveres públicos para com Deus?

A menina no banco da frente da igreja era uma criança. E isso significava três coisas: primeiro, que ainda há crianças no mundo, graças a Deus; segundo, que os seus pais não as deixavam de lado para estar na Igreja; e, terceiro, que eles tampouco deixavam a Igreja para cuidar de suas crianças. Foi o que eu percebi no domingo passado; e, perto disso, qualquer distração que a sua presença pudesse provocar era de pouca monta. Que Deus nos conceda igrejas repletas de crianças! Conviver com elas, afinal de contas, é um excelente sinal de que as coisas – graças a Deus! – ainda andam bem no mundo.

Nunca se fez tanto por nós…!

É passada a agonia do Getsêmani, a traição do horto. A prisão imunda, a noite interminável. Os julgamentos injustos, os gritos da turba assassina, o caminho do Calvário, o Gólgota e o Sepulcro. Tudo passado ao longo de três dias intensos. Três dias que têm tudo a ver conosco: porque é no interior do Tríduo Santo que se desenrola o drama de nossas vidas.

Sandro-Botticelli-The-Resurrection

É passado…! O alvorecer do dia de hoje encontra o Sepulcro aberto, o Túmulo vazio, deixado para trás por Aquele que venceu o mundo e a morte. Hoje, como após o pecado de Adão, os homens morrem. Hoje, como naquela época longínqua, recusamo-nos a morrer. Mas hoje, diferente do que acontecia antes da Páscoa de Cristo, pela primeira vez na história, há-nos opção.

Diante de um Deus que irrompe, vivo, do Hades profundo, não dá para ficar impassível. Afinal, nunca se fez tanto por nós. E nunca o merecemos menos.

É Páscoa! É a vitória de Cristo sobre a morte, que é também a nossa vitória. Ele se fez Vítima por nós. Ele, ressurrecto e glorioso, é também por nós. Ressuscitou verdadeiramente: é a razão da nossa esperança.

Ele vive! Feliz e Santa Páscoa a todos!