Ainda nem chegou o Carnaval

Já estamos no final de fevereiro, já se passou um sexto do ano e o Carnaval nem chegou ainda…! A vida é efêmera e passa depressa. Passa como quatro dias de folia e brincadeira. Cuidemos para que ela não nos passe como um ano suspenso, inerte, na expectativa do Carnaval para só então engrenar e começar de fato. O ano não espera, e a nossa vida também não deve esperar. Cuidemos para que o passar do tempo não nos pegue de surpresa.

Porque enquanto o Carnaval não chega muita coisa pode acontecer e acontece. Nem falo da política nacional e mundial, que voluntariamente tenho acompanhado bem pouco — somente o que me chega nos grupos de WhatsApp, somente o que se comenta no trabalho ou à hora do almoço. Sobre estas coisas já tive a oportunidade de escrever aqui há não muito tempo: elas me interessam mais quando posso, a partir delas, tratar de algum assunto que eu julgue interessante do ponto de vista espiritual.

Não. Incomodam-me, aqui, aquelas coisas que se sucedem mais rápido do que eu as consigo acompanhar — e sobre as quais eu bem gostaria de estar melhor informado! Por exemplo, soube hoje que o senado americano rejeitou uma lei que obrigava profissionais de saúde a prestarem socorros médicos aos bebês nascidos vivos em caso de abortos mal-sucedidos. Que o aborto seja uma monstruosidade é coisa que nem os seus defensores procuram esconder mais; no entanto, que haja políticos empenhados em barrar uma lei que manda recém-nascidos receberem cuidados médicos, é coisa que ainda consegue me surpreender e indignar.

Fui procurar o texto original do Born-Alive Abortion Survivors Protection Act. O que o projeto de lei estabelece — em tradução livre — é que, no caso de aborto ou tentativa de aborto do qual resulte o nascimento vivo de uma criança, qualquer profissional de saúde presente deve prestar-lhe o mesmo cuidado profissional que exerceria diante de qualquer outra criança da mesma idade gestacional. Ou seja, trocando em miúdos, trata-se de uma lei que diz o óbvio (infelizmente o óbvio precisa ser dito nestes tempos sombrios que correm): diante de uma criança em risco de vida, qualquer médico tem a obrigação profissional de socorrê-la! Chega a ser angustiante: como é possível que um ser humano possa votar contra uma lei dessas?

É, no entanto, possível, porque o egoísmo humano não tem limites. É possível porque o tabu da liberdade sexual precisa ser mantido a todo custo, não importa quantas crianças sejam abandonadas no caminho. É possível porque a luxúria é um ídolo caprichoso que exige para si, de maneira cada vez mais explícita, o sacrifício de sangue humano inocente.

E enquanto o carnaval não chega o abortismo dá as caras e as cartas no Congresso Americano.

Também enquanto esperamos soarem os clarins de momo, leio que o Cardeal Pell — prelado australiano hoje com 77 anos — vai responder na prisão a um processo judicial no qual é acusado de abusar de dois menores. Foi considerado culpado em primeira instância; alega inocência e o seu advogado já garantiu que ele vai apelar. Trata-se de outro assunto sobre o qual eu gostaria de estar melhor informado, porque essas acusações são dolorosíssimas. O Cardeal George Pell é um prelado de reta doutrina e de clareza no falar — qualidades tão necessárias como, infelizmente, raras nos dias em que vivemos.

Não tenho ilusões acerca dos homens. Sei muito bem que firmeza doutrinária não está necessariamente ligada a retidão moral, e que do fato de um católico ser referência em ortodoxia não segue — infelizmente não segue — que ele seja, também, baluarte dos bons costumes. Alguém pode perfeitamente ter uma vida intelectual exuberante e, ao mesmo tempo, não levar uma vida moral que lhe esteja à altura. O brilhantismo doutrinário não afasta eventuais falhas morais; da mesma maneira, os pecados do pregador também não maculam a pureza da Doutrina pregada.

Isso tudo é muito claro e muito verdadeiro, e os tempos recentes da Igreja estão repletos de exemplos assim. Essas coisas não nos deveriam mais escandalizar; no entanto, que mal provoca ao combate pela expansão do Evangelho os maus exemplos dos que assumem o papel de campeões da Fé! Sim, a Doutrina não guarda relação direta com a santidade pessoal, e a teologia católica desde há muito tempo soube separar conceitualmente a Fé da Caridade — os pecados mortais, nós o sabemos, podem expulsar a caridade mantendo, no entanto, íntegra a Fé. Tudo isso é verdade; mas tudo isso o sabemos nós, que já temos a graça de ser católicos. Diante de um mundo pagão, diante da multidão de almas mais ou menos avessas ao Cristianismo que somos chamados a conquistar, impossível negar o efeito contraproducente causado por escândalos desta natureza. Domine, miserere.

E o Carnaval nem chegou ainda, e os príncipes da Igreja de Cristo já são lançados ao escárnio dos ímpios.

Enfim… são tempos difíceis. São tempos em que as coisas acontecem cada vez mais depressa (será que acontecem mesmo tão depressa assim, ou será que estamos desatentos com o mundo a nosso redor — contaminados, talvez, pela apatia generalizada?), e nós não nos apercebemos. Não nos damos conta, não prestamos atenção, não rezamos o bastante e não oferecemos suficientes sacrifícios; decerto não fazemos toda a penitência que seríamos capazes de fazer! O mal avança e conquista territórios importantes enquanto esperamos o Carnaval passar — para, só então, adentrando a Quaresma, preocuparmo-nos com a nossa vida espiritual e com o estado da Igreja.

Mas o Príncipe deste mundo não descansa. E, enquanto estamos nos guardando para quando o Carnaval chegar, ele não perde tempo e investe, furioso, virulento, contra nós. Porque ele sabe que pouco tempo lhe resta (cf. Ap XII, 12).

Quanto a nós, quem nos garante que temos ainda muito tempo…?

O sacerdote reduzido ao estado laical

O ex-Cardeal Theodore McCarrick, Arcebispo emérito de Washington, foi recentemente destituído do estado clerical após o Vaticano considerá-lo culpado de “abusos sexuais de menores e adultos”. O assunto foi bastante comentado, compreensivelmente, porque coisas assim não saem na imprensa todos os dias — aliás, atingindo um membro do colégio cardinalício, parece que o caso de McCarrick é o primeiro em muitos séculos.

Não se pode dizer que o procedimento seja tão excepcional que quase nunca seja aplicado. Em anos recentes o Papa Francisco reduziu Marco Mangiacasale e Fernando Karadima ao estado laical por abusarem de menores. Também por conta de abusos sexuais o Papa Bento XVI demitiu do estado clerical 384 padres entre os anos de 2011 e 2012. Isso sem contar os casos mais conhecidos, como o do paraguaio Fernando Lugo ou do africano Emanuel Millingo, ambos bispos, que foram laicizados por Bento XVI — nestes casos, sem que houvesse acusações de abuso sexual, é bom registrar.

Algumas pessoas reclamaram da expressão “redução ao estado laical”, como se ela implicasse em demérito para com os leigos católicos. Como se a punição aplicável a um mau sacerdote — a um predador sexual! — fosse passar a viver como leigo, isto é, no mesmo estado de vida em que sempre viveu a imensa maior parte dos católicos do mundo. Como se ser leigo fosse um castigo e não uma vocação. Ora, acontece que não se trata disso.

Quando um sacerdote é reduzido ao estado laical, a pena dele não é “ser leigo”. Ele nunca vai ser leigo. O Sacramento da Ordem imprime na alma caráter indelével, que não pode ser jamais removido; não existe retorno ao status quo ante aqui. O sacerdote reduzido ainda assim é sacerdote, e é justamente nesta contradição entre a sua natureza e o seu estado de vida que reside a pena do Cân. 1336 do Código de Direito Canônico.

O sacerdote ordenado recebe por assim dizer duas coisas distintas no dia da sua ordenação: uma, o Sacramento, a conformação da alma a Cristo Sumo Sacerdote, outra, o ministério, a permissão para exercer o sacerdócio no grêmio da Santa Igreja. A primeira tem uma dimensão pessoal, ontológica, ad intra; a segunda, uma dimensão eclesial, ministerial, ad extra. Sacerdote é o que se é; sacerdócio, o que se exerce.

A demissão do estado clerical não é uma ordenação ao contrário. Mesmo com a demissão, o demitido permanece ordenado: “[a] sagrada ordenação, uma vez recebida validamente, nunca se anula” (CIC, Cân. 290). Não é, portanto, que ele deixe de ser sacerdote; o que lhe é retirado é o exercício do sacerdócio. Não é, de maneira alguma!, que ele passe a ser leigo. O que lhe ocorre é que ele, não sendo leigo, passa a precisar viver como se leigo fosse.

A situação do leigo é toda outra. O leigo vive como leigo porque é leigo; o seu estado de vida está em conformidade com a sua vocação e com a natureza de sua alma. Não há, no leigo, tensão alguma entre aquilo que se é e a forma como se vive. As duas situações — a do leigo não-ordenado e a do sacerdote ordenado que perde o estado clerical — não guardam semelhança entre si a ponto de se poder dizer que a redução ao estado laical equivale a “ser leigo” simpliciter. Não equivale de nenhuma maneira. Aquilo que para o leigo é caminho de santificação, para o sacerdote é um fardo. Tal é decorrência natural da própria diversidade entre os homens e entre os estados de vida na Igreja.

A demissão do estado clerical é uma situação extrema que merece a nossa atenção: para nossa vergonha, ela é mais frequente do que gostaríamos de acreditar. Quereríamos que os sacerdotes fossem, todos, fiéis à sua vocação, dóceis à graça sacramental, verdadeiros imitadores de Cristo; no entanto, muitas vezes esta não é a realidade com a qual nos deparamos na Igreja.

Precisamos rezar por estes sacerdotes! A demissão do estado clerical, nos termos do Direito Canônico, é uma “pena expiatória”. Significa que ela tem por fim purgar a culpa, expiar o delito; significa que a Igreja a impõe não para afastar o sacerdote de Deus, mas sim para reconduzi-lo ao caminho da salvação. Para que ele a aceite como justa punição pelos seus crimes e, aceitando-a, arrependendo-se, humilhando-se e sofrendo, inicie o seu processo de reabilitação diante de Deus. Não se trata de condenar, mas de remir. É obra de justiça, sim, mas também de misericórdia.

Hoje se inicia no Vaticano o Encontro sobre a proteção dos menores na Igreja. Unamo-nos em oração ao Papa Francisco, aos santos do Céu e a todos os católicos da terra aos quais cobre de dor e vergonha a imoralidade do clero. Rezemos por todos os sacerdotes, para que sejam santos, para que estejam à altura da vocação que receberam, para que tenham consciência da própria dignidade. Para que sejam hóstia pura no altar de Deus. Senhor, salvai e purificai a Vossa Igreja. Senhor, tende misericórdia de todos nós.

Pode um papa ir contra um santo?

Determinado site de jornalismo político denunciou recentemente, da forma lacônica que lhe é peculiar, que o Papa Francisco anulou uma decisão de João Paulo II. E em seguida perguntou, de maneira capciosa, sofística, se o papa poderia ir contra um santo.

Trata-se de pergunta verdadeiramente disparatada. O padre Ernesto Cardenal está com 94 anos, no leito de morte, e recentemente pediu, por intermédio do núncio da Nicarágua, a sua reabilitação canônica. Estava suspenso a divinis desde 1983. Não existe motivo absolutamente nenhum para se negar a reconciliação com a Igreja a um moribundo que a vem humildemente pedir. As penas eclesiásticas têm objetivo medicinal e servem para salvar almas, não para aprovar ou desaprovar movimentos políticos.

Repita-se: Ernesto Cardenal está à beira da morte e pediu à Igreja que suas sanções canônicas, justamente impostas por João Paulo II, fossem retiradas. Ora, o perdão concedido ao pecador arrependido não significa, em nenhum lugar do mundo e sob nenhuma lógica, uma chancela do pecado. Se fosse assim, pecador nenhum poderia pleitear jamais a reconciliação com a Igreja. Se fosse diferente, e se fosse lícito à Igreja de Cristo fechar as Suas portas a uma alma que Lhe vem suplicar misericórdia no fim da vida, então esta não seria a Igreja fundada por Deus para conduzir os homens à salvação.

Se até de Voltaire já se cogitou dizer que tivesse morrido no grêmio da Santa Igreja, mesmo que a documentação a este respeito seja parca e duvidosa, por que nos deveria espantar que volte ao seio da Igreja de Roma um sacerdote que sabidamente requereu a sua regularização? Oras, o que o Papa — qualquer papa! — deveria fazer em uma situação assim? Dar as costas a Ernesto Cardenal por conta de seu passado? Se, à conta do nosso passado, Cristo nos desse as costas para sempre, quem haveria de resistir? Quem poderia permanecer católico?

Frise-se que a retirada da censura canônica, nas presentes circunstâncias, não tem nenhuma conotação de apoio ao marxismo pretensamente católico da teologia da libertação. É, aliás, exatamente o contrário: é exatamente por ser censurável a atividade política desempenhada por Ernesto Cardenal que ele precisou, hoje, à beira da morte, pleitear a sua reabilitação. O próprio pe. Cardenal sabe-o e o reconhece: se não o reconhecesse, se continuasse acreditando que estava correto em 83 e a Igreja estava errada, então não teria pedido para se regularizar. O próprio ato de pedir o perdão da Igreja carrega, em si mesmo, o repúdio e o rechaço aos erros do passado. É assim que funcionam as coisas no Catolicismo; e é preciso muito mundanismo para não ser capaz de o perceber.

A imagem do padre Cardenal paramentado no seu leito de morte não apaga aquela outra, famosa, de São João Paulo II, ríspido, censurando-lhe com o dedo na face. Ao contrário, complementa-a maravilhosamente: aquela censura, enfim, mais de três décadas depois, deu os seus frutos. O sacerdote orgulhoso, que preferiu romper com a Igreja a abandonar os seus projetos políticos mundanos, hoje roga a essa mesma Igreja que lhe permita morrer em paz com Ela. O sacerdote que um dia deu as costas a um Papa hoje estende as mãos a um outro Papa para suplicar misericórdia. O mundo dá voltas; a Cruz permanece.

O Antagonista pergunta se um papa pode ir contra um santo. Ora, mas que papa está indo contra que santo? São João Paulo II, naquele longínquo ano de 1983, quis que o pe. Ernesto Cardenal largasse a militância política para se reconciliar com a Igreja — exatamente o que ele faz, agora, passados 35 anos. Nenhum papa está indo contra santo algum; aceitando de volta a ovelha desgarrada, o pecador arrependido, o Papa Francisco está levando à perfeição aquilo que São João Paulo II iniciou na Nicarágua. O remédio amargo da suspensão canônica finalmente produziu efeitos. Louvado seja Deus.

A Igreja existe para salvar as almas. O Papa João Paulo II seria o primeiro a receber, com alegria, de braços abertos, qual pai amoroso, um maltrapilho padre Ernesto que retornasse, arrependido, após tenebrosos anos longe de casa. É o que acontece hoje. Retirando as censuras do sacerdote nicaraguense, longe de contrariá-la, o Papa Francisco na verdade honra a memória do santo Papa polonês.

O governo brasileiro e o Sínodo Pan-Amazônico

A existência de um Sínodo Especial para a Amazônia a ser realizado em outubro próximo não é — ou pelo menos não deveria ser — novidade para ninguém. Fala-se sobre o assunto há anos. O Papa Francisco anunciou solenemente a assembleia em outubro de 2017, avisando já à época que a convocação se dava em resposta aos pedidos que lhe haviam sido feitos por conferências episcopais latino-americanas. Tem vídeo:

Não é um sínodo que vai acontecer na Amazônia, com bispos do mundo inteiro viajando para o Brasil. Não tem nada a ver com isso. É uma assembleia do Sínodo dos Bispos, aquela “instituição permanente criada pelo Papa Paulo VI (15 de setembro de 1965) em resposta aos desejos dos Padres do Concílio Vaticano II para manter vivo o espírito de colegialidade nascido da experiência conciliar”. É o mesmo Sínodo que já se reuniu em anos recentes para falar, por exemplo, sobre a família em 2015 ou sobre a juventude em 2018.

Em outubro deste ano vai ocorrer a Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Pan-Amazônia. O nome “Sínodo da Amazônia”, assim, não se refere a uma reunião de bispos brasileiros que terá lugar na Amazônia. É uma reunião de bispos do mundo inteiro que acontecerá em Roma (onde sempre ocorrem as assembleias do Sínodo dos Bispos) para falar sobre a Amazônia.

É, portanto, de causar espécie que o primeiro escalão do Governo Federal venha a público dizer que quer “neutralizar isso aí” (!), alegando questões de soberania nacional e alertando para o recrudescimento do “discurso ideológico da esquerda” (!). A notícia é absurdamente surreal. O que cargas d’água o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República do Brasil tem a ver com uma assembleia de bispos católicos marcada para acontecer na Itália? Quem o General Augusto Heleno pensa que é para dizer ao Papa em Roma o que ele pode ou não pode discutir?

O encontro não acontecerá em território brasileiro, não havendo assim qualquer risco às fronteiras do país ou à soberania amazônica. Se o Governo Brasileiro quisesse somente impedir os bispos brasileiros de participarem do encontro, isso já seria de um autoritarismo intolerável, comparável apenas às mais odiosas ditaduras comunistas. Mas é ainda pior, porque não se fala em sanções a cidadãos brasileiros — os quais, em tese ao menos, seriam passíveis de receber punições do Estado Brasileiro. Mas não é isso. Dizendo simplesmente que quer “neutralizar isso aí”, fica parecendo que o Governo quer impedir cidadãos estrangeiros em um país estrangeiro de conversarem sobre o Brasil. Isso deixa de ser odioso para ser francamente ridículo.

Com todas as críticas que possam ser feitas ao Sínodo Pan-Amazônico, é preciso ter senso de prioridades. É totalmente inadmissível que um órgão governamental queira pautar as discussões de uma instituição eclesiástica. Um militar arvorar-se “bispo do exterior” para influenciar uma assembleia sinodal é um acinte e um ultraje, que exige repúdio vigoroso e imediato. Alguém precisa avisar ao General Augusto Heleno que ele não é Constantino.

Isso independe por completo das reais motivações por trás da convocação do Sínodo ou dos resultados que dele se esperam. Este blogueiro acredita sinceramente que a assembleia será na melhor das hipóteses inócua; o mais provável é que seja trágica. O documento preparatório não fala em diaconato feminino nem em ordenação de homens casados, por exemplo, mas ambos os temas já foram abertamente tratados pelo episcopado progressista. Se estas medidas não forem energicamente rejeitadas pelos Padres Sinodais, se o Sínodo deixar qualquer mínima brecha pela qual elas possam se insinuar na vida eclesial, poder-se-ão perder algumas gerações de católicos até que a confusão venha a ser desfeita.

O assunto é sério e é grave, o momento pede orações e pede trabalho diligente na promoção da Doutrina da Igreja e no combate ao anti-catolicismo que tenta se insinuar nas instituições eclesiásticas. Ninguém é ingênuo. Mas nem mesmo assim é possível admitir ingerência estatal nas coisas da Igreja. Ainda que o Imperador esteja correto e os Bispos estejam errados, aquele acerto e este erro serão sempre eventuais e contingentes, absolutamente acidentais, e por isso não se pode aceitar como algo lícito que César mova o braço secular contra a Igreja de Nosso Senhor. Isso não se pode admitir de maneira alguma e, neste tema, católico algum pode sequer titubear.

Não importa que o mesmo seja dito pelos inimigos do Cristianismo. Eles o dizem por malícia e com insinceridade; nós o dizemos por amor à Igreja e com toda a convicção de nossas almas. A verdade é verdade de onde quer que venha. Independente do uso que façam dela.

Nota de falecimento: Eduardo Barreto Campello

Faleceu esta madrugada o dr. Eduardo Jorge do Carmo Bahia Barreto Campello, ex-presidente do Círculo Católico de Pernambuco, advogado, professor, católico fervoroso, amigo dedicado. Recuperava-se de um transplante de fígado, e se recuperava bem; aprouve no entanto a Deus chamá-lo para junto de Si, para a Eternidade onde — assim cremos e esperamos — hoje recebe a glória que este mundo lhe negou em vida.

Deixa esposa e filhos, e primos e sobrinhos, e uma multidão de amigos que hoje se reuniu — em uma segunda-feira à tarde que “coincidiu” de ser o dia de Nossa Senhora de Lourdes — para lhe prestar as últimas homenagens. A todos consolava a esperança da Ressurreição, a certeza de que a vida não termina com a morte — antes começa! — e a confiança de que os corpos que deitamos nos nossos cemitérios haverão, um dia, de ressurgir livres da corrupção da velhice e da doença. Semeamos as nossas fraquezas para colher, um dia, a Imortalidade.

No Círculo Católico, com D. Bertrand

Estive no velório e no sepultamento, pude rever alguns amigos — uma pena que o tenha sido, assim, em tão pungentes condições…! — e lançar um último olhar ao velho colega, ao guerreiro alquebrado, ao servo fiel de Deus que retorna ao Pai antes de nós. Mas, que digo? Não foi um último olhar. Do Céu, agora que pode mais perante Deus, tenho certeza de que o Dr. Eduardo olha por nós com paternal cuidado. Somos cristãos e as nossas cerimônias fúnebres, com todos os seus laivos de tristeza, são, ainda assim, antes um até-logo do que um adeus definitivo.

Estive no Cemitério de Santo Amaro e pude acompanhar o féretro no seu percurso doloroso pelas ruas da cidade dos mortos. Saindo da capela dos velórios por entre os corredores estreitos dos ossuários — cada um em seu escaninho, / cada um em sua gaveta, / com o nome aberto na lousa, / quase sempre em letras pretas, como canta João Cabral –, chegando às suntuosas avenidas dos mausoléus ([a]s avenidas do centro, / onde se enterram os ricos) e seguindo mais além, passando diante da igreja até uma pequena clareira, em um canto, sem pompa, sem luxo, sem nada, debaixo de uma árvore seca, em uma cova rasa de areia, ali desceu o caixão à terra. Ali se derramaram as últimas lágrimas e as últimas orações. Ali deixamos Eduardo, o grande, buscando talvez um lugar esquecido dos homens para que fosse lembrado de Deus.

Descanse em paz, Dr. Eduardo, e que o Altíssimo possa lhe recompensar o zelo apostólico como o mundo não foi capaz de o retribuir.

Pater Noster + Ave Maria.

Requiem aeternam dona ei, Domine,
et lux perpetua luceat ei.

Requiescat in Pace.
Amen.

Uma cruz gigantesca em Abu Dhabi

Coisa verdadeiramente sensacional a Missa celebrada pelo Papa Francisco no final da sua recente viagem apostólica aos Emirados Árabes! Repercutiu até na mídia laica brasileira: “[q]uase 170 mil pessoas assistiam à missa dentro e fora do estádio Zayed Sports City, público considerado recorde pela organização do evento”, segundo G1.

E, mais importante!, o jornal publicou a foto. A foto do altar improvisado onde alguém teve a feliz inspiração de incrustar um cruzeiro gigantesco, enorme, uma cruz que eu não me recordo de jamais ter visto tão grande em nenhuma viagem pontifícia, nem do Papa Francisco e nem de nenhum dos seus predecessores. Uma cruz aos pés da qual até mesmo o Romano Pontífice, o Vigário de Cristo, o maior homem do mundo, parecia pequeno e insignificante. Uma cruz que verdadeiramente apontava para a grandeza de Deus.

Foto: Giuseppe Cacace / AFP, apud G1.

Que imagem! Em tempos onde muitos desejam esconder o Cristianismo e evitar qualquer referência em público a Nosso Senhor, o Papa faz questão de celebrar uma Missa em território muçulmano, longe de casa, e de a celebrar sob uma Cruz imponente, em comparação com a qual todos — fiéis católicos, padres, bispos, cardeais e mesmo o próprio Papa — parecem desaparecer. Uma Cruz em cuja grandeza nós podemos fazer sumir as nossas dores. Uma Cruz capaz de atrair o nosso olhar mesmo à distância, mesmo inadvertidamente, e nos encher de muda admiração.

Um cruzeiro erguido pelo Cristo-na-Terra em solo infiel, in partibus infidelium, em Dar al-Islam, é gesto de significado extraordinário! É Cristo reclamando para Si o senhorio do mundo, malgrado a impiedade dos homens, mesmo a despeito dessa indiferença religiosa que corrói as sociedades atuais e que, desgraçadamente, encontra defensores até mesmo entre católicos. Não falta entre estes quem tenha receio de fazer um sinal-da-cruz no trabalho, na faculdade, no mercado, na casa de um amigo! Para seu escândalo e vergonha, eis aí o Papa Francisco censurando a covardia e o respeito humano, eis o Bispo de Roma traçando uma cruz gigantesca em Abu Dhabi. Uma cruz cujo alcance os meios de comunicação em massa ampliaram ainda mais, terminando por a tornar, de bom ou mau grado, rapidamente visível ao mundo inteiro.

Cristo é o Rei do mundo. E o vigário d’Ele só pode sair levantando cruzeiros mundo afora porque o mundo inteiro pertence a Cristo, ainda que o desconheça ou mesmo que o negue. Todo o poder Lhe foi dado no céu e na terra (cf. Mt, XXVIII, 18) e as convenções mundanas nada podem contra esta autoridade divina, incontrastável e soberana. Cristo um dia levantou a Cruz no alto do Gólgota para a salvação de todos; erguendo-A daquela vez, adquiriu o direito de A erguer de novo, através da Sua Igreja, onde e quantas vezes quiser.

Melhores que os publicanos

Perguntam-me sobre política. Ora, sobre este tema, nas atuais circunstâncias, penso que, de minha lavra, há bem pouco que se falar. Primeiro que este blog não é, nunca foi e nem nunca se propôs a ser um blog sobre política: aqui se discute religião, principalmente apologética, e todos os demais temas pelos quais aqui se fazem eventuais incursões só ganham espaço na medida em que este autor considere possível apresentar, sobre eles, algum enfoque religioso.

Depois, a política partidária tem — deve ter! — relevância nula na nossa vida de cristãos. E praticamente tudo o que se discute hoje na internet sob o nome de “política” tem uma conotação partidária insuportável e malsã. Por exemplo, no momento em que escrevo estas linhas sou bombardeado por notícias sobre a eleição da presidência do Senado. Ora, o tema pode ser muito caro a quem é senador ou àqueles cujo trabalho gravita em torno do Poder Legislativo Federal; pode proporcionar comentários espirituosos e dar ensejo a discursos inflamados, que a todos nós é sem dúvida lícito consumir com alguma moderação. Mas o assunto não deve, em absoluto, ocupar as nossas preocupações por um lapso considerável de tempo: com todas as vênias, suas excelências não merecem tanto assim a nossa consideração. Sequer se esforçam por merecê-la. Sim, a democracia é uma coisa muito bonita e o homem é zoon politikon desde que se entende por gente, todos o sabemos. Mas antes de ser orientado para a pólis o homem é vocacionado para o Alto, e o cuidado excessivo das coisas dos homens geralmente redunda em incúria para com as coisas de Deus.

Não, o maior risco dos tempos modernos não é a alienação política. O maior risco que corremos hoje em dia é, sem sombra de dúvidas, o desleixo espiritual. Toda atividade política profícua (e política, propriamente falando, é o que diz respeito à vida do homem em sociedade, não se reduzindo ao partidarismo político), para ser legítima, não pode ser senão o natural transbordar de uma vida espiritual pujante. A humanidade já perdeu a conta dos santos que transformaram o mundo; e até hoje não se tem notícia de alguém que, à força de mudar o mundo, tenha terminado santo.

Tudo isso é clichê, é básico, é o bê-a-bá do Catolicismo. Mas é preciso insistir nisso porque nos dias que correm se vê muito ufanismo sem cabimento. É preciso dizer com clareza que o momento político que o país atravessa hoje não é triunfante, é periclitante. O cenário está basicamente tomado por raposas sem patriotismo em torno às quais se aglomeram ineptos bem-intencionados. Sim, tal é o arranjo que foi possível, em meio aos desarranjos que nos ameaçavam no horizonte, mas não se pode jamais perder de vista que ainda é muito pouco, que ainda é muito ruim, que ainda é indigno de pessoas civilizadas e aviltoso à vocação do Brasil. Não é possível se acomodar.

Aquele “não vos conformeis com este mundo” talvez nos deva interpelar com tanto mais veemência quanto mais admirável aparente ser o mundo novo que temos diante dos olhos. Poderíamos estar pior? Sim, poderíamos sem dúvidas estar muito pior, e graças a Deus que não estamos! Mas isso de maneira alguma é motivo para a acomodação e o relaxamento. O Cristianismo é progredir olhando para os santos que estão muito acima de nós, e não se satisfazer com a constatação de que estamos melhores que os publicanos.

Até porque nenhuma verdadeira vitória é fácil e nenhuma conquista é duradoura se não for sustentada por esforços conscientes e prolongados. As coisas que nos vêm melhor do que esperávamos devem nos provocar antes uma prudente reserva do que um entusiasmo ligeiro. Isso não é pessimismo nem desconfiança da Providência, é exatamente o contrário: é saber que a Providência, em última análise, é o Altíssimo encontrando maneiras de reproduzir na História os passos de Seu Filho rumo ao Calvário. Se não se encaixa no quadro maior da Paixão de Cristo, então não é Providência — esta é uma lição que deveríamos ter sempre diante dos olhos quando precisarmos julgar as coisas deste mundo.

Finalmente, o que esperar da atual política brasileira? Ora, o mesmo de sempre. Não esperar nada dos que detêm o poder; rezar sempre para que governem com justiça; e se esforçar sempre — sem relaxar jamais! — para semear o reino de Deus naquele palmo de terra insignificante que está ao alcance de nossas mãos e das de mais ninguém. O mundo é mais vasto do que se vê dos palácios dos reis. Não permitamos que o deslumbre das cortes nos cegue para todo o trabalho que ainda temos por fazer.

Vamos rezar todos os dias de outubro!

Ontem, 29 de setembro, dia dos Santos Anjos — Festa de S. Miguel Arcanjo, príncipe da Milícia Celeste, no calendário tradicional –, o Santo Padre o Papa Francisco publicou uma mensagem convidando toda a Igreja à oração neste mês de outubro. Trata-se de uma mensagem importante por duas razões: pelas orações escolhidas, e pelas intenções nas quais elas devem ser rezadas.

Tradução recebida por meio das redes sociais

Primeiro, as orações. Sua Santidade escolheu duas das mais tradicionais orações do povo católico, uma invocação à Santa Mãe de Deus, outra a São Miguel Arcanjo. Escolheu a Sub Tuum Praesidium e a oração a São Miguel.

Sub Tuum praesidium confugimus, Sancta Dei Genitrix é provavelmente a mais antiga oração mariana conhecida. E a Sancte Michael Archangele, defende nos in praelio foi composta pelo Papa Leão XIII como uma súplica especificamente contra os assaltos de Satanás. Rezadas por toda a Igreja, com os católicos em união de espíritos, essas duas orações podem sem dúvidas alcançar grandes graças dos Céus.

E há, também, os motivos que levaram o Papa Francisco a institui-las neste momento: é para pedir que Deus proteja a Sua Igreja contra o Diabo que essas orações são hoje necessárias. Assim mesmo, sem subterfúgios, sem circunlóquios, sem metonímias, sem nada: é Satanás que investe contra a Igreja Santa de Deus, e é para que ele seja derrotado que precisamos rezar com mais afinco do que até então estamos rezando.

O momento atual é terrível, as forças do Inferno levantam-se com todo o furor contra a barca de S. Pedro e mesmo os mais otimistas dos cristãos percebem que a sobrevivência incólume da Fé se apresenta, neste momento, humanamente impossível. Mas a Deus nada é impossível, e é por isso que a nós só nos resta clamar a Deus e suplicar o poderoso auxílio da Virgem Maria — Aquela de Quem jamais se ouviu dizer que tivesse rejeitado um pedido dos Seus filhos! — e de São Miguel Arcanjo, o eterno vencedor de Satanás.

Unamo-nos, portanto, ao pedido do Papa Francisco, e rezemos a Deus, cum Petro et sub Petro, para que Ele Se levante e tome a defesa da Sua Igreja, humilhada e saqueada, invadida, devastada. Que a Santíssima Virgem e São Miguel vençam mais uma vez o Dragão Infernal. Rezemos com fervor e esperança, sem cessar, sem esmorecer. Rezemos, na confiança de que Deus é Senhor da História.


“Sub tuum praesídium confúgimus,
sancta Dei Génetrix;
nostras deprecatiónes ne despícias in necessitátibus,
sed a perículis cunctis líbera nos semper,
Virgo gloriósa et benedícta”.

Sub Tuum praesidium


“Sancte Míchael Archángele, defénde nos in próelio;
contra nequítiam et insídias diáboli esto praesídium.
Imperet illi Deus, súpplices deprecámur,
tuque, Prínceps milítiae caeléstis,
Sátanam aliósque spíritus malígnos,
qui ad perditiónem animárum pervagántur in mundo,
divína virtúte, in inférnum detrúde. Amen”.

Oração a São Miguel

O Sínodo dos Bispos e o Magistério Ordinário

Recebi esta semana, nas redes sociais, em tom alarmado, uma notícia segundo a qual o Papa Francisco havia publicado novas normas a respeito do Sínodo dos Bispos e que, agora, os documentos destes encontros passariam diretamente a ser “Magistério Ordinário”, deixando de existir as exortações pós-sinodais. O Papa estaria abrindo mão de sua primazia em favor da colegialidade episcopal.

A notícia era bastante estranha, já à primeira vista, por uma razão bastante simples: não existe isso de os textos sinodais passarem a ter automaticamente o status de “Magistério Ordinário”. Isso não tem nem lógica. “Magistério” é a parcela do poder eclesiástico encarregada da transmissão da Doutrina, e desse munus participam os diversos níveis da hierarquia, cada um a seu modo. Aliás, via de regra, as pessoas quando falam em “Magistério” estão pensando naquele exercício do munus docendi da Igreja a que os católicos têm — em maior ou menor medida — o dever de aquiescer. Passaria agora a haver, na Igreja, uma via magisterial paralela ao Romano Pontífice? Uma assembleia de bispos teria agora poder de ensinar os católicos, em matéria de Fé, independente do Papa?

Afinal de contas, o que é “Magistério Ordinário”? Essa expressão significa duas coisas:

1. “Magistério Ordinário” (do Papa) é o que se contrapõe a “Magistério Extraordinário” (do Papa). São duas modalidades distintas de exercício do ministério petrino, sendo a infalibilidade desta última a maior e mais relevante distinção entre ambas. O Magistério Extraordinário é o magistério infalível, circunscrito àquelas condições do Primeiro Concílio do Vaticano:

[O] Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis.

Constituição Dogmática Pastor Aeternus

Por exclusão, o Magistério do Papa, quando não se enquadra nessas estritas condições, não é por si mesmo dotado de infalibilidade e, portanto, diz-se Magistério Ordinário. Ou seja, nesse sentido, ambos os “Magistérios” têm por sujeito o Papa, sendo que um é infalível e, o outro, não.

2. “Magistério Ordinário” (Universal) é o ensino uníssono de todos os Bispos Católicos do mundo, tomados em sua unidade moral. Trata-se também aqui de expressão da infalibilidade do munus docendi, manifestada agora a partir do todo da Igreja e não apenas da Sua Cabeça (que é o Papa). Aqui, “Magistério Ordinário” (Universal) se contrapõe a “Magistério Extraordinário” (do Romano Pontífice).

Neste sentido, os “Magistérios” são ambos infalíveis, sendo que o primeiro deles tem por sujeito a totalidade moral do corpo episcopal e, o segundo, tem por sujeito o Papa somente.

Eu desconheço qualquer outro sentido no qual a expressão “Magistério Ordinário” seja empregada. “Magistério Ordinário” ou é o Magistério não-infalível do Romano Pontífice, ou é o Magistério infalível de todos os bispos do mundo tomados em união moral. Nunca encontrei uma terceira coisa que a expressão pudesse significar.

Pois bem. Como é possível, então, que os documentos conclusivos dos Sínodos dos Bispos ganhem automaticamente o status de Magistério Ordinário? Ora, se os bispos, reunidos em Sínodo, reproduzem fielmente a doutrina católica, em união moral com a totalidade do episcopado, então se está diante do Magistério Ordinário Universal que existe desde sempre e desde sempre é infalível. Não é um “status” jurídico de que tais pronunciamentos passam a gozar a partir de agora, com as modificações introduzidas pelo Papa Francisco; é uma nota ontológica que independe por completo das classificações canônicas que lhes sejam dadas.

Por outro lado, se as tais conclusões de um Sínodo de Bispos não guardam fidelidade com a Igreja Católica, se elas não representam o entendimento da totalidade moral do episcopado católico, então elas também não são Magistério Ordinário Universal independente do nome que se lhes queira dar. O que dizer, então, das notícias recentemente circuladas?

Fui procurar o documento; é uma Constituição Apostólica. Chama-se Episcopalis Communio e até o momento só está disponível em italiano no site da Santa Sé. Li-a atravessado, mas a parte que deu ensejo a esta querela toda foi a seguinte (tradução livre minha):

Entrega do Documento Final ao Romano Pontífice

§ 1. Recebida a aprovação dos membros [da Comissão de relatoria], o documento final da Assembléia é apresentado ao Romano Pontífice, que decidirá a respeito de sua publicação.

Se aprovado expressamente pelo Romano Pontífice, o documento final participa do Magistério Ordinário do Sucessor de Pedro.

§ 2. Na hipótese de o Romano Pontífice haver conferido à Assembléia do Sínodo potestade deliberativa, nos termos do Cân. 343 do Código de Direito Canônico, o documento final participa do Magistério ordinário do Sucessor de Pedro uma vez ratificado e promulgado por ele.

Neste caso o documento final vem publicado com a assinatura do Romano Pontífice juntamento com a dos membros.

Episcopalis Communio, Art. 18

Ou seja:

  1. o “Magistério Ordinário” em questão aqui é o Magistério Pontifício, aquele que se opõe ao Extraordinário e que, ao contrário deste, não possui em si mesmo a nota da infalibilidade; e
  2. o resultado do Sínodo dos Bispos evidentemente não integra de forma automática o magistério petrino — nem mesmo o ordinário! –, sendo necessária ou a aprovação expressa do Papa, na hipótese do parágrafo primeiro, ou a sua ratificação, na hipótese do segundo, neste último caso c/c o Cân. 343 do CIC, in finis.

Não há nada de novo aqui. A hipótese de concessão de poder deliberativo ao Sínodo estava já prevista no Código de Direito Canônico antes dessa Constituição Apostólica (e, ainda neste caso, a ratificação pontifícia é exigida); e a hipótese de o Papa expressamente aprovar e subscrever um documento escrito por outrem é evidente e não tem como ser de outra maneira. Ou acaso a aprovação formal, por parte de um Papa, de um documento eclesiástico não significa que o Papa está integrando ao seu magistério o ensinamento contido no documento aprovado? Não é exatamente assim que acontece com os documentos produzidos pelos Dicastérios Romanos? Ou alguém vai negar que, por exemplo, a instrução Dignitas Personae integra o magistério de Bento XVI a despeito de ter sido escrita pela Congregação para a Doutrina da Fé?

Em resumo, com a nova Constituição Apostólica, e s.m.j., são duas as possibilidades. Na primeira delas, o Documento Final redigido pelo Sínodo tem a aprovação do Papa e, portanto, ele o promulga diretamente: este documento, de certo modo, substitui a Exortação Apostólica Pós-Sinodal que era praxe o Papa redigir após as Assembleias Gerais do Sínodo dos Bispos. Na segunda delas, o Papa não aprova o Documento Final do Sínodo, hipótese na qual nada obsta a que ele redija, de próprio punho, uma Exortação Apostólica Pós-Sinodal e a faça publicar.

Em qualquer caso apenas integra o Magistério Ordinário do Papa o texto que tiver o Papa por autor, quer mediante aprovação expressa de documento sinodal, quer através de redação própria de Exortação Apostólica. Em nenhum caso um documento redigido pela assembleia sinodal pode “se transformar” em Magistério Ordinário à revelia do Romano Pontífice.

Deixa as pessoas!

De ontem para hoje a internet se encheu de homenagens a Mr. Catra, o funkeiro que morreu aos 49 anos deixando 3 viúvas e 32 filhos. Em particular, tem obtido boa circulação o seguinte tweet do artista, que condensa em cento e poucos caracteres uma seletiva forma de laissez-faire curiosamente com muito boa aceitação nos dias de hoje:

Deixa as pessoas!

Divulgam-no, como é de praxe, toda a caterva dos anti-clericais, que não esconde a vontade de ver a Igreja deixar de “se meter” na “vida dos outros”. E, nos shares dos paladinos desse neoliberalismo moral, o defunto — cujo corpo nem esfriou direito ainda — se transforma em ponta de lança para atacar o alegado moralismo religioso. Mas o que dizer disso?

Cumpre, em primeiro lugar, deixar claro uma coisa: a Moral, assim como a religião em geral e o Catolicismo em particular, deixam e sempre deixaram as pessoas fazerem de suas vidas o que bem entendessem. E nem poderia ser diferente, porque os preceitos morais, assim como os religiosos, não têm propriamente a força de coagir ninguém a fazer nada. A não ser, é claro, a força moral que lhes é intrínseca e que, em um certo sentido muito particular, constrange, sim, a alma humana — que não obstante é sempre livre — a agir de tal maneira ou a deixar de agir de tal outra. Mas essa força moral é própria das idéias e não lhes pode ser retirada: só é possível acabar com aquela silenciando estas.

Daí a importância de entender bem a revolta dos anticlericais. Eles não querem que a Igreja deixe (p. ex.) “os gay ser gay” no sentido, digamos, físico do verbo deixar. Porque ninguém jamais precisou de autorização eclesiástica para namorar rapazes e nem a Guarda Suíça anda à caça de sodomitas para os impedir de conspurcar o ato sexual criado por Deus. O que querem os revoltosos de hoje é uma coisa mais profunda (e mais diabólica) do que as simples liberdades civis das revoluções burguesas: por detrás de um tweet de efeito, o que eles exigem é que as pessoas deixem de condenar como imorais determinados comportamentos — tais como, p. ex., o ato sexual contrário à natureza, a gula, a fornicação.

E vamos colocar as coisas em seus devidos lugares. Ninguém está obrigado a seguir o ensino moral da Igreja Católica (ou de qualquer outra religião) acerca da sexualidade responsável. Exigir, no entanto, que se silencie ou se modifique este ensinamento moral a fim de que as pessoas não sejam sequer confrontadas com uma visão de mundo antagônica às suas próprias, tal é extrapolar um pouco o (justíssimo) papel que as liberdades individuais devem desempenhar em uma sociedade saudável. 

No fundo, o que os propagadores do tweet mistercátrico querem não é simplesmente que a gente deixe “as mina dar” (!), como se elas nos pedissem permissão para isso ou como se tivéssemos o hábito de interromper à força intimidades alheias. Em vez disso, o que eles querem, exigem!, é que a gente sequer ouse levantar um juízo de censura sobre a degradação da sexualidade humana que o Mr. Catra soube tão bem consolidar em menos de 140 caracteres. No fundo, o que ele quer não é apenas fazer os seus filhos, porque isso ele passou a vida inteiro fazendo com espantosa prodigalidade: ele quer fazê-los sem que ninguém sequer sugira que o ato de sair por aí gerando várias crianças em várias mulheres talvez não corresponda muito bem àquilo que entendemos por dignidade humana.

Enfim, não se trata simplesmente de deixar as pessoas; o que se almeja é deixá-las imunes mesmo àquelas palavras que talvez inquietem um pouco as suas consciências. Não é um grito de liberdade, é o contrário: é um libelo em que o que se pede, ao fim e ao cabo, é a censura de idéias pura e simples.

O livre-arbítrio é uma coisa importante. Devíamos deixar as pessoas tomarem as suas próprias decisões, sim. Só que isso inclui também deixar a Igreja dizer o que é certo e o que é errado. Afinal de contas, segue-A quem quer.

Quanto a Wagner Domingues Costa, o Mr. Catra, que o Bom Deus tenha misericórdia dele e lhe conceda, pela Sua Misericórdia, o descanso eterno, a luz e a paz. Que Ele olhe com particular cuidado também para as ex-companheiras do cantor, bem como para a prole generosa que ele (tão desordenadamente) deixa sobre a terra. E que o Evangelho nunca deixe de ressoar na sociedade, ainda que isso incomode o estilo de vida eventualmente adotado por alguns.