Ó Beleza tão antiga e tão jovem

Foi divulgada hoje a lista dos prelados brasileiros que participarão, no próximo mês de outubro, do Sínodo dos Bispos que ocorre em Roma. O tema do Sínodo é a juventude. Foi divulgado também o Instrumentum Laboris da Assembléia, sobre o qual parece que a única coisa que a mídia foi capaz de falar foi que tinha sido a primeira vez que o termo “LGBT” era empregado em um documento oficial da Igreja.

Neste quesito o progressismo tem bem pouca coisa para comemorar. Acontece que um instrumentum laboris é aquilo que o próprio nome diz: um instrumento de trabalho. Trata-se de um documento, por assim dizer, descritivo e não prescritivo: o que nele se contém não é a doutrina nem a praxis da Igreja (nunca foi), mas sim um relato de alguma situação do mundo sobre a qual a Igreja é instada a se pronunciar. É aliás exatamente para isso que periodicamente se reúne a Assembléia do Sínodo dos Bispos.

Por exemplo, o Instrumentum Laboris do Sínodo de 2001 dizia o seguinte: «a mentalidade secularizada de grande parte da sociedade, bem como a ênfase exagerada sobre a autonomia do pensamento e a cultura relativista, levam as pessoas a considerarem as intervenções do Bispo, e também do Papa, sobretudo em matéria de moral sexual e familiar, como opiniões entre outras opiniões, sem influência na vida» (n. 107). Trata-se, como é evidente, de uma descrição do problema. Ninguém em sã consciência poderia ler esse texto e acreditar que a Igreja estivesse abrindo as Suas portas para o relativismo.

Ainda outro exemplo: o Instrumentum Laboris do Sínodo de 2010, sobre o Oriente Médio, dizia que a “islamização penetra nas famílias também através dos meios de comunicação em massa e das escolas, modificando assim as mentalidades que, sem o saber, vão-se islamizando” (n. 34). Mais uma vez, isso não se trata de capitulação da Igreja perante o Islã, mas tão-somente da apresentação — tão exata quanto possível — da situação que a assembléia sinodal era chamada a apreciar. É essa a forma de trabalho deste organismo eclesial desde há muito tempo.

E com isso chegamos ao documento atual, cujo teor é o seguinte:

Alguns jovens LGBT, mediante várias contribuições feitas à Secretaria do Sínodo, manifestaram o desejo de «se beneficiar de uma maior proximidade» da Igreja e experimentar um maior cuidado por parte d’Ela, ao passo que algumas Conferências Episcopais se perguntam sobre o que propôr «aos jovens que, ao invés de formarem casais heterossexuais [sic — coppie eterosessuali], decidem constituir pares homossexuais [coppie omosessuali] e, sobretudo, desejam permanecer próximos da Igreja». (n. 197)

A esta redação é possível fazer dois reparos. O primeiro deles é que “LGBT” não é propriamente uma identidade (a rigor, ninguém “é” LGBT), a não ser como uma espécie de identidade tribal: trata-se de um fenômeno gregário da juventude atual, da mesma forma que, há alguns anos, os jovens se reuniam sob a subcultura punk. E o segundo é que seria muito conveniente evitar o emprego da mesma palavra — no italiano, coppie — para se referir a duas coisas tão gritantemente distintas como os casais e as duplas homossexuais: afinal de contas, para citar outro Instrumentum Laboris do mesmo Sínodo dos Bispos, de há apenas três anos, «[n]ão existe fundamento algum para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimónio e a família» (Instrumentum Laboris da XIV Assembléia Ordinária do Sínodo dos Bispos, n. 130).

Mas o que é verdadeiramente impressionante é o dado social que estas linhas revelam. Ora, o pecado é, por definição, uma revolta contra Deus. É possível até compreender como uma fraqueza o pecado eventual, o pecado irrefletido: mas o pecado que é conscientemente defendido, o pecado que é erigido a um estilo de vida, este é a coisa mais anticatólica que pode haver. É possível amar verdadeiramente a Deus e, ainda assim, cair ao longo da vida em muitos pecados, mesmo graves. Mas defender racionalmente aquilo mesmo que Deus abomina, isso só é possível dando-se orgulhosamente as costas ao Criador.

A Cidade dos Homens é oposta a Cidade de Deus; a subcultura gay é oposta à Cultura Católica. No entanto, para horror dos revolucionários, mesmo os jovens iludidos com o canto-de-sereia da tribo LGBT não conseguem dar totalmente as costas ao chamado que lhes faz a Igreja de Nosso Senhor! Ora, isso significa que a cultura tribal não lhes é o suficiente. Os anticlericais quiseram libertar os homens do peso da Igreja; hoje, livres, distantes d’Ela, os homens A contemplam de longe e sentem vontade de a Ela retornar. A descristianização foi um fracasso fragoroso; os livre-pensadores de outrora ficariam envergonhados.

O que está escrito neste documento, em curtas palavras, é que a «cultura gay» não é suficiente para a juventude. E nem o poderia ser jamais: criados para as coisas grandiosas, para a glória do Altíssimo, para o heroísmo, é somente no amoroso cumprimento da vontade de Deus que os jovens podem se sentir enfim realizados. Enquanto não abraçarem esta Doutrina libertadora, sentirão sempre que falta alguma coisa e estarão constantemente insatisfeitos. Satanás construiu uma eficiente prisão para manter os homens afastados de Nosso Senhor; no entanto, ele não pode impedir que, por detrás dos seus muros fétidos, as almas enxerguem a cruz que se ergue sobre o campanário da igreja — e experimentem, ainda que inconfessadamente, o desejo furtivo de trocar a decadência da tribo pela riqueza da grande família dos filhos de Deus.

Ainda outras considerações sobre a ignorância

É incorreto dizer, como amiúde se ouve por aí, que “a ignorância é o oitavo sacramento”. Um sacramento é um sinal sensível e eficaz da graça de Deus, na definição que nós aprendemos a repetir nos antigos catecismos. Isso significa que um sacramento, para sê-lo, precisa transmitir a graça. Os sacramentos ou produzem a graça em quem não a possui — são os chamados sacramentos de mortos: o Batismo para quem nunca a recebeu, a Penitência para os que, tendo-a recebido, perderam-na pelo pecado mortal — ou aumentam-na nos que já se encontram em estado de graça (os sacramentos de vivos: todos os outros).

Ora, em hipótese alguma a ignorância tem o condão de transmitir a graça. O papel da ignorância é o de mitigar a culpabilidade de um ato humano que, em condições normais, seria pecaminoso. Assim, por exemplo, o sujeito não sabe que precisa assistir uma Missa em determinado dia santo. A obrigação de participar da Missa nos dias de preceito é matéria grave, constante do Terceiro Mandamento do Decálogo e do Primeiro Mandamento da Igreja; portanto, em condições normais, o sujeito que voluntariamente deixa de ir à Igreja quando a isso era obrigado comete um pecado grave, cuja primeira consequência é a perda da graça santificante.

Mas, no nosso exemplo, o sujeito não sabia que, em determinado dia concreto, estava obrigado a ouvir Missa. Não a ouviu e sequer passou por sua cabeça que, agindo assim, pudesse estar pecando. O que acontece? Se essa ignorância é desculpável (e, atenção!, que somente Deus, o Justo Juiz, é capaz de aquilatar as nossas ignorâncias), então o fiel não sofre as consequências do pecado de faltar à Missa — ou, melhor dizendo, ele não peca formalmente. Não é que a ignorância perdoe o pecado: ela, rigorosamente, faz com que o ato não configure pecado.

Mas isso em absolutamente nada muda a situação anterior deste hipotético fiel. Se antes ele estava em estado de graça, manteve a graça santificante porque não pecou; mas, ao contrário, se antes se encontrava em pecado, privado da graça de Deus, então permanece sem a graça porque não fez nada capaz de lha restituir. A ignorância não é um sacramento, portanto, porque — ao contrário dos sacramentos — apenas mantém o fiel na mesma condição em que ele já se encontrava. Pela mesma razão também a ignorância não “salva” ninguém, porque o que salva é a graça e a ignorância não produz graça.

No limite, se o sujeito é um índio na América pré-descobrimento, ele não pode ser salvo “por ignorância invencível”. A ignorância pode lhe escusar de um sem-número de pecados, mas não pode lhe conferir a graça necessária à salvação. No limite, se o índio pré-cabralino salvou-se, então foi salvo pelo Batismo de Desejo — que, este sim, é verdadeiro sacramento, modalidade do único Sacramento do Batismo que existe — e não “pela ignorância”.

Mas a ignorância não serve somente para teorizar sobre a salvação dos ameríndios. Falar em ignorância (invencível) é o mesmo que falar em consciência (invencivelmente) errônea, e aquilo que se aplica aos que nunca ouviram falar de Cristo aplica-se também, mutatis mutandis, aos fiéis católicos.

A consciência errônea, segundo o Aquinate, sempre obriga (Summa, I-IIae, q. 19, a.5) mas nem sempre escusa (id. ibid., a. 6). É uma situação que pode parecer paradoxal — o sujeito estar obrigado a seguir a sua consciência na prática de um mal e, ainda assim, praticando-o, poder cometer pecado –, mas é assim porque os dois pecados (o de dissentir da consciência errônea e o de segui-la) o são em ordens distintas. O pecado de alguém agir em desacordo com a própria consciência é o de direcionar a sua vontade para o (que lhe parece) mal; já o pecado de praticar o mal que a sua consciência lhe apresenta como bem, é o de ter sido descuidado na formação da própria consciência. E, aqui mais uma vez, apenas o Altíssimo, Aquele que sonda os corações e os rins, pode discernir com retidão e justiça aquilo que é negligência e aquilo que é erro escusável. A verdade é que tanto a ignorância vencível quanto a invencível são indistinguíveis “de fora” (e, aliás, provavelmente até mesmo “de dentro”): descabe julgá-las quer aos homens, quer à própria Igreja, sendo esta uma prerrogativa de Deus somente.

Em resumo, o ato praticado de acordo com a consciência errônea

i) não muda a situação anterior do fiel, uma vez que o fulano, se estava na graça de Deus, pode mantê-la, mas se já se encontrava privado dela então permanece dela privado; e

ii) não necessariamente escusa, uma vez que pode ser fruto de negligência, o que acarreta culpabilidade e pode levar à perda da graça santificante.

Vê-se assim, claramente, que é uma situação estéril e insegura, que ninguém pode voluntariamente escolher para si próprio e da qual, aliás, todo homem tem o dever de resgatar o seu semelhante. Não é uma condição que se possa promover ou chancelar; não é nem mesmo uma condição ante a qual se possa ficar indiferente. A caridade manda-nos desejar o melhor para o nosso próximo. É de todo evidente que há coisas melhores do que uma consciência errônea para desejarmos àqueles que a Divina Providência põe no nosso caminho.

Ora, o papel da Igreja é o de levar as almas a Deus, do Qual elas somente podem se aproximar revestidas da graça de Cristo. Não pode portanto Ela contentar-se em manter os homens na ignorância e “torcer” para que esta ignorância seja de tal jaez que um dia lhes escuse os maus atos perante o Justo Juiz — isso seria de uma irresponsabilidade terrível! Não dá para “arriscar” a salvação de uma alma desse jeito, não é possível deixar de munir um filho de Deus com tudo aquilo de que ele precisa para que seja encontrado irrepreensível no dia da vinda do Senhor.

Não pode a Igreja manter os homens na ignorância em primeiríssimo lugar porque esta ignorância não salva ninguém e, em segundo lugar, porque os atos realizados em consonância com a consciência errônea, embora obrigatórios, podem vir a ser inescusáveis. Não existe e não pode existir, como já falei alhures, uma pastoral da ignorância. Ela é contra a caridade, contra a lógica, contra a missão divina da Igreja.

O Magistério da Igreja e o Direito secular

Um amigo perguntou, dia desses, se o Papa era como o STF da Igreja Católica. A analogia na qual ele estava pensando era a seguinte: assim como é o Supremo Tribunal Federal quem diz definitivamente o que é constitucional e o que não é constitucional dentro da ordem jurídica brasileira, seria, na Igreja Católica, o Papa quem por último diria o que é ortodoxo e o que é herético dentro da Doutrina Católica. Assim como o STF diz o que é que a Constituição diz, o Papa seria aquele que diz o que é que a Revelação diz.

O Direito me parece fortemente tributário da Teologia, sem dúvidas, e é possível — mais até, é fácil — encontrar diversos paralelos entre os juristas e os teólogos. Não obstante, penso que é preciso ressaltar as diferenças entre um acórdão do STF e uma bula papal, a despeito de a metáfora acima parecer sedutora. Ou melhor, é preciso enfatizar, por todas, uma única diferença crucial e insuperável entre as duas esferas: o direito é essencialmente mutável, a doutrina não pode mudar jamais.

Isso porque o direito deve se adaptar às peculiaridades (obviamente, apenas àquelas legítimas) dos diversos tempos e lugares, dos usos e dos costumes dos homens. Com a doutrina acontece exatamente o contrário: são os homens que devem se adaptar a ela, às suas consequências e suas exigências. Daí porque é legítimo (mais até, é perfeitamente razoável, é até esperado) que um Tribunal modifique o seu entendimento a respeito de determinada norma jurídica levando em conta as transformações sociais, ao passo em que a Igreja não pode mudar jamais um jota da lei de Deus mesmo que uma centena de cidades dos homens sejam edificadas sobre os escombros da Cidade de Deus.

Sim, é claro que existe um direito natural imutável do qual o direito positivo deriva — ou ao menos deve derivar. Ainda assim a lei humana pode (e, em muitos casos, até deve) mudar. É o que ensina Santo Tomás (Summa, I-IIae, q. 97, a. 1): conquanto a lei natural não mude nunca, deve a lei positiva mudar por um duplo motivo. Primeiro, porque a razão humana é imperfeita e, portanto, as leis por ela ditadas podem ser sempre aperfeiçoadas a fim de que correspondam melhor aos ditames do direito natural. E, segundo, porque mudam naturalmente as condições dos homens, e a estes «convêm coisas diversas segundo as suas diversas condições» (id. ibid, Resp.).

O Papa (ou, melhor dizendo, o Magistério da Igreja) é infalível em determinadas condições, e aquilo que é verdadeiro não pode simplesmente passar a ser falso depois: o aprofundamento da Revelação no curso da história da Igreja, que existe, só pode ser integrativo e não superativo. Isso quer dizer que coisas distintas podem vir a se acumular no corpo doutrinário e moral da Igreja Católica, mas aquilo que era doutrinariamente certo não pode passar um dia a ser incerto, e aquilo que era moralmente ilícito não pode passar a ser lícito nem vice-versa. Com o direito é diferente, as diversas teses jurídicas podem (e em alguns casos até devem) se superar umas às outras, inclusive eivando de ilicitude aquilo que em outros tempos era perfeitamente jurídico, e isso é completamente natural. Não dá para estabelecer nenhuma comparação entre o ordenamento jurídico e o magistério eclesiástico desconhecendo essas coisas.

Certamente não faltará entre meus interlocutores quem me interpele sobre os juros, ou a tortura ou a escravidão. A isso é preciso responder sucintamente, primeiro, que nenhuma dessas coisas é intrinsecamente má; segundo, que em tempos passados determinadas condições dos homens, distintas das atuais, autorizaram-nas ou as vedaram, legitimamente; terceiro, que a consciência moral da humanidade encontra-se hoje em um patamar superior — quando menos de acúmulo de experiências históricas –, em melhores condições portanto de apreciar o que melhor convém à comunidade humana. Antes do ensino da Igreja, portanto, o que mudaram foram as condições dos homens; outrossim, o rol exíguo, restritíssimo destes exemplos históricos aponta antes para o caráter extraordinário do fenômeno do que para uma superabilidade essencial da moral católica que a pudesse tornar análoga ao direito humano.

Voltando à comparação entre o Magistério e o Judiciário, o maior problema com ela é o pressuposto que ela enseja: assim como o direito deve ser sempre revisto para melhor corresponder às mudanças sociais, então assim também o Magistério católico deveria (ao menos eventualmente) superar o seu ensino em atenção às modificações sofridas pela sociedade. Tal compreensão é falsa e ignora as sensíveis diferenças existentes entre a Igreja e o Direito secular, conforme exposto. E, por conta disso, a fim de evitar nefastas confusões, não convém traçar analogias entre os dois campos sem atentar criteriosamente para aquilo que é próprio de cada um.

O Magistério não favorece heresias

Foi tornada pública no último sábado uma Correctio Filialis De Haeresibus Propagatis «assinada por 40 clérigos católicos e acadêmicos leigos» e endereçada ao Santo Padre. Os signatários da carta pretendem encontrar um “favorecimento” a sete heresias — no documento discriminadas — tanto na Amoris Laetitia quanto nas subsequentes palavras, atos e omissões do Papa Francisco.

A estrutura do documento, basicamente, é a seguinte: primeiro são listadas as passagens problemáticas da Exortação Apostólica (pp. 3-5); depois são elencadas as palavras, atos e omissões do Papa que «estão servindo para propagar heresias dentro da Igreja» (pp. 5-8). Em seguida as sete proposições errôneas são apresentadas (pp. 8-9). Finalmente, tenta-se explicar essas heresias como possuindo duas fontes: o Modernismo (pp. 10-13) e a teologia de Lutero (pp. 13-18). Este o documento. O que dizer dele?

Antes de qualquer outra coisa, o que causa mais estranheza é a ausência dos nomes dos cardeais das dubia entre os signatários da tal Correctio. O Cardeal Burke já há meses vinha dizendo que seria necessário fazer uma correção formal ao Papa Francisco; vindo a lume agora esta carta, e nela não constando o nome do Card. Burke, nem aliás de nenhum outro cardeal, nós ficamos sem saber ao certo se este documento é ou não é a correção formal anteriormente anunciada. Parece que não.

E ainda, a carta parece que não tem o peso que deveria ter. O próprio Rorate Caeli afirmou que muitos estão diminuindo o alcance da iniciativa, embora insista em afirmar que ela é apenas a primeira peça do quebra-cabeças e que muito ainda esteja por vir. O Papa Francisco, ao que parece, simplesmente bloqueou o acesso ao site a partir dos computadores do Vaticano. As primeiras reações ao documento não tiveram o alcance desejado — o que é muito de se lamentar. Porque, embora a carta meta os pés pelas mãos ao acusar publicamente o Magistério da Igreja de favorecer heresias (!), tem pontos positivos que merecem atenção e cuidado.

As sete proposições listadas na Correctio são, de fato, proposições errôneas (com talvez a exceção da quarta cujo sentido eu não consegui captar muito bem — mas se deixe isso de lado por ora), e elas estão de fato sendo propagadas no interior da Igreja, e é urgente que isso cesse. A salvação das almas assim o exige. Diante disso, muito mais correto do que apontar o dedo para o Vigário de Cristo, assim — muito mais importante do que sair à busca de culpados –, é reconhecer a existência do problema e lutar para que ele seja corrigido. Isso é o que é fundamental.

Sim, a carta acerta ao dizer que os inimigos de Cristo estão propagando heresias dentro da Igreja (e, verdade se diga, com um descaramento talvez inaudito), e, sim, é notório que eles o fazem pinçando trechos dos documentos do Magistério e se valendo das alegadas intenções progressistas do Papa Francisco. Só isso já é motivo mais do que suficiente para pôr os católicos em guarda, sem que seja necessário enveredar pelo tortuoso caminho de perscrutar as intenções do Soberano Pontífice ou acusar o Cristo-na-Terra de beneficiar heresias.

Porque a estratégia adotada pela Correctio pode muito bem ter o efeito contrário ao esperado. Note-se: se um grupo de pessoas está dizendo que o Magistério da Igreja defende as heresias ‘a’, ‘b’ e ‘c’, alguém pode perfeitamente concluir que, dado que o Magistério não ensina heresias, então as proposições ‘a’, ‘b’ e ‘c’ não são heréticas. E, de repente, aqueles que tentavam combater doutrinas errôneas terminam por chancelá-las com o mais alto grau de confiabilidade ao dizerem que elas são ensinadas pelo Magistério Católico. Um verdadeiro tiro pela culatra de consequências trágicas: pessoas normais, que não acreditariam jamais nestas heresias, podem cogitar levá-las a sério se se convencerem de que elas constam dos documentos da Santa Igreja.

Não nos enganemos: a forma mais eficaz de conferir respeitabilidade, por exemplo, a idéia de que «[u]m fiel católico pode ter pleno conhecimento de uma lei divina e voluntariamente escolher violá-la, mas não estar em estado de pecado mortal como resultado desse ato» (proposição 3 da Correctio) é dizer que tal idéia encontra amparo no Magistério da Igreja Católica e nos ensinamentos do Soberano Pontífice. A maneira mais fácil de fazer as pessoas acreditarem nisso é dizendo ser este o ensinamento do Papa e da Igreja! Mas, ora, o Magistério não favorece heresias: estas proposições, portanto, se verdadeiramente heréticas, não se fundamentam realmente nos documentos eclesiásticos: fazem-no apenas falsamente.

Acerta, portanto, a Correctio em apontar proposições heréticas disseminadas na Igreja. Erra em fazê-las derivar do Magistério Católico. É justamente porque as proposições apontadas são errôneas que elas não decorrem do Magistério eclesiástico, que não pode disseminar o erro; e isso é tão forte que, se tais proposições estivessem realmente fundamentadas em documentos magisteriais, seria legítimo antes questionar a própria heterodoxia delas que a ortodoxia do Papa — aliás, mais que legítimo!, seria a coisa mais óbvia a ser feita.

Mas as proposições apontadas na carta são realmente errôneas. Por serem errôneas, não estão presentes no Magistério da Igreja, antes o contrariam. E, por serem errôneas e contrariarem o Magistério, devem ser combatidas com tanto mais veemência quanto mais aleivosamente se afirmarem baseadas em documentos pontifícios. Esta é a apologia de que a Igreja precisa.

A CNBB não irá se pronunciar sobre isso

A respeito da exposição — sedizente “cultural” e “artística” — que o Banco Santander havia patrocinado em Porto Alegre mas que, após protestos, terminou cancelada antes do tempo, há dois artigos que precisam ser lidos. Um deles mais longo, mais denso e mais teórico; o outro, curto, prático e certeiro.

Primeiro, o Carlos Ramalhete: «O que se está fazendo é um ataque sistemático às bases mesmas da sociedade e da civilização – de qualquer civilização; não estou falando simplesmente da civilização ocidental, em cujos subúrbios estamos. E quando eu digo que é às bases, não exagero: o ataque visa coisas tão básicas quanto o masculino e o feminino, necessários para a própria reprodução da espécie; a noção hierárquica de superior e inferior, necessária para qualquer reta ordenação social; a noção ético-moral de certo e errado, necessária para o juízo das ações que nós mesmos encetamos. É a destruição da possibilidade mesma de sociedade que esses processos irracionais almejam.»

Depois, o Jônatas Lima: «Este blogueiro pediu uma resposta da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a declaração recebida foi a de que… não. A CNBB não vai fazer nada, por que a arquidiocese de Porto Alegre já fez e “possui autonomia como Igreja local”.»

A recusa explícita da Conferência dos Bispos do Brasil de tomar uma posição institucional perante o fato local de provavelmente maior repercussão midiática nas últimas semanas é sintomática. Mais que isso até: é covarde, pusilânime, agoureira, e nos diz muito a respeito de com quem poderemos contar nestes tempos difíceis em que vivemos. A CNBB perde, mais uma vez!, a chance de se posicionar do lado correto da história e de cumprir o seu papel profético levantando a voz para protestar contra a blasfêmia e a imoralidade explícitas e deliberadas.

Penso, por um instante, que poderia ser pior, e que os senhores bispos — atenção, que isso não é inverossímil! — poderiam muito bem ter lançado uma nota em defesa da malfadada exposição. Quase ouço alguém dizer que deveríamos até dar graças a Deus pelo silêncio da Conferência — tão acostumada a falar o que não deve, a envergonhar a Igreja de Cristo e ofender Nosso Senhor. A argumentação, no entanto, não serve de consolo. Porque este silêncio — publicamente justificado! — já é indevido, vergonhoso e ofensivo. Já é um escândalo, um acinte.

Porque haveria muito o que se dizer. Seria preciso, somente à guisa de exemplificação, protestar contra a ofensa gratuita ao sentimento religioso dos brasileiros, questionar a exposição de crianças e adolescentes às mais grotescas formas de depravação sexual, defender da acusação de censura os brasileiros que, irritados, iniciaram uma exitosa campanha de boicote ao Santander que culminou com o encerramento prematuro do evento, censurar as posições contraditórias tomadas pelo banco a respeito do caso.

Todas e cada uma dessas coisas podiam e aliás precisavam ser ditas; é verdadeiramente chocante que nada disso possa ser encontrado no site da CNBB (a própria página com a notícia da nota de Arquidiocese de Porto Alegre não a reproduz nem parcialmente, simplesmente tem um link dizendo “Leia a Nota no site da arquidiocese”). Quem entra no site da Conferência pensa que nada aconteceu, que está tudo muito bem, que Cristo não foi ofendido e que os católicos não estão sendo atacados. Parece que está tudo na mais perfeita paz.

Diante da grande mídia em uníssono falando em censura e patrocinando o vilipêndio a símbolos religiosos há dias, é embaraçoso que a Conferência Episcopal não se demonstre minimamente interessada em defender a verdade, a bondade e a beleza.

O evento LGBT que a PUC poderia fazer

Aconteceu em Londrina. Um grupo de universitários — pelo que entendi, substancialmente composto por alunos pertencentes ao DCE, mas com o apoio também de professores — havia resolvido fazer um evento LGBT dentro da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. O evento estava programado para os próximos dias 12, 13 e 14 de setembro, encerrando-se em plena Festa da Exaltação da Santa Cruz. Alguma boa alma, inconformada com este escárnio, teve a feliz idéia de organizar um abaixo-assinado perguntando qual a posição da Arquidiocese sobre o assunto. O documento conta, até agora, com 12.000 assinaturas.

Deu algum resultado. A Mitra soltou uma nota adiando o evento: agora ele ocorrerá de 02 a 05 de outubro e «contará com a presença de um teólogo católico, isso para garantir o alinhamento com os princípios da Igreja e da Universidade». Não é a nota mais contundente do mundo; igualmente, e aliás talvez pelo mesmo motivo, a garantia de «alinhamento com os princípios da Igreja» não enseja lá muita confiança. Mas algum mal-estar o abaixo-assinado terminou gerando — e, nas atuais circunstâncias, isso já é muita coisa.

Mas o interessante é que haveria, sim, muito o que se discutir, dentro de uma universidade católica, sobre o homossexualismo e a cultura gay. Seria muitíssimo bom lançar as luzes do Evangelho sobre este horrendo tabu contemporâneo, que aprisiona as pessoas aos seus vícios, bestializa a sociedade e atrai a ira de Deus. Um evento verdadeiramente católico sobre o tema seria uma coisa da maior utilidade; seria, aliás, um evento épico, heróico; no mais puro rigor do termo, profético. Seria um bálsamo.

Poder-se-ia começar, antes de qualquer outra coisa, com a condenação mais veemente desta mania horrenda de reduzir as pessoas aos seus vícios, fazendo-as se identificarem com os seus pecados como se houvesse algo de substancial no homossexualismo. Porque, ao contrário do que é hoje senso comum, “O Homossexual”, do jeito que costuma ser apresentado, não existe. Ora, o pecado contra a natureza é um pecado e, como tal, é uma desordem, é uma falta. Não é uma nota constitutiva de ninguém. Ninguém pode se identificar com uma falta, com um não-ser!

Nas discussões de antanho aqui do Deus lo Vult! os defensores da cultura gay procuravam sustentar que todo mundo era homossexual em alguma medida; mas na verdade é exatamente o oposto. O homossexualismo não é um atributo, uma característica, nada disso; o máximo que ele pode vir a ser é um hábito e, assim, algo que se faz, e não uma coisa que se é. No rigor terminológico ninguém é gay a não ser por uma metonímia: quando se o diz, está-se tomando o agir pelo ser. O que significa que, no limite, ninguém é propriamente homossexual: o que existe são pessoas que praticam, com maior ou menor frequência, atos mais ou menos intensos de sexualidade desordenada. E esta compreensão faz toda a diferença.

Veja-se, para efeitos comparativos: que coisa é o adultério? É o homem casado ou a mulher casada praticarem atos sexuais com quem não é o seu cônjuge legítimo. E quem é adúltero? É quem comete adultério. Note-se que não existe uma “natureza” adúltera, não existe o adultério enquanto um atributo constitutivo da individualidade de seu ninguém. Não há um “Adúltero-em-si”, adúltero é quem pratica adultério e ponto — e, por via de conseqüência, quando a pessoa deixa de praticar o adultério ela passa a não ser mais adúltera. O adultério é uma realidade exterior. É algo que enfraquece o homem mas que é estranho a ele. É uma coisa em cujas garras ele pode estar mais ou menos enredado, mas — e perceber isso é que é importante! — você não é as garras em que está preso, por mais fundo que elas estejam cravadas na sua carne.

Com o homossexual é a exata mesma coisa. Só se diz (só tem sentido dizer) homossexual a quem pratica atos de homossexualidade. Da mesma forma que não existe (a não ser como metonímia) uma natureza adulterina da qual decorre necessariamente o adultério, tampouco existe uma “natureza gay” precedendo e produzindo os atos de homossexualidade. O homossexualismo, como todo pecado, é exterior ao homem. Ninguém é um pecado intrínseco, o mal não tem substância. Santo Agostinho disse isso dezesseis séculos atrás, e foi uma verdadeira liberdade. Mas hoje os homens deram as costas à verdade: encantaram-se com fábulas e delas ficaram cativos.

Todas essas considerações passam ao largo da barbaria de que é composta a virtual totalidade dos assim chamados “eventos LGBT”. O que se procura neles é conferir ares ontológicos ao homossexualismo, impingindo-o com tanta veemência às pobres almas marcadas por este pecado que elas terminam por se identificar com ele: e isso é terrivelmente diabólico, de uma perversidade sem tamanhos. É pegar filhos de Deus vocacionados à santidade e fazer com que eles sejam vistos por todos — inclusive e principalmente por eles próprios — como uma espécie de pecado encarnado. É horrendo! Contra uma tal blasfêmia, aí sim, seria importantíssimo que as Universidades Católicas se levantassem: para quebrar a hegemonia do mal, para libertar os homens das fábulas, para salvar as almas amadas por Cristo.

Justificativas descabidas para a comunhão dos divorciados

O artigo de D. Víctor Manuel Fernández sobre o Capítulo VIII da Amoris Laetitia publicado na última edição da revista Medellín — a despeito do que alguém poderia pensar por conta da nome da revista — está, em linhas gerais, bastante sensato: não autoriza de nenhuma maneira a sanha sacrílega de se admitir os divorciados recasados à comunhão eucarística que vem tomando conta de certos setores eclesiásticos. Haveria no entanto alguns apontamentos necessários, que passo a fazer abaixo.

Em primeiro lugar (medellín 168, p. 453), não há diferença rigorosamente nenhuma entre assumir o compromisso de viver em plena continência (São João Paulo II na Familiaris Consortio, 84) e esforçar-se por viver como amigos (Bento XVI na Sacramentum Caritatis, 29b): uma expressão implica na outra sem solução de continuidade. Afinal de contas, o único compromisso exigível ao cristão é o de se esforçar para fazer a vontade de Deus, uma vez que ninguém pode garantir a priori que nunca mais vai tornar a pecar; e viver como amigos significa, exatamente, viver em plena continência, uma vez que aos amigos não é facultada a prática de atos conjugais próprios dos esposos. Não há nenhuma evolução entre os dois documentos, como se a Igreja estivesse ensaiando “um passo à frente” nessa matéria; por sua vez, a proposta dos liberais de se conferir a Sagrada Eucaristia para quem vive em relações adulterinas não guarda nenhuma compatibilidade ou gradação com os documentos apresentados.

O artigo dá a entender que, anteriormente, os que viviam em segundas núpcias não podiam receber os Sacramentos nem mesmo se estivessem vivendo em plena continência (medellín 168, p. 452), sendo a autorização para comungar nesta última hipótese uma novidade trazida por São João Paulo II. Não sei se isso é exato mas, em qualquer caso, vem ao encontro de tanto quanto já falei aqui sobre o assunto: para mim é claro que o sentido da norma é evitar por um lado que as pessoas em pecado mortal comam e bebam a própria condenação (cf. CCE §1385) e, por outro lado, afastar mesmo qualquer aparência de confusão acerca da Doutrina Católica sobre o Matrimônio e a Eucaristia. A contrario sensu, portanto, se (note-se bem, SE) não há responsabilidade subjetiva apta a configurar pecado mortal e não se produzem escândalos nem se induz a erro acerca da Doutrina, então a participação discreta nos Sacramentos é lícita. Isso vale desde sempre, mesmo antes da AL ou da FC. Isso é a própria lógica interna da Liturgia (enquanto culto público) e dos Sacramentos (enquanto canais da Graça).

Infelizmente, contudo, a situação atual é a de escândalo institucionalizado, praticamente inexistindo alguma hipótese onde a tal “novidade” do Cap. VIII da Amoris Laetitia possa ser licitamente aplicada. A situação atual, ao contrário, talvez exigisse mesmo um recrudescimento da disciplina, impondo maiores obstáculos mesmo à comunhão eucarística (pelo menos à pública) dos que vivem em segundas núpcias praticando a plena continência. A confusão é generalizada e, para não correr o risco de menoscabar os Santos Sacramentos, talvez fosse mais pastoral, em certas circunstâncias, negar a Sagrada Comunhão a quem, conquanto interiormente em estado de Graça, não estivesse em condições exteriores de A receber.

Voltando ao artigo de D. Fernandéz, as comparações feitas com o Quinto e o Sétimo Mandamentos (medellín 168, p. 454-455) não têm pé nem cabeça. Matar alguém em legítima defesa não viola o mandamento de “não matar”, nem se apropriar da comida alheia em estado de necessidade viola o de “não furtar”. Isso é arquiconhecido de todo mundo e nunca esteve em discussão, consta em qualquer catecismo ou manual de teologia moral. Em contrapartida, ninguém jamais cogitou que a convivência more uxorio com alguém que não o cônjuge legítimo pudesse ser coisa diferente de adultério ou fornicação!

E o motivo do descabimento da comparação é muito fácil de se ver. É lícito ao agredido tirar a vida do agressor injusto porque, se ele não o fizesse, seria morto: a legítima defesa se justifica porque é conditio sine qua non para a preservação da própria vida. Do mesmo modo o furto famélico é lícito porque, se a pessoa não comesse, iria morrer de fome, e a vida é um bem maior do que a propriedade; além do quê, no estado de necessidade que justifica o furto famélico há uma violação objetiva da destinação universal dos bens, há um uso desordenado da propriedade.

Ou seja, tanto um caso quanto o outro se justificam, por um lado, porque se está diante de uma injustiça em ato (uma agressão, no caso da legítima defesa; uma desordem na destinação universal dos bens, no caso do estado de necessidade) mantida por um ser humano concreto (o agressor ou o mau proprietário); e, por outro lado, porque quem repele com força a violência sofrida ou quem se apropria daquilo que não lhe pertence o fazem legitimamente apenas porque não lhes resta mais nada a fazer, porque esta é a ultima ratio, sem a qual morreriam.

Coisa completamente diferente ocorre no caso dos divorciados recasados: nem estão diante de um agressor injusto, uma vez que os fautores do adultério são eles próprios; nem estão ausentes as outras opções, uma vez que tanto a continência quanto até mesmo a própria separação permanecem como alternativas; nem, tampouco, se encontram diante de uma situação objetiva de injustiça, uma vez que a indissolubilidade é um mandamento de Deus e não uma desordem introduzida pelo homem. É claro, portanto, de uma clareza meridiana, que as diferentes situações nada guardam em comum uma com as outras. Não é possível, em absoluto, procurar uma justificativa para o adultério raciocinando a partir do estado de necessidade ou da legítima defesa!

No artigo de D. Fernandéz há, por fim, uma outra comparação, para dizer o mínimo, forçada. As “mudanças” da posição da Igreja a respeito da escravidão ou da salvação dos não-católicos (medellín 168, p. 460-461) não são, em absoluto, “mudanças de disciplina” (!) e nem se prestam a justificar a alegada permissão para que casais adulterinos possam receber a Comunhão Eucarística. Quanto à salvação dos não-católicos diga-se, simplesmente, que o Batismo de Desejo sempre foi reconhecido pela Igreja, recebendo inclusive consagração expressa em Trento. Mas a referência à escravidão é que faz o nonsense atingir níveis inimagináveis.

Ora, a escravidão jamais foi “ensinada”, sendo tão-somente tolerada quer como pena (no caso de Nicolau V e as guerras ibéricas), quer como mal menor (no caso do tráfico negreiro): o que mudou de lá para cá não foi o ensino da Igreja (nem “a compreensão da Igreja a respeito da Doutrina” nem nada do tipo), mas tão-somente as circunstâncias externas. O que acontece é que, hoje, por força da própria pregação do Cristianismo séculos afora, não há mais espaço — graças a Deus! — para a prática daquilo que a Doutrina Cristã sempre apontou como um mal. Isso é exatamente o oposto do que historicamente aconteceu com o divórcio, cuja maldade intrínseca a Igreja sempre sustentou com intransigência mesmo perante os poderosos do mundo. Na abolição da escravatura foi a Igreja que venceu e se impôs perante o mundo; admitir a comunhão dos divorciados recasados, ao contrário, seria a derrota da Doutrina Cristã, seria o mundo se impondo à Igreja. É evidente que semelhante interpretação não pode prosperar; contra ela é mister combater com todas as forças.

Os maus professores não podem ser agredidos

Aconteceu recentemente uma história chocante em Santa Catarina: a sra. Marcia Friggi, professora, foi agredida por um aluno de 15 anos. Um soco bastante violento, como o testemunha a foto que viralizou nas redes sociais: nela a professora aparece com o olho roxo e o rosto ensanguentado. Uma completa barbaridade.

Mas o pior: houve quem dissesse que era “bem feito” para a professora, uma vez que ela elogiara, recentemente, a garota que jogou um ovo no deputado Bolsonaro. A sra. Marcia, assim, teria sido vítima daquilo que defendia publicamente — por conta disso, de certa maneira, “merecendo” ser agredida.

A confusão — infelizmente bastante comum — é gigantesca. Para rebater esta loucura em uma palavra, é preciso sustentar que não é permitido agir de maneira injusta nem mesmo contra o mais injusto dos homens. Ponto, isso não admite relativização e nem depende de absolutamente nada. A sra. Marcia pode ser a pior professora do estado de Santa Catarina, pode ser uma hipóstase da docência irresponsável: isso não autoriza um latagão de quinze anos a esbofetear uma senhora. Não autoriza um aluno a agredir um professor. Absolutamente.

Não é possível ter a menor dúvida com relação a isso: salvante talvez situações excepcionalíssimas de legítima defesa que absolutamente nada têm a ver com o caso em pauta, é errado em si mesmo um homem bater em uma mulher. É errado em si mesmo um aluno bater em um professor. É errado em si mesmo um jovem bater em uma pessoa idosa. A história toda é tão errada, e errada em tantas maneiras diferentes, que provoca horror e constrangimento ver as pessoas debochando e dizendo que a sra. Marcia não está senão colhendo aquilo que plantou. É a barbárie já instaurada, já exuberante, no meio mesmo daqueles que pretendem lutar contra ela!

A situação pela qual passou a professora é consequência das idéias estúpidas que ela própria defende: é verdade. Isso, no entanto, não faz com que a história toda seja menos lamentável, nem tampouco nos exime de repudiar a violência como ela deve ser repudiada. Afinal de contas, o mal não se torna bem quando é dirigido contra os nossos inimigos e desafetos: o mal é censurável de onde quer que ele venha e contra quem quer que ele seja exercido. Isso é um princípio absolutamente inegociável; se formos abrir mão de nossos princípios conforme as nossas conveniências, então muito em breve nos tornaremos iguais àqueles que combatemos.

Não há dúvidas de que é necessário lutar contra a influência nefasta dos professores na formação da juventude. Mas o combate deve ser feito com as armas que são lícitas: o mal se combate com o bem e não de nenhuma outra maneira. A injustiça não se pode combater senão com a justiça. Sim, a julgar pelo que se sabe da sra. Marcia Friggi fica bastante claro que ela é fautriz da barbaria que vemos a nosso redor; mas a isso não se responde com socos e agressões. Em uma sociedade minimamente decente é claro que um professor com as idéias dela jamais poderia lecionar em uma escola pública. Do mesmo modo, é evidente que nenhum pai pode deixar o seu filho em uma escola particular que tenha um quadro de professores degenerado — e a presença de tipos como a sra. Marcia é sem dúvidas capaz de tisnar qualquer corpo docente. Tudo isso é muito óbvio e está fora de qualquer discussão. No entanto, se é justo não admitir que o próprio filho tome, com a sra. Marcia, lições de esquerdismo travestidas de educação formal, não se pode condescender com uma agressão física no ambiente escolar. Se é digno proporcionar debates — mesmo acalorados — nos lugares onde a sra. Marcia finge ser professora, não é admissível que se faça vista grossa a um aluno espancando um professor. Isso não é normal e não pode ser enquadrado na lógica do “bem feito!”.

Existem certas coisas que simplesmente não podem ser feitas, independente do quanto as “mereçam” aqueles que as sofrem. Não podem ser sequer aplaudidas, independentemente até de que os que as padecem lhes tenham dado causa. Não importa, um aluno não pode agredir a um professor, ou um filho a um pai, ou um católico a um bispo — pouco importando aqui se se trata de um mau bispo, um mau pai ou um mau professor. Dizê-lo não é, absolutamente, sinônimo de defender a maldade dos maus: ao contrário, quem defende a maldade é justamente aquele que admite que ela seja empregada contra os que praticam o mal.

Há muito o que se censurar na sra. Marcia, mas isso não exime ninguém de censurar também a violência sofrida por ela. A injustiça praticada contra os injustos é injustiça do mesmo jeito, e merece contenda e combate, repúdio, rechaço e rejeição. Nem mesmo os maus professores podem ser fisicamente agredidos pelos alunos: e se não percebemos isso com a clareza de uma evidência, então talvez estejamos precisando depôr um pouco as armas e pensar com serenidade pelo que é que nós estamos lutando.

Os fins não justificam os meios e, nesta seara, aceitar combater sob as mesmas regras do inimigo é já ser derrotado por ele.

A recuada do anúncio do mal

É sintomático que o bispo de Caicó tenha publicado uma “nota de esclarecimento” para dizer que foi mal compreendido nas suas alegações (francamente escandalosas) a respeito do homossexualismo. Ora, o que está na nota não é, absolutamente, o que se divulgou na mídia e provocou escândalo. Na festa de encerramento de Santana Dom Antônio teve o desplante de chamar o homossexualismo de “dom de Deus” (!). Na nota da Diocese Sua Excelência simplesmente afirma que quer «salvar vidas» e «superar os preconceitos que matam».

É bastante evidente que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Todo mundo sabe que os homossexuais são chamados à castidade (Catecismo, 2359) como os irascíveis são chamados ao autodomínio e, os glutões, ao controle do apetite. Se Dom Antônio tivesse simplesmente afirmado isso tal não provocaria, é evidente, celeuma alguma. O que provocou a (justa) ira dos católicos foi Sua Excelência ter chamado uma desordem objetiva de “dom de Deus”.

Ora, uma desordem não é nunca um dom. Uma disfunção da libido não é um “dom”, assim como não é um dom um câncer ou uma inclinação particularmente intensa para, digamos, a preguiça. Como Dom Antônio afirmou — com aliás muita propriedade — na sua nota de esclarecimento, o que realmente importa é a forma como se vive, dadas as condições que se possui. Uma pessoa pode perfeitamente possuir «tendências homossexuais profundamente radicadas» e ser muito santa, bastando para isso que ela lute — com coragem e determinação! — contra essas más tendências. Da mesma forma uma pessoa pode ter uma inclinação muito forte para a mentira e, ainda assim, santificar-se intensamente, bastando para isso lutar a cada dia por não mentir.

O que não tem sentido é dizer que o homossexualismo é um dom, como se o pecado — i.e., a prática de relações sexuais contra a natureza — tivesse alguma coisa de virtuoso que não fosse precisamente a luta para o evitar. O pecado é sempre uma escolha e é sempre uma coisa horrível, que ofende a Deus e que conduz as almas à perdição. Nenhuma pastoral verdadeira pode perder isso de vista, porque o objetivo de toda pastoral é levar as almas à salvação e sem uma vida moral reta é impossível se salvar. O aspecto “pastoral” do Catolicismo diz respeito simplesmente ao modo de transmitir aquilo que deve ser transmitido: não é, de maneira alguma!, algo de paralelo e nem muito menos de contrário ao seu aspecto doutrinário.

Toda Doutrina existe para ser transmitida a homens concretos — e por isso precisa da pastoral; e toda pastoral existe para que se transmita a Doutrina. Não existe oposição entre uma coisa e outra. Uma doutrina que não pudesse ser transmitida não seria verdadeiramente Doutrina Cristã; do mesmo modo, uma pastoral que não transmitisse a Doutrina Sagrada seria antes atitude de lobos que de pastores legítimos.

Mas a nota da Diocese de Caicó é sintomática justamente porque não entra no mérito daquilo que provocou o escândalo: não diz nada sobre o homossexualismo ser dom de Deus, silencia completamente a respeito da conotação positiva (laudatória até!) que o bispo emprestou à triste condição dos que vivem na prática dos mais nefandos pecados contra a natureza. É como se Dom Antônio não quisesse se desdizer mas, ao mesmo tempo, não pudesse continuar sustentando o horror que proferiu naquele domingo: é como se a indignação dos fiéis católicos tivesse feito o sucessor dos Apóstolos se envergonhar — se não o suficiente para uma retratação, ao menos o bastante para que sentisse a necessidade de tergiversar e mudar de assunto.

A nota não retifica a afirmação espúria e ímpia; mas tampouco a repete, tampouco a corrobora. Se o bispo não teve a humildade de se retratar, também não teve a pachorra de insistir no erro — o que não deixa de ser algo de positivo. Sim, o ideal seria, sem dúvidas, que os pastores tivessem a coragem de anunciar com clareza e destemor a Sã Doutrina da Salvação. Mas que eles sejam forçados e constrangidos a recuar na apologia do mal é já uma preciosa vitória nesses tempos sombrios em que vivemos.

Charlie Gard glorioso

Morreu na última sexta-feira, 28 de agosto, o pequeno Charlie Gard, o bebê britânico que recentemente comoveu o mundo enquanto sofria de uma doença mitocondrial rara para a qual seus pais buscavam desesperadamente um tratamento. Chris Gard e Connie Yates lutaram furiosamente por sua prole, desafiaram os poderosos do mundo e, com isso, angariaram a simpatia e a admiração de milhões. Pode parecer que foram baldados os seus esforços, uma vez que a criança foi morrendo lentamente, pouco a pouco, enquanto burocratas em repartições públicas discutiam pormenorizadamente em quê consistiria o “melhor interesse” de Charlie. A situação do pequeno foi ficando cada vez pior enquanto sucessivas audiências judiciais eram realizadas, até que ele não pôde mais resistir. Ao final rejubilaram-se os próceres da cultura da morte: Charlie Gard morreu, os assassinos venceram! Mas nós cristãos sabemos que nem sempre a morte é o fim da história. Pois houve um dia em que as coisas mudaram. Há dois mil anos que a morte não é uma derrota. Não mais.

Charlie Gard morreu, e agora? Apesar de tudo, penso que há fundadas razões para alegria e esperança. Em primeiro lugar, ele fez mais durante a sua curta vida do que é dado à maior parte dos infantes fazer. Ele permitiu que os seus pais fizessem ecoar pelo mundo inteiro um brado pela vida: um grito pelo direito de não medir esforços pela saúde dos que padecem enfermidades. O fato é que Charlie comoveu multidões. Muitos se interessaram pela história da criança, rezaram por ela, conversaram sobre ela, procuraram os jornais britânicos e pesquisaram sobre o sistema jurídico inglês. Charlie mereceu chamadas televisivas, capas de jornais, artigos de opinião inflamados, análises jurídicas. Conheceram a sua história, neste mundo onde é quase possível nascer, viver e morrer praticamente no anonimato.

Além disso, podem dizer que a batalha judicial foi perdida: eu, ao contrário, digo que ela foi brilhantemente vitoriosa. Não existe nenhuma possibilidade concreta de o indivíduo atual, o cidadão dos dias que correm, fazer frente ao poder burocrático quase ilimitado do Estado Moderno, do Leviathan contemporâneo. A desproporção é gigantesca e provavelmente não foi jamais tão grande: a vontade estatal tem, hoje, meios de se impôr sobre os cidadãos com os quais os maiores déspotas da Antiguidade não puderem sequer sonhar. Para se ter uma idéia do tamanho da iniquidade, os pais de Charlie não puderam falar pelo seu filho nos tribunais, e a advogada que o Estado nomeou para representar judicialmente os interesses da criança é diretora de uma associação pró-eutanásia. Jogo com maior número de cartas marcadas não poderia haver.

Aquele jovem casal britânico, no entanto, fez o impossível. Recusou-se a baixar a cabeça mesmo diante da vastidão dos exércitos de César: reclamou em público, altissonantemente, o seu direito — inalienável e sagrado! — de lutar pela vida do filho, independente do que pudessem dizer todos os juízes togados do mundo. Esta história foi uma Antígona moderna. Ao final foram eles próprios que desistiram da batalha legal, e foi somente então que o assunto ficou, com o perdão do termo, pacificado: antes a Suprema Corte já havia dado a última palavra, e a Corte Europeia de Direitos Humanos também, e ainda assim aquele casal tornou a mover mundos e fundos para conseguir — e conseguiu — levar o assunto mais uma vez aos tribunais britânicos! Ora, o Estado detém o monopólio da jurisdição, de dizer o direito, de encerrar os litígios. Em GOSH v. Gard, no entanto, parece que a disputa — mesmo a jurídica — não cessou enquanto os pais não disseram “basta”.

E mais ainda. Muito se escreveu sobre o bebê Gard; muitos inclusive ousaram defender abertamente que a vontade dos médicos devesse prevalecer sobre a vontade dos pais. Por exemplo, a BBC:

Daniel Sokol, um médico especialista em ética e advogado, disse que o caso lançou uma luz sobre esta questão [a discordância entre profissionais e familiares a respeito de um tratamento médico]. “Isto nos lembra que os direitos dos pais sobre os seus filhos não são absolutos. Eles são limitados por aquilo que é o melhor interesse da criança”.

[Aliás, pelo que andei vendo, a BBC tomou desabridamente o partido do hospital contra os pais da criança, para sua perpétua vergonha. Ao que parece, foi o mais tendencioso e insistente dos veículos de comunicação sobre o assunto.]

Mas o que se viu realmente brilhar — quase por toda a parte, mesmo na mídia secular — foram críticas à atuação das cortes e apoio à luta dos pais de Charlie. Veja-se:

The Telegraph, reproduzindo o pronunciamento de Connie Yates, mãe da Charlie: “Charlie teve uma chance real de melhorar. Agora é infelizmente tarde demais para ele, mas não é tarde demais para outros que possuam a mesma doença ou outras doenças horríveis. Nós vamos continuar a ajudar famílias de crianças doentes e tentar fazer Charlie viver nas vidas dos outros. Nós devemos isso a ele para que a sua vida não tenha sido em vão”.

The Guardian: “Vivemos em um mundo de uns e zeros (…) [e] agora até mesmo a compaixão precisa se encaixar na racionalidade empírica. É por isso que aqueles que jamais sentiram o perfume do pescoço de Charlie, aqueles que jamais o abraçaram, que jamais choraram rezando pelo seu bem-estar, são considerados os mais adequados para decidir como ele deve viver e morrer”.

The New York Times, em um artigo que defende a eutanásia: “O que torna este caso particularmente difícil é que há argumentos válidos de ambos os lados. Algumas questões morais não têm uma resposta certa. Mas, ora, se há razão em ambos os lados, há também motivos para se questionar o julgamento dos tribunais”.

E finalmente, há o próprio Charlie Gard, hoje liberto da corrupção da carne, da fraqueza, da doença. Charlie agora se encontra diante de Deus — é certo. Tendo sido validamente batizado não detinha mais a mácula do Pecado Original; morrendo antes da idade da razão, não teve pecados atuais que lhe embaraçassem a visão de Deus. Morreu portanto filho de Deus, em estado de graça, em heroico sofrimento e após comover o mundo: sua alma encontra-se na presença do Onipotente, unida à multidão de anjos e santos que, de pé, diante do Trono de Deus, intercedem em uníssono por nós que ainda mais um pouco aqui ficamos. E as almas são todas “adultas”, i.e., detêm inteligência e vontade na inteireza da natureza humana. Charlie não é mais o bebê cego e surdo que foi nos seus últimos dias: é agora uma alma humana perfeita, na plenitude de suas potências naturais, vivo e glorioso na presença do Deus Altíssimo, intercedendo por nós.

Chris Gard e Connie Yates perderam um filho; a Igreja ganhou um santo. Charlie Gard, mártir da burocracia e do utilitarismo, da sanha estatal e da cultura da morte! Que ele olhe por nós, agora que pode mais diante de Deus. Que a história dele não seja esquecida. Que a luta por ele iniciada nesta terra possa continuar e dar frutos. Que os dias vindouros sejam melhores.