“E para ter uma vida tranquila, mata-se um inocente.”

Nos últimos dias, a mídia anti-clerical parece ter “descoberto”, embasbacada, o catolicismo do Papa Francisco. Foi por ocasião da recente, infame e ilegítima votação da Câmara dos Deputados argentina que, por 129 votos a favor e 125 contra, aprovou um projeto de lei (que ainda precisa passar pelo Senado e pela sanção presidencial) autorizando o crime do aborto até a 14ª semana de gestação. Em meio à escalada da sanha homicida das sociedades degeneradas contemporâneas, ninguém parece ter se levantado contra o enorme absurdo que é admitir que cinco míseros votos parlamentares — verdadeira e evidente maioria de ocasião — tenham o poder de condenar à morte crianças no ventre materno. Veja-se, que o direito de vida e morte sobre outrem fosse submetido a votação, ainda que por maioria qualificada, ou mesmo por unanimidade, já seria um retrocesso, uma barbárie! Que tal “direito” possa ser admitido por uma diferença de cinco votos entre duzentos e setenta e cinco votantes, aí já é um escárnio e uma loucura. Trata-se de 1,8%. É óbvio que nenhuma coisa em favor da qual se possa decidir legitimamente com base em uma diferença tão pequena é levada a sério por quem se sujeita a essas regras. Por cinco votos dentre trezentos é possível decidir sobre a data da festa da colheita da cidade, entre duas datas igualmente boas; ou sobre o nome do próximo presidente do Parlamento, entre dois nomes igualmente legítimos. Decidir, no entanto, entre a vida e a morte por essa margem, é coisa que deveria fazer corar de vergonha até mesmo os abortistas que guardam algum apreço pelos processos democráticos.

Mas o que isso tem a ver com o catolicismo do Papa? É que, no final de semana seguinte, Sua Santidade fez um discurso improvisado — no qual, aliás, nem mencionava a Argentina — onde disse o óbvio: que é um absurdo matar crianças para que se tenha uma vida tranquila, que isso é uma regressão ao paganismo mais abjeto, que hoje fazemos o mesmo que os nazistas faziam, só que «com luvas brancas». Foi o suficiente para que a mídia, que passou os últimos anos enaltecendo com tanto afinco a figura deste Papa progressista, que estaria empenhado em modernizar a Igreja, que seria o perfeito oposto do seu antecessor alemão, foi o suficiente, eu dizia, para que essa mesma mídia transformasse o Papa em inimigo público número 1 e passasse a exigir, aos berros, a sua renúncia.

Não é figura de linguagem. A Carta Capital estampou uma manchete onde pedia “Deixe o trono, Francisco”, e onde fazia questão de reafirmar a sua «dissidência com esta Igreja que se recusa a reconhecer as mulheres como sujeitas de suas histórias». Oras, agora ser contra o assassínio frio e deliberado de crianças no ventre de suas mães passou a ser recusar-se a reconhecer as mulheres como sujeitas de suas histórias! O que tem uma coisa a ver com a outra? Estivéssemos em pleno regime escravocrata, essa revista censuraria os abolicionistas por negarem aos senhores de engenho o serem sujeitos de suas próprias histórias? É evidente que a questão escravagista não era mera implicância contra os donos de escravos, mas sim uma questão básica de humanidade para com os seres humanos escravizados; como, do mesmíssimo modo, é óbvio que a questão pró-vida não é displicência para com mulher gestante, mas sim defesa do ser humano em risco de ser abortado.

Menos inflamada, mas ainda assim bastante reveladora, foi a coluna da Cora Rónai para O Globo (excertos aqui). Sem esconder o seu descontentamento e a sua insatisfação, a autora afirma que «[o] Papa Francisco é um perigo» porque — ó novidade! — «é tão aferrado aos dogmas medievais da Igreja quanto o papa Ratzinger». E expõe assim a sua preocupação:

A palavra de um líder religioso aparentemente aberto e antenado ao seu tempo tem um peso muito maior do que a palavra de um homem que cultiva ostensivamente a tradição, e não faz a menor questão de ser popular.

O papa Francisco pode causar estragos muito maiores do que o papa Ratzinger jamais sonhou.

Ora, que os Papas sejam (necessariamente) católicos é um pressuposto que não se deveria sequer pôr em discussão. Com o Papa Francisco até essa obviedade foi posta em causa; defendeu-se, dizendo que era católico e filho da Igreja. Quanto a isso, jamais pode ser acusado de haver querido enganar ninguém. No entanto, vemos, agora, os não-católicos virem à mídia carpir as suas alegadas decepções e se insinuarem traídos por uma Papa que — coisa incrível! — se recusa a abraçar as doenças do Terceiro Milênio.

Os doentes e os pecadores sempre receberam uma atenção especial do Papa Francisco. Porque é esta a verdadeira missão revolucionária da Igreja, desde sempre, desde as mais singelas páginas do Evangelho onde Nosso Senhor afirma ter vindo não para os sãos mas sim para os doentes, não para os justos, mas para os pecadores. No entanto, ao contrário do mundo, não se verá jamais a Igreja ou o Papa abraçando a doença ou o pecado — e essa é a diferença essencial entre quem realmente se preocupa com a humanidade e quem mancomuna-se com Satanás para espalhar dor sobre o mundo.

Entre o Papa que ama os doentes e o mundo que espalha doenças, não deve ser difícil escolher quem merece ser ouvido. A Igreja acolhe os pecadores enquanto o mundo exalta o pecado: é por isso que a Igreja permanece enquanto o mundo cai de degeneração em degeneração. No fundo, a histeria dos anti-clericais, como tudo o que fazem, não tem verdadeira razão-de-ser: é somente outra tentativa vil e desonesta (igual em seus objetivos, aliás, à que procura apresentar o Papa como um Che Guevara de branco) de afastar as pessoas do Vigário de Cristo e da verdadeira Igreja de Nosso Senhor — único lugar onde o homem pode encontrar realmente a felicidade e a paz.

O terço do presidiário

Sobre o tal terço supostamente enviado pelo Papa Francisco ao ex-presidente Lula, somente três pequenos apontamentos se fazem necessários.

Primeiro, que não há evidência absolutamente nenhuma de que o envio do presente tenha sido um desejo específico do Papa Francisco. O perfil do Vatican News nas redes sociais, a propósito, publicou hoje — inclusive com uma celeridade inusitada — uma nota de esclarecimento dizendo que em nenhum momento o advogado argentino sequer afirmou que o terço havia sido enviado pelo Papa: de acordo com o órgão de comunicação, na entrevista apenas foi dito que se tratava de um objeto abençoado pelo Santo Padre.

Ou seja, o que aconteceu foi simplesmente o seguinte: um advogado foi fazer uma visita particular ao sr. Luís Inácio, levando-lhe de Roma um terço abençoado pelo Papa. Não pôde entrar porque não era dia de visita. Ato contínuo, em um instante, os órgãos de imprensa tupiniquins transformam-no em um legado papal, agindo em missão eclesiástica, encarregado pessoalmente pelo Vigário de Cristo de entregar ao ex-presidente um símbolo do apoio pontifício e impedido de cumprir a sua missão santa pela arbitrariedade policialesca de Curitiba!

A coisa é por demais fantasiosa para merecer muita atenção.

Segundo, que o dr. Juan Gabrois afirma que o Papa sabia da entrega do terço. Ora, ainda que seja verdade, tal é completamente irrelevante: nem torna menos jurídicas as sucessivas condenações sofridas pelo sr. Luís Inácio, nem confere solidariedade internacional ao criminoso caeteense. Na verdade, Sua Santidade bem que poderia ter enviado mesmo o terço, com um carta assinada de próprio punho, e nisso não haveria nada de inusitado. Afinal de contas, ao longo da história os criminosos condenados sempre puderam contar com assistência religiosa — sem que isso significasse jamais a condescendência para com o crime que os anti-clericais do século XX gostam de ver nas manifestações de misericórdia do Pontificado atual.

Um criminoso recebeu um terço. E daí? Por séculos, mesmo os condenados à morte receberam absolvição sacramental quando já se encontravam no cadafalso, sem que se pretendesse jamais que isso pudesse tornar injustas as condenações criminais que pesavam sobre eles. Antes, é ao contrário: era justamente por serem criminosas condenadas que aquelas pessoas precisavam de um sacerdote ao seu lado. Ao ex-presidente Lula faria muito bem rezar alguns terços — como aos condenados que subiam ao patíbulo fazia muito bem ouvirem as exortações da Irmandade da Misericórdia. O Papa bem que poderia ter lhe enviado o presente com este santo propósito.

Terceiro, por fim, que se o Papa Francisco tivesse enviado uma rosa de ouro para o sr. Luís Inácio, alardeando altissonante a sua solidariedade para com a vítima inocente de um sistema judicial corrupto, isso seria um escândalo político e só. É evidente que Pontífice nenhum fala em nome da Igreja quando toma partido em favor de tal ou qual governante, quando firma alianças com determinada nação em detrimento de outras, quando sagra imperadores ou depõe reis. Ninguém está obrigado a seguir as preferências políticas daquele que se assenta no Sólio de Pedro, e se por um lado todo Soberano Pontífice faria muito bem em se manter relativamente afastado da política secular, por outro lado a Igreja tem também o direito (e por vezes o dever) de exortar os poderosos do mundo. Ora, nestas questões de natureza prudencial descabe até mesmo falar em munus docendi da Igreja; no entanto, são assuntos que por vezes se impõem.

Na hipótese de alguém de boa fé acreditar na inocência do ex-presidente, o que é que se pode fazer? Mostrar à pessoa que ela está errada, contradizê-la em público, sim, mas não transformá-la em cúmplice dos desmandos lulopetistas e nem muito menos atribuir-lhe os mesmos propósitos que a esquerda brasileira se esforça por fazer valer neste já tão maltratado país. Uma coisa é ter dúvidas acerca da lisura do processo que culminou na condenação do sr. Luís Inácio, outra totalmente diferente é endossar em bloco o programa político do Partido dos Trabalhadores. De um ponto a outro o salto é muito largo: não pode ser simplesmente inferido e nem é possível demonstrá-lo à base de razões tácitas ou motivos implícitos.

Em resumo, o terço que o presidiário não pôde receber ontem é um objeto religioso vergonhosamente transformado em arma política. Nós, católicos, ao invés de ficarmos dizendo o que o Papa quis ou não quis dizer com o seu gesto, deveríamos era rechaçar de pronto e com veemência esta instrumentalização odiosa da Fé.

Quando a espada precisa vacilar

Alguém me perguntou se eu não iria divulgar aqui os vídeos que o Bernardo Küster vem publicando no Facebook contra a CNBB. Confesso que tenho sentimentos conflitantes diante desta situação. Se por um lado este blog, creio eu, não pode ser jamais acusado de conivência para com as estripulias anti-católicas feitas em nome da Conferência dos Bispos, por outro lado eu não estou certo de que a forma de combate escolhida (e, aqui, não me refiro somente aos vídeos, mas a tudo que se vem fazendo nas redes sociais sob esta bandeira) esteja, por assim dizer, em plena conformidade com os ditames do jus in bello laical.

Veja-se bem: no mérito não cabe senão endossar as críticas, que são substancialmente pertinentes. É coisa grave que estruturas eclesiais sejam cooptadas por um partido político; é coisa grave, muito grave!, que recursos católicos sejam destinados para um fim estranho àquele para o qual Nosso Senhor instituiu a Sua Igreja. São sabidos — há muito tempo — os absurdos em matéria teológica, doutrinária, litúrgica que grassam sob os olhares complacentes de muitos dos nossos pastores. Isso tudo está fora de discussão.

Mas há alguns pontos que merecem discussão — pontos que, se negligenciados, podem contaminar qualquer apostolado. Há, antes de mais nada, uma questão canônica. As Conferências Episcopais, goste-se ou não delas, são uma instituição eclesiástica prevista pelo Direito (CIC, Livro II — “Do povo de Deus”, Parte II — “Da constituição hierárquica da Igreja”, Seção II — “Das Igrejas particulares e dos seus agrupamentos”, Título II, Capítulo IV), gozando assim de algumas prerrogativas que não podem ser atropeladas. Sim, eu sei que elas não são uma “hierarquia intermediária” entre o bispo diocesano e a Sé Apostólica; mas o fato de não pertencerem à constituição sacramental da Igreja não as iguala a um agrupamento privado qualquer — digamos, a um clube de leitura de aposentados. As Conferências são meramente uma instituição de direito eclesiástico, é claro, e nisso estão em um patamar diferente da hierarquia da Igreja instituída por direito divino; mas ser “de direito eclesiástico” (ainda que “meramente”) confere obviamente um status superior do que ser estranha ao direito (i.e., do que não ser de direito at all).

Há, além disso, uma questão, digamos, de comunicação social. Goste-se ou não, a maior parte das pessoas ainda associa a CNBB à Igreja Católica no Brasil; tal associação, via de regra incorreta, não deixa de ter um fundamento de realidade (uma vez que a Conferência foi canonicamente erigida e compreende os bispos do Brasil). Assim, o ataque direto à CNBB provoca por vezes reações passionais, fazendo com que as pessoas se coloquem irrefletidamente contra aquele que — na percepção delas — está “atacando a Igreja Católica”.

O resultado disso é que muitos, no afã (instintivo) de defender uma instituição pela qual nutrem admiração e respeito, terminam sendo encurralados a defender barbaridades. O dinheiro das coletas da Campanha da Fraternidade passou por uma Organização Não-Governamental que defende o aborto! Um grupo católico teve que celebrar Missa em um anfiteatro porque, na ocasião, havia um ídolo pagão sobre o altar da capela de um seminário! Tudo isso é absurdo e escandaloso, é um ultraje a Nosso Senhor e um nódoa na face da Igreja. Isso clama aos Céus vingança e não existe uma única pessoa de boa-fé que pudesse em consciência defender semelhantes barbaridades; no entanto, como é para “defender a Igreja” contra os ataques do Facebook, muitas pessoas terminam tomando o lado “da CNBB” e indiretamente legitimando (ou “tirando por menos”) esses escândalos.

Essas coisas não deveriam, absolutamente, ser apresentadas como sendo “da CNBB”. Primeiro porque a rigor elas não são mesmo (nos termos do CIC, Cân. 454, §4º, in finis: «nem a Conferência nem o seu presidente podem agir em nome de todos os Bispos a não ser que todos e cada um hajam dado o consentimento»), segundo e mais importante porque associar-lhes à Igreja lhes confere uma legitimação a que não fazem jus. Por exemplo, um grupo de seminaristas pode consumir drogas nos seus aposentos, ou um pároco pode desviar um pedaço do dízimo para seu uso particular: nestes casos, é uma impropriedade contraproducente falar em “festinha do seminário” ou “corrupção paroquial”.

Da mesma forma que o uso de drogas por seminaristas não é uma prática “do seminário”, um encontro político-partidário com discursos de bispos não é um evento “da Conferência Episcopal”. É, aliás, muito melhor que uma e outra prática sejam designadas como as perversões de grupelhos que são, e não como se fossem (ou pudessem ser) uma espécie de orientação institucional do seminário ou da Conferência.

E há por fim uma outra questão. É que não se ataca o clero da mesma forma que se ataca um leigo. Há uma diferença essencial, ontológica, entre a Igreja docente e a Igreja discente, e ainda que os pastores não estejam conduzindo as almas (ou, pior, ainda que as estejam dispersando), eles não perdem a condição de pastores — exatamente porque o sacerdócio ministerial é uma elevação da natureza e não uma função, é uma coisa que se é e não algo que se faz. O melhor dos leigos está ainda hierarquicamente abaixo do pior dos clérigos, e isso não se pode esquecer jamais. É necessário um cuidado redobrado, tresdobrado, ao se criticar o clero; é exigida uma moderação, uma diplomacia muito difíceis de serem adequadamente sustentadas no calor da contenda.

Isso não é respeito humano; é aliás o contrário de respeito humano, é respeito divino. É a Fé na realidade dos Sacramentos que nos obriga a tratar mesmo os sucessores de Judas como se fossem o próprio Cristo. O olhar humano pode até nos mostrar um homem em muitos aspectos pior do que nós; o olhar espiritual nos revela Cristo-Sacerdote, e esse dado da Fé não pode deixar de ser levado em consideração por mais justas que sejam as nossas batalhas. No ardor da refrega, ao vislumbrar um báculo ou uma estola a mão do cruzado precisa vacilar; é aliás precisamente isso o que o torna um cruzado e não um mercenário. O combate ao erro precisa conviver com o respeito devido ao clero. Isso precisa estar enraizado no mais profundo de nossas almas; sem isso, as batalhas que ganharmos não ajudarão a Igreja a vencer a guerra.

Lutero e o orgulho de se salvar sozinho

Aproveitando o ensejo dos quinhentos anos da Reforma Protestante, penso que é oportuno voltar os olhos para Martinho Lutero. Debruçando-nos sobre os escritos do velho heresiarca, penso que é possível a nós, católicos, aumentarmos a nossa Fé — ainda que por contraposição.

Por exemplo, eu muitas vezes me pego a explicar, em aulas de catequese, que aprouve a Deus tornar-nos colaboradores d’Ele na ordem da Redenção. Isso se aplica em primeiríssimo lugar à nossa própria salvação (aqui, a frase de Santo Agostinho, tão antiga mas nunca gasta: “Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti”); aplica-se, também, à Mediação Universal da Virgem Santíssima (e, aqui, o título d’Ela, justíssimo, de “Medianeira de todas as graças”), mas se aplica também a muitas outras coisas comuns e ordinárias. A intercessão mútua é o dia-a-dia dos cristãos. Somos todos, em alguma medida, co-responsáveis pela sorte eterna uns dos outros.

Deus tem duas obras: a Criação e a Redenção. Ora, Ele não determinou que a transmissão da vida natural se desse mediante o concurso do homem e da mulher, através da relação sexual? Sem dúvidas a alma é criada diretamente por Deus, mas o corpo é transmitido dos pais. Não é o homem corpo e alma? Sem corpo, pois, não há homem. A conclusão aqui é assombrosa, mas inelutável: sem o concurso humano cessa a obra criadora de Deus.

E assim como a transmissão da vida natural — a continuação da obra criadora de Deus — não se dá sem a colaboração humana, assim também, mutatis mutandis, a continuação da obra salvífica de Deus — a redenção das almas, a comunicação da vida sobrenatural — não ocorre sozinha, exigindo também ela a cooperação voluntária dos filhos de Deus. A conclusão aqui é ainda mais assombrosa, mas não é menos certa: sem que os homens cooperem, portanto, mesmo o Sacrifício da Cruz queda estéril.

(Veja-se, é possível admitir que, no reino das meras possibilidades metafísicas, as coisas até poderiam ser de outra maneira. No entanto, não cabe a nós discutir com o Altíssimo sobre a melhor maneira de estabelecer a ordem do Universo: sim, as coisas poderiam ser de outro modo, mas o fato é que elas são assim, e a nós não compete senão reconhecê-lo, a fim de agimos conforme o que as coisas são e não o que poderiam ser.)

É este o fundamento da intercessão dos santos, é isto que justifica o múnus santificador da Igreja encarnada, é à luz dessa verdade que fazem sentido as palavras de Nossa Senhora em Fátima: “Muitas almas vão para o inferno por não haver quem se sacrifique e reze por elas”. Sim, Deus poderia fazer sozinho todas as coisas; não o quis, no entanto, preferindo em tudo depender da liberdade de suas criaturas.

Ocorre que Lutero não entende nada disso. Para Ele Deus faz tudo sozinho e o homem está sozinho diante de Deus, nem existe cooperação do homem com a graça divina e nem existem intermediários na relação do homem com Deus. O heresiarca simplesmente não compreende que Deus possa querer redimir os homens à força das boas obras de outros homens. Veja-se, para o ilustrar, esta reveladora passagem das 95 teses:

82. Por exemplo: por que o papa não evacua o purgatório por causa do santíssimo amor e da extrema necessidade das almas – o que seria a mais justa de todas as causas -, se redime um número infinito de almas por causa do funestíssimo dinheiro para a construção da basílica – que é uma causa tão insignificante?

Ora, a resposta a isso é bastante óbvia. Deus não esvazia o Purgatório sozinho pela exata mesma razão que Ele não salva sozinho as almas: porque Ele quer que os homens cooperem com a salvação uns dos outros. O dinheiro, em si, não tem nenhuma relevância nesta questão, o que está em jogo é a boa obra alheia. Esta pode ser uma obra indulgenciada (como, no caso do séc. XVI, era o auxílio material para a construção da Basílica de São Pedro) como pode ser qualquer outra coisa, uma oração ardente, uma tribulação suportada com paciência, um copo de água dado a um pobre, um ponto de costura dado na roupa: se por amor de Deus, se ordenada, é meritória e tem valor salvífico para nós e para o nosso próximo.

Veja-se, o problema de Lutero não é com o dinheiro. É com a “intromissão” de um terceiro na relação entre a alma e Deus. Não é que o monge atormentado achasse que o dinheiro era uma coisa suja ou que havia muita corrupção no clero da sua época, o que Lutero não aceitava era que alguém pudesse ser salvo graças a uma boa ação de uma outra pessoa. O que Lutero achava era que as pessoas deviam se salvar sozinhas. Um dos «erros de Martinho Lutero» condenados na Exsurge Domine é o seguinte:

As almas libertas do purgatório pelos sufrágios dos vivos são menos felizes do que se elas prestassem satisfação por elas mesm[as].

Não era, portanto, pelo dinheiro. Era pela noção de “boa obra”, cujo valor sobrenatural Lutero não admitia. Era por conta dos «sufrágios dos vivos» que, na concepção tortuosa de Martinho Lutero, apequenavam os mortos que os recebiam. Era, em suma, por conta do extremo individualismo do monge alemão, incapaz de aceitar que somente as mãos estendidas de outros homens (todos pecadores) poderiam resgatá-lo da danação eterna. Alegando ter acesso direto a Deus, o que Lutero desprezava era o auxílio dos seus irmãos; sob a rejeição da intercessão dos santos estava o orgulho de pretender se salvar sozinho.

Extremada loucura. É exatamente assim que acontece com todos nós: somos levados ao Céu graças somente ao trabalho incessante de uma miríade de pessoas desconhecidas, cujas orações e sacrifícios, cujas boas obras, cujos méritos aproveitam a nós e se não fosse por eles nós sem dúvidas pereceríamos miseravelmente. Esta é a realidade que Cristo nos revelou e Lutero não quis aceitar. Esta é a Fé Cristã, à qual o pai do Protestantismo tão desgraçadamente deu as costas — arrastando séculos afora uma multidão de almas à perdição atrás de si.

O Magistério não favorece heresias

Foi tornada pública no último sábado uma Correctio Filialis De Haeresibus Propagatis «assinada por 40 clérigos católicos e acadêmicos leigos» e endereçada ao Santo Padre. Os signatários da carta pretendem encontrar um “favorecimento” a sete heresias — no documento discriminadas — tanto na Amoris Laetitia quanto nas subsequentes palavras, atos e omissões do Papa Francisco.

A estrutura do documento, basicamente, é a seguinte: primeiro são listadas as passagens problemáticas da Exortação Apostólica (pp. 3-5); depois são elencadas as palavras, atos e omissões do Papa que «estão servindo para propagar heresias dentro da Igreja» (pp. 5-8). Em seguida as sete proposições errôneas são apresentadas (pp. 8-9). Finalmente, tenta-se explicar essas heresias como possuindo duas fontes: o Modernismo (pp. 10-13) e a teologia de Lutero (pp. 13-18). Este o documento. O que dizer dele?

Antes de qualquer outra coisa, o que causa mais estranheza é a ausência dos nomes dos cardeais das dubia entre os signatários da tal Correctio. O Cardeal Burke já há meses vinha dizendo que seria necessário fazer uma correção formal ao Papa Francisco; vindo a lume agora esta carta, e nela não constando o nome do Card. Burke, nem aliás de nenhum outro cardeal, nós ficamos sem saber ao certo se este documento é ou não é a correção formal anteriormente anunciada. Parece que não.

E ainda, a carta parece que não tem o peso que deveria ter. O próprio Rorate Caeli afirmou que muitos estão diminuindo o alcance da iniciativa, embora insista em afirmar que ela é apenas a primeira peça do quebra-cabeças e que muito ainda esteja por vir. O Papa Francisco, ao que parece, simplesmente bloqueou o acesso ao site a partir dos computadores do Vaticano. As primeiras reações ao documento não tiveram o alcance desejado — o que é muito de se lamentar. Porque, embora a carta meta os pés pelas mãos ao acusar publicamente o Magistério da Igreja de favorecer heresias (!), tem pontos positivos que merecem atenção e cuidado.

As sete proposições listadas na Correctio são, de fato, proposições errôneas (com talvez a exceção da quarta cujo sentido eu não consegui captar muito bem — mas se deixe isso de lado por ora), e elas estão de fato sendo propagadas no interior da Igreja, e é urgente que isso cesse. A salvação das almas assim o exige. Diante disso, muito mais correto do que apontar o dedo para o Vigário de Cristo, assim — muito mais importante do que sair à busca de culpados –, é reconhecer a existência do problema e lutar para que ele seja corrigido. Isso é o que é fundamental.

Sim, a carta acerta ao dizer que os inimigos de Cristo estão propagando heresias dentro da Igreja (e, verdade se diga, com um descaramento talvez inaudito), e, sim, é notório que eles o fazem pinçando trechos dos documentos do Magistério e se valendo das alegadas intenções progressistas do Papa Francisco. Só isso já é motivo mais do que suficiente para pôr os católicos em guarda, sem que seja necessário enveredar pelo tortuoso caminho de perscrutar as intenções do Soberano Pontífice ou acusar o Cristo-na-Terra de beneficiar heresias.

Porque a estratégia adotada pela Correctio pode muito bem ter o efeito contrário ao esperado. Note-se: se um grupo de pessoas está dizendo que o Magistério da Igreja defende as heresias ‘a’, ‘b’ e ‘c’, alguém pode perfeitamente concluir que, dado que o Magistério não ensina heresias, então as proposições ‘a’, ‘b’ e ‘c’ não são heréticas. E, de repente, aqueles que tentavam combater doutrinas errôneas terminam por chancelá-las com o mais alto grau de confiabilidade ao dizerem que elas são ensinadas pelo Magistério Católico. Um verdadeiro tiro pela culatra de consequências trágicas: pessoas normais, que não acreditariam jamais nestas heresias, podem cogitar levá-las a sério se se convencerem de que elas constam dos documentos da Santa Igreja.

Não nos enganemos: a forma mais eficaz de conferir respeitabilidade, por exemplo, a idéia de que «[u]m fiel católico pode ter pleno conhecimento de uma lei divina e voluntariamente escolher violá-la, mas não estar em estado de pecado mortal como resultado desse ato» (proposição 3 da Correctio) é dizer que tal idéia encontra amparo no Magistério da Igreja Católica e nos ensinamentos do Soberano Pontífice. A maneira mais fácil de fazer as pessoas acreditarem nisso é dizendo ser este o ensinamento do Papa e da Igreja! Mas, ora, o Magistério não favorece heresias: estas proposições, portanto, se verdadeiramente heréticas, não se fundamentam realmente nos documentos eclesiásticos: fazem-no apenas falsamente.

Acerta, portanto, a Correctio em apontar proposições heréticas disseminadas na Igreja. Erra em fazê-las derivar do Magistério Católico. É justamente porque as proposições apontadas são errôneas que elas não decorrem do Magistério eclesiástico, que não pode disseminar o erro; e isso é tão forte que, se tais proposições estivessem realmente fundamentadas em documentos magisteriais, seria legítimo antes questionar a própria heterodoxia delas que a ortodoxia do Papa — aliás, mais que legítimo!, seria a coisa mais óbvia a ser feita.

Mas as proposições apontadas na carta são realmente errôneas. Por serem errôneas, não estão presentes no Magistério da Igreja, antes o contrariam. E, por serem errôneas e contrariarem o Magistério, devem ser combatidas com tanto mais veemência quanto mais aleivosamente se afirmarem baseadas em documentos pontifícios. Esta é a apologia de que a Igreja precisa.

O homem e a mulher que se amam: esta é a obra-prima!

A história de que o Papa Francisco teria chamado uma dupla gay de “família” foi explorada ad nauseam nos últimos dias pela militância LGBT. Aconteceu que o sr. Toni Reis, conhecido militante homossexual, enviou uma carta para o Papa dando notícia, segundo ele, da sua satisfação por ter logrado batizar na Igreja os seus filhos adotivos — coisa que lhe foi muito difícil conseguir por conta da união homossexual em que ele vive publicamente. O Vaticano enviou uma resposta educada à carta. Por conta disso os meios de comunicação se apressaram a alardear que o Papa Francisco teria afirmado que o “casal gay” é também uma forma de família.

Ora, a notícia se trata, à toda evidência, de uma falsa matéria, sem absolutamente nenhum fundamento. Afinal de contas, a carta recebida pela dupla curitibana

a) não é assinada pelo Papa Francisco pessoalmente, mas sim por um secretário do Vaticano;

b) não traz o nome do destinatário, muito menos do seu “companheiro”, nem nenhuma outra informação que permita concluir, ainda que indiretamente, ter sido enviada especificamente para uma dupla gay; e

c) é um modelo-padrão que o Vaticano utiliza para responder às cartas recebidas — certamente às centenas ou mesmo milhares — pelo Santo Padre todos os dias.

Ou seja, de nenhuma maneira é possível inferir que o Papa tenha querido, nem mesmo indiretamente, estabelecer qualquer relação de similaridade entre a família — a sagrada união entre o homem e a mulher — e as uniões homossexuais — o pecado da sodomia institucionalizado em uma caricatura matrimonial. Neste caso não se trata nem mesmo de uma frase descontextualizada ou uma declaração mal-interpretada, nada disso: foi apenas uma lamentável falta de cuidado do setor vaticano responsável por cuidar da correspondência do Santo Padre. Não chega sequer a ser uma notícia distorcida; é uma não-notícia.

O assunto ganhou tanta repercussão que recebeu importantes desmentidos. O próprio Arcebispo de Curitiba — que, segundo a matéria do Congresso em Foco, foi precisamente quem providenciou o batizado das crianças — publicou uma nota no site da Arquidiocese onde desautoriza a forma como o assunto vem sendo explorado:

Não se trata (…) de uma aprovação à união estável do casal (rectius, dupla) em causa. Tampouco se tratou de permissão. Trata-se de uma simples resposta cordial a um gesto também cordial. Deve ser interpretada, portanto, com o tamanho e a importância que realmente tem.

E até mesmo a Sala de Imprensa da Santa Sé sentiu necessidade de prestar esclarecimentos:

“Em relação à carta assinada pelo Monsenhor Assessor da Secretaria de Estado, reitero que a afirmação do senhor Toni Reis de que se trata de uma resposta ao casal é falso. A carta estava dirigida apenas a ele (‘Prezado Senhor’)”, indica García Ovejero.

Vivemos em tempos estranhos, nos quais as pessoas pensam poder colocar um Papa contra outro Papa e atribuir, ao Soberano Pontífice reinante, posições em assuntos de Fé e Moral que contrariem aquilo que a Igreja sempre ensinou e o mundo moderno escolheu rejeitar. É por isso que divulgam coisas como essa: incapazes de vencer no campo doutrinário, porfiam por enganar os incautos no campo das narrativas. Mas o caso atual é particularmente esquizofrênico porque o Papa Francisco já se posicionou, por diversas vezes, e inclusive solenemente, contra o movimento homossexual.

Durante o ano de 2015 o Papa reservou a maior parte das Audiências Gerais das quartas-feiras para tratar do tema da família, de janeiro até setembro.

Desde o dia de Santa Inês:

Reevocando a figura de são José, que protegeu a vida do «Santo Niño», tão venerado naquele país, recordei que é preciso proteger as famílias, que enfrentam diversas ameaças, para que possam testemunhar a beleza da família no projecto de Deus.

É preciso também defender as famílias das novas colonizações ideológicas, que ameaçam a sua identidade e a sua missão.

Até a festa de São Cornélio, Papa:

Caminhemos juntos com esta bênção e com esta finalidade de Deus, de nos tornarmos todos irmãos na vida, num mundo que caminha em frente e que nasce precisamente da família, da união entre o homem e a mulher.

O Papa Francisco sempre falou da família nos seus elementos constituintes: o homem, a mulher e, consequentemente, os filhos. Ora, insistindo na diversidade dos sexos e na fecundidade conjugal, não há espaço absolutamente nenhum para afirmar que o Papa não tenha sempre diante dos olhos a figura sagrada da união entre o homem e a mulher; ou que não entenda a importância fundamental, insubstituível, dessa união; ou que não a queira promover e defender em face do mundo moderno! Veja-se, por todas, esta elegia rasgada da complementaridade dos sexos para a formação da família:

Isto faz-nos recordar o livro do Génesis, quando Deus conclui a obra de criação e faz a sua obra-prima; a sua obra-prima é o homem e a mulher. E aqui Jesus começa os seus milagres, precisamente com esta obra-prima, num casamento, numa festa de núpcias: um homem e uma mulher. Assim, ensina que a obra-prima da sociedade é a família: o homem e a mulher que se amam. Esta é a obra-prima!

Contra esta tríplice afirmação acerca do «desígnio originário de Deus sobre o casal homem-mulher», de que valem divulgações maliciosas de mensagens vaticanas mal-encaminhadas por estafetas atrapalhados?

Mais ainda. Como se isso não fosse o bastante, o assunto foi especificamente tratado na Amoris Laetitia (aquela mesma que acusam de progressista):

251. No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, os Padres sinodais anotaram, quanto aos projetos de equiparação ao matrimónio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família. É «inaceitável que as Igrejas locais sofram pressões nesta matéria e que os organismos internacionais condicionem a ajuda financeira aos países pobres à introdução de leis que instituam o “matrimónio” entre pessoas do mesmo sexo».

Repise-se: para o Papa Francisco, em um documento oficial sobre o amor na família, não é possível estabelecer analogias, sequer remotas!, entre as uniões homossexuais e o matrimônio e a família. Como seria possível, então, que Sua Santidade se desdissesse de repente? Teria acaso se comovido — até à apostasia — com a carta de Toni Reis? A história dos gays de Curitiba teria provocado tanto impacto sobre o Papa a ponto de ele decidir — sem fazer alarde, sem se explicar, sem nada, em uma carta, igual a mil outras, assinada por um secretário desconhecido — mudar a posição que vem consistentemente sustentando durante todo o seu pontificado?

É isso? Ou é que a história da mídia gay não tem pé nem cabeça?

A recuada do anúncio do mal

É sintomático que o bispo de Caicó tenha publicado uma “nota de esclarecimento” para dizer que foi mal compreendido nas suas alegações (francamente escandalosas) a respeito do homossexualismo. Ora, o que está na nota não é, absolutamente, o que se divulgou na mídia e provocou escândalo. Na festa de encerramento de Santana Dom Antônio teve o desplante de chamar o homossexualismo de “dom de Deus” (!). Na nota da Diocese Sua Excelência simplesmente afirma que quer «salvar vidas» e «superar os preconceitos que matam».

É bastante evidente que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Todo mundo sabe que os homossexuais são chamados à castidade (Catecismo, 2359) como os irascíveis são chamados ao autodomínio e, os glutões, ao controle do apetite. Se Dom Antônio tivesse simplesmente afirmado isso tal não provocaria, é evidente, celeuma alguma. O que provocou a (justa) ira dos católicos foi Sua Excelência ter chamado uma desordem objetiva de “dom de Deus”.

Ora, uma desordem não é nunca um dom. Uma disfunção da libido não é um “dom”, assim como não é um dom um câncer ou uma inclinação particularmente intensa para, digamos, a preguiça. Como Dom Antônio afirmou — com aliás muita propriedade — na sua nota de esclarecimento, o que realmente importa é a forma como se vive, dadas as condições que se possui. Uma pessoa pode perfeitamente possuir «tendências homossexuais profundamente radicadas» e ser muito santa, bastando para isso que ela lute — com coragem e determinação! — contra essas más tendências. Da mesma forma uma pessoa pode ter uma inclinação muito forte para a mentira e, ainda assim, santificar-se intensamente, bastando para isso lutar a cada dia por não mentir.

O que não tem sentido é dizer que o homossexualismo é um dom, como se o pecado — i.e., a prática de relações sexuais contra a natureza — tivesse alguma coisa de virtuoso que não fosse precisamente a luta para o evitar. O pecado é sempre uma escolha e é sempre uma coisa horrível, que ofende a Deus e que conduz as almas à perdição. Nenhuma pastoral verdadeira pode perder isso de vista, porque o objetivo de toda pastoral é levar as almas à salvação e sem uma vida moral reta é impossível se salvar. O aspecto “pastoral” do Catolicismo diz respeito simplesmente ao modo de transmitir aquilo que deve ser transmitido: não é, de maneira alguma!, algo de paralelo e nem muito menos de contrário ao seu aspecto doutrinário.

Toda Doutrina existe para ser transmitida a homens concretos — e por isso precisa da pastoral; e toda pastoral existe para que se transmita a Doutrina. Não existe oposição entre uma coisa e outra. Uma doutrina que não pudesse ser transmitida não seria verdadeiramente Doutrina Cristã; do mesmo modo, uma pastoral que não transmitisse a Doutrina Sagrada seria antes atitude de lobos que de pastores legítimos.

Mas a nota da Diocese de Caicó é sintomática justamente porque não entra no mérito daquilo que provocou o escândalo: não diz nada sobre o homossexualismo ser dom de Deus, silencia completamente a respeito da conotação positiva (laudatória até!) que o bispo emprestou à triste condição dos que vivem na prática dos mais nefandos pecados contra a natureza. É como se Dom Antônio não quisesse se desdizer mas, ao mesmo tempo, não pudesse continuar sustentando o horror que proferiu naquele domingo: é como se a indignação dos fiéis católicos tivesse feito o sucessor dos Apóstolos se envergonhar — se não o suficiente para uma retratação, ao menos o bastante para que sentisse a necessidade de tergiversar e mudar de assunto.

A nota não retifica a afirmação espúria e ímpia; mas tampouco a repete, tampouco a corrobora. Se o bispo não teve a humildade de se retratar, também não teve a pachorra de insistir no erro — o que não deixa de ser algo de positivo. Sim, o ideal seria, sem dúvidas, que os pastores tivessem a coragem de anunciar com clareza e destemor a Sã Doutrina da Salvação. Mas que eles sejam forçados e constrangidos a recuar na apologia do mal é já uma preciosa vitória nesses tempos sombrios em que vivemos.

A condenação de Lula e a de Cristo

A foto abaixo tornou-se viral na semana passada; não sei exatamente em que contexto ela foi tirada (pelo que li nas redes sociais, teria sido uma manifestação da CUT da qual participou o frei Aloísio Fragoso — isso contudo pouco importa), mas ela se presta bem para falarmos um pouco sobre o que há de errado com determinada visão religiosa contemporânea. Para representá-la, essa imagem é de uma preciosidade ímpar.

A primeira coisa errada nesta foto é a forte conotação político-partidária que ela apresenta. A política, no sentido clássico, da arte relacionada ao cuidado das coisas públicas — da polis, da cidade — é uma coisa conatural ao ser humano: viver em sociedade é, sempre e necessariamente, de algum modo fazer política. Mas não é este o sentido corrente do termo, e (principalmente!) não é este o sentido que se depreende de uma imagem onde se protesta contra uma decisão judicial que condenou um ex-presidente por corrupção e lavagem de dinheiro. O sr. Luís Inácio, ali, não está retratado como um cidadão esmagado sob a tirania estatal: é um líder político a cuja defesa o manifestante empresta o próprio nome, a honra, tudo.

Ora, isso não tem nada a ver com religião e além disso: a religião é tanto mais importante quanto mais consegue fazer as pessoas perceberem a mesquinharia dessas lutas conjunturais pelo poder terreno. A frase da coroação dos papas — sic transit gloria mundi — tem muito a ensinar tanto aos que assumem poderes temporais (os Papas, lembremo-nos, governavam os Estados Pontifícios) como também àqueles que se sujeitam aos poderes constituídos: todas essas coisas passam e, portanto, não vale a pena dedicar-lhes a própria vida com este devotamento religioso tão comum de se encontrar no Brasil de hoje em dia. É saudável manter uma relativa distância das disputas político-partidárias. Quem não o faz corre o risco de passar vexame.

A segunda coisa terrivelmente errada com a imagem é a blasfêmia grosseira em que consiste a comparação. Nosso Senhor Jesus Cristo era verdadeira e propriamente um inocente, no sentido mais próprio, ontológico em que se pode afirmar a inocência de alguém. Ele era a própria Inocência encarnada e pendurada em um madeiro. Ora, quem, por cândido e puro que seja, pode se afirmar inocente assim? Quem ousaria se comparar ao Filho de Deus?

Uma pessoa realmente inocente se sentiria aliás ofendida com a comparação. Algum místico espanhol (Santa Teresa? São João da Cruz? Agora não me recordo…) certa feita estava sendo terrivelmente caluniado. Perguntaram-lhe se eram verdadeiras aquelas coisas. O santo respondeu algo como: “meu filho, essas coisas que estão falando de mim são tudo mentira. No entanto, eu já fiz tantas coisas horríveis e das quais ninguém ficou sabendo que tomo umas pelas outras e ainda saio no lucro”.

Com certeza os nossos tribunais estão repletos de sentenças injustas, e com certezas há inocentes injustamente condenados. Mas o máximo que se pode dizer de qualquer ser humano é que ele seja inocente do crime pelo qual foi condenado. Assumamos, unicamente para argumentar, que o sr. Luís Inácio não tenha realmente nada a ver com o Triplex do Guarujá. Isso o faria inocente, sim, mas de uma inocência por assim dizer relativa: ele seria inocente de ter recebido propina de um construtora. Este é o máximo de inocência a que ele pode aspirar. Aliás, este é o máximo de inocência a que qualquer ser humano pode aspirar.

Coisa completamente diferente é o caso de Cristo — e espanta que um líder religioso não perceba esta coisa tão básica! Ora, Nosso Senhor não era somente inocente da acusação de blasfêmia que os judeus Lhe lançaram: Ele era inocente completamente, inocente simpliciter, inocente de toda e qualquer culpa porque Ele jamais cometeu pecado algum. Não dá, simplesmente não dá para comparar Nosso Senhor nem mesmo com a vítima da maior injustiça que Thêmis tenha algum dia sido capaz de cometer.

A terceira coisa errada, terrivelmente errada com a imagem é a figura nela retratada. Admitir-se-ia, vá lá, mesmo com a impropriedade da comparação, que Cristo Crucificado fosse comparado com a inocência de uma criança covardemente assassinada. Agora compará-Lo logo com o senhor Luís Inácio…! Ninguém em sã consciência acredita de verdade na inocência do ex-presidente. O máximo a que consegue chegar a militância minimamente pensante é dizer que ele foi condenado sem provas. Ora, qualquer pessoa que tenha uma compreensão ainda que rudimentar de como funciona a justiça sabe que uma coisa é não haver provas e outra, completamente diferente, é o acusado ser inocente. Provas por provas, também não as há de que o goleiro Bruno tenha assassinado Eliza Samudio. Alguém cogitaria retratá-lo de coroa de espinhos na cabeça e protestar contra tão aviltante reencenação do Pretório de Pilatos? Tal não seria profundamente ridículo? E quão ridículo não é o presente protesto, onde as imagens de Cristo e de Lula são colocadas juntas em uma cruz no meio da rua?

A respeito de Cristo não se pode simplesmente dizer que os judeus não se desincumbiram do ônus de provar a sua acusação; no Gólgota a questão era verdadeiramente fática, constitutiva, substancial — não era uma reles questão procedimental! Transformar a Paixão em uma “condenação sem provas” é de um reducionismo tacanho, verdadeiramente inimaginável em épocas mais civilizadas. Os dias atuais, no entanto, sempre surpreendem em matéria de estupidez.

Os inimigos da Igreja gostam de dizer que a religião aliena, e a frase segundo a qual ela seria o ópio do povo tem cada vez mais se tornado um lugar-comum entre as classes soi-disant pensantes. O que se percebe, no entanto, no dia a dia, é justamente o contrário: não é a Cidade de Deus quem aliena, mas sim a Cidade dos Homens. O que torna o homem alheio à realidade a seu redor não é a religião e sim a ideologia política. A triste cena que ilustre este artigo dá, disso, uma demonstração perturbadora.

Clássicos católicos para o Kindle: Lúcio Navarro e Tanquerey

A quem interessar possa, a Amazon está vendendo, em formato Kindle, dois livros excelentes em português. Cliquem nas capas para os obter.

Legítima Interpretação da Bíblia, de Lúcio Navarro. Obra seminal da apologética contra o protestantismo, durante muitos anos esteve fora de edição; lembro-me inclusive de que há alguns anos um grupo de católicos daqui de Recife dividiu entre si as xerox dos capítulos do livro para que ele pudesse ser transcrito e reeditado — um trabalho colaborativo muito tempo antes de existir o crowdfunding. A obra é verdadeiramente clássica e vale muito a pena para conhecer mais a fundo a doutrina católica extraída das Escrituras — e como a interpretação dos protestantes é totalmente insustentável diante da Bíblia que eles próprios têm por sagrada.

Compêndio de Teologia Ascética e Mística, de Tanquerey. Outro clássico da vida espiritual, cuja única tradução comercial para o português, até onde eu conhecia, era a da Permanência que hoje, salvo engano, encontra-se esgotada. Eu costumo ter medo de “novas traduções atualizadas”, mas este compêndio possui uma autoridade multissecular — difícil, quero crer, de ser obscurecida por eventuais problemas de tradução. De qualquer modo o produto está bem avaliado no site da Amazon, e não encontrei críticas ao trabalho do Dalton César Zimmermann. Quem quiser comparar com uma edição tradicional pode baixar a do pe. João Ferreira Fontes aqui.

E se você ainda não tem um Kindle, ele está em promoção na Amazon; considere adquirir. Vale muito a pena.

A apatia dos católicos clama aos Céus vingança

As redes sociais divulgaram recentemente um vídeo, ao que parece feito em uma paróquia de Fortaleza, durante uma Missa, onde se vê um homem entrar na fila de comunhão, pegar a Eucaristia, jogá-La no chão e A pisotear. Muitas pessoas apontaram corretamente aquilo que é mais grave nas imagens: mais do que a profanação cometida pelo demônio em forma de velho, o que verdadeiramente choca e estarrece é a completa indiferença com a qual todos os presentes parecem encarar a situação.

Não se vê ninguém tomado da justa indignação que uma situação dessas exigiria. Não se vê ninguém procurando impedir o velho — visivelmente alterado — de entrar na fila da comunhão em primeiro lugar; não se vê ninguém reagindo quando ele, teatralmente, de forma macabra, cospe a sagrada partícula no chão. Não se vê ninguém esboçando a mais mínima reação quando ele dá as costas e vai embora — lançando imprecações inaudíveis no vídeo, imagino eu. E, mais assustador, não se vê a menor perturbação no processo maquinal de continuar distribuindo a Sagrada Eucaristia. O sacerdote permanece impassível enquanto a “ministra” tenta, sem sucesso, administrar a comunhão diretamente na boca do velho possesso; depois da profanação consumada, o padre desce do altar com vagar e normalidade. Limpa o chão por alguns instantes. Após, retorna, e a distribuição da Eucaristia prossegue como se nada houvesse acontecido.

São imagens verdadeiramente angustiantes, diante das quais é imperioso lembrar dois “pequenos” pontos. Primeiro: com a consagração do Pão e do Vinho, durante a Santa Missa, ocorre o fenômeno da transubstanciação, por virtude do qual as espécies consagradas não são mais pão e vinho, mas se tornam, real e substancialmente, o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em cada minúscula partícula da Eucaristia está presente Cristo inteiro, com Seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade. Ou seja, o que está ali, jogado no chão, pisoteado e cuspido, é literalmente o Deus Todo-Poderoso, o Criador dos Céus e da Terra.

Não se trata de um símbolo nem de uma metáfora, não é força de expressão. É exatamente isto: aquele pedaço de pão é Deus. Seria já uma coisa grave, por exemplo, alguém pegar um objeto do culto católico — uma imagem, um crucifixo — e o deitar no chão; seria ofensivo e provocaria por si só um enorme mal-estar. Imagine-se alguém que entrasse na igreja revirando os bancos, quebrando as imagens dos santos, arrancando as toalhas do altar, chutando as velas e as flores: ofenderia a sensibilidade católica, sem dúvidas, e seria muito improvável que os fiéis permanecessem inertes diante de semelhante espetáculo iconoclasta.

O que se fez, no entanto, foi muito pior. Foi infinitamente pior. O demônio se voltou não contra um objeto dedicado ao culto de Deus, mas contra o próprio Deus. Ele não vilipendiou o templo, as imagens sacras ou os paramentos: foi muito além e jogou ao chão Aquele para cujo culto os paramentos foram tecidos, cuspiu n’Aquele para cuja glória as imagens sacras foram confeccionadas, pisou sobre Aquele para cuja honra o templo foi edificado. Não à toa existe uma excomunhão latae sententiae específica para quem profana a Santíssima Eucaristia: quem destrói as igrejas volta-se indiretamente contra Deus, mas quem profana as Sagradas Espécies ofende direta e substancialmente a Deus em Si mesmo.

E isso nos leva ao segundo ponto: há algo de muito, muito errado na nossa catequese. Quando os católicos ficam indiferentes diante de alguém que pisa e cospe na Eucaristia no meio de uma Missa é preciso reconhecer que estamos diante de um problema pastoral muito sério — e é legítimo até nos perguntarmos se ainda se crê realmente na presença real e substancial de Nosso Senhor sob o pão e o vinho consagrados.

Porque, afinal de contas, as nossas ações são um reflexo das nossas convicções. Quem acredita que somente Deus é digno de adoração não toma parte na incensação do Caesar ainda que ameaçado com o Amphitheatrum Flavium. Quem segue a lei de Moisés guarda o repouso sabático ainda sob a vigilância dos familiares do Santo Ofício. Quem acha errado matar animais para se alimentar não come nem jujuba depois que descobre que elas são feitas de pele de porco. Ora, se tudo isso é assim, como é possível que alguém que acredite na Presença Real possa agir com indiferença diante de uma profanação eucarística gravíssima como a que é mostrada no vídeo?

As reações mostradas na filmagem não são condizentes com pessoas que sabem que a Eucaristia é — não “simboliza”, não “representa”, mas verdadeiramente é — o próprio Deus. Não tem cabimento as pessoas, sabendo que a comunhão eucarística deve ser recebida com a dignidade que convém ao Todo-Poderoso, não se incomodarem com um sujeito sem camisa tumultuando a fila de comunhão. Não tem lógica a pessoa saber que está diante de Nosso Senhor e continuar agindo normalmente quando Ele é jogado no chão. Se fosse um animal o agredido pelo velho — se ele chutasse um cão sarnento, digamos — a reação dos circunstantes seria (muito!) mais enérgica. Como, então, ele cospe em Deus e ninguém faz nada?

A profanação ofende, sem dúvidas, mas os inimigos de Deus existirão sempre: é de se esperar que os incréus persigam a Religião, que os ímpios se levantem contra as coisas santas. Que os inimigos de Deus O ofendam não é algo propriamente espantoso: o que é de pasmar é que os pretensos amigos de Deus não façam nada! A apatia dos católicos clama aos Céus vingança mais alto que a profanação do velho endemoniado. Se nem os próprios católicos preocupam-se em respeitar as coisas sagradas, como é possível esperar que as respeitem os inimigos de Deus?