Não obrigamos ninguém a se converter à nossa doutrina

[O excerto abaixo é do século XIII, e contém uma história de que os frades dominicanos provavelmente se utilizaram vezes sem conta em suas pregações públicas, pelas ruas e praças medievais, diante do povo comum. São alguns episódios da vida do Apóstolo São Tiago, o Maior, que, tendo ficado de fora das páginas canônicas das Escrituras Sagradas, foram recolhidos e compilados pela piedade cristã. A leitura é bastante agradável e edificante. Dentre outras coisas, chamo atenção para alguns detalhes: i) a afirmação de que S. Tiago pregou na Espanha enquanto era vivo, tendo obtido lá bem pouco fruto — o que impressiona, dada a devoção espanhola a Santiago que persiste até os nossos dias; ii) o tema, recorrente, do perseguidor que se converte em contato com o santo — mais com o seu exemplo do que com a sua pregação! –, primeiro o mago Hermógenes, depois o judeu Josias; iii) a instrutiva questão demonológica, onde os demônios podem exercer poder sobre os corpos tanto dos conversos (Fileto) como dos pagãos (Hermógenes), sendo contudo impotentes diante dos santos de Deus.

Chama também atenção a afirmação, singela, bruta, direta, que foge totalmente ao lugar-comum que se tem atualmente sobre a Idade Média, daquela verdade fundamental do Cristianismo: os cristãos “não obrigamos ninguém a se converter à nossa doutrina”. Isso está estampado com todas essas letras em um texto medieval da mais alta popularidade, e deveria nos levar a, no mínimo, questionar a alegada “intolerância” cristã da tal “Idade das Trevas” que os detratores do Cristianismo gostam tanto de alardear.]

I. O apóstolo Tiago, filho de Zebedeu, depois da ascensão do Senhor pregou na Judéia e em Samaria e foi para a Espanha onde semeou a palavra de Deus. Mas vendo que não tinha êxito e só havia ganho nove discípulos, deixou ali dois deles para pregar e com os outros sete voltou para a Judéia. O mestre João Beleth diz que Tiago converteu na Espanha somente uma pessoa.

Já de volta à Judéia, enquanto Tiago pregava a palavra de Deus, um mago chamado Hermógenes fez acordo com os fariseus e mandou seu discípulo Fileto encontrar o apóstolo para que, frente a frente com ele, convencesse os judeus de que sua pregação era falsa. Mas como diante de todos, o apóstolo racionalmente o convenceu e realizou muitos milagres, Fileto voltou até Hermógenes aprovando a doutrina de Tiago, contando os milagres que vira e tentando persuadi-lo a também se tornar discípulo. Irado, Hermógenes recorreu então à sua arte mágica para imobilizar Fileto, que não conseguiu se mover de forma alguma, e disse: “Veremos se Tiago pode soltá-lo”. Fileto encarregou um criado de contar a Tiago o que havia ocorrido. Este deu ao criado seu lenço dizendo: “Que ele pegue este lenço e diga ‘o Senhor levanta os oprimidos e livra os que estão atados’”. Logo que Fileto tocou o lenço, os vínculos das artes mágicas de Hermógenes foram rompidos. Fileto insultou Hermógenes e foi à procura de Tiago.

Cheio de raiva, Hermógenes passou a invocar demônios para que trouxessem Tiago e Fileto amarrados, porque queria vingar-se deles para que seus outros discípulos, sabendo o que ocorrera, não o insultassem. Os demônios vieram e dirigiram-se a Tiago vociferando pelo ar: “Tiago apóstolo, tem compaixão de nós, pois ainda não chegou nosso tempo e já estamos ardendo”. Tiago perguntou: “Por que vieram?”. Eles responderam: “Hermógenes nos enviou para que levemos você e Fileto até ele, mas assim que viemos para cá um anjo de Deus nos amarrou com correntes de fogo que nos atormentam enormemente”. Tiago: “Que os anjos do Senhor os soltem. Voltem para Hermógenes e tragam-no até mim amarrado, porém ileso”. Os demônios partiram, apoderaram-se de Hermógenes e amarraram suas mãos às costas, dizendo: “Você nos mandou a um lugar no qual fomos queimados”.

Depois o levaram atado até Tiago, a quem pediram: “Dê-nos poder sobre este homem para que possamos nos vingar por tê-lo ofendido e provocado assim nossas queimaduras”. Tiago: “Fileto está diante de vocês, por que não o prendem?” Eles: “Não temos poder para sequer tocar em uma formiga que esteja em seu aposento”. Tiago dirigiu-se a Fileto: “Conforme o ensinamento de Cristo, vamos retribuir o mal com o bem. Hermógenes prendeu-o, agora o solto”. Isso aconteceu, deixando Hermógenes confuso. Tiago olhou-o e disse: “Vá, você está livre para ir aonde quiser, não obrigamos ninguém a se converter à nossa doutrina”. Hermógenes disse: “Conheço a ira dos demônios, e se você não me der algo que possa levar comigo, eles me matarão”. Tiago deu seu báculo, Hermógenes foi buscar seus livros de artes mágicas e entregou-os para que fossem queimados. Mas Tiago, temendo que o forte odor da fogueira molestasse os desprevenidos, ordenou que os livros fossem jogados ao mar. Depois de fazê-lo, Hermógenes voltou para junto do apóstolo e prostrando-se a seus pés disse: “Libertador de almas, acolhe este arrependido que até agora o difamou, levado pela inveja”. Ele passou a se destacar no temor de Deus e a realizar muitas boas obras.

Vendo os judeus que Hermógenes havia sido convertido pelo zelo de Tiago, passaram a repreendê-lo por pregar Jesus, o crucificado. Ele no entanto recorreu às Escrituras, mostrou nelas as evidências do advento e da paixão de Cristo e muitos passaram a crer. Abiatar, que era sumo sacerdote naquele ano, sublevou o povo, que se apoderou de Tiago, amarrou uma corda em seu pescoço e o conduziu até Herodes Agripa, que mandou degolá-lo. Quando o conduziam ao local de decapitação, um paralítico que jazia estendido no caminho pediu ao apóstolo que lhe concedesse saúde. Tiago disse: “Em nome de Jesus Cristo, por cuja Fé sou conduzido à decapitação, levante curado e bendiga ao seu Criador”, e imediatamente o paralítico se levantou curado e bendisse ao Senhor.

O escriba chamado Josias, que havia colocado a corda no pescoço de Tiago e a puxava, ao ver isso se jogou a seus pés e pediu que ele o recebesse como cristão. Vendo isso, Abiatar agarrou Josias: “Se não maldisser o nome de Cristo, farei que você seja degolado junto com Tiago”. Josias: “Maldigo-o e maldigo todos os seus dias. Bendito seja o nome do Senhor Jesus Cristo pelos séculos!”. Abiatar ordenou que o esbofeteassem e mandou um mensageiro a Herodes solicitando permissão para decapitá-lo com Tiago. Quando iam ser degolados, Tiago pediu ao carrasco uma botija com água com a qual batizou Josias. Imediatamente suas cabeças foram cortadas e o martírio deles consumado. A decapitação do bem-aventurado Tiago aconteceu no dia 25 de março, quer dizer, na data da anunciação do Senhor. Seu corpo foi trasladado a Compostela em 25 de julho, mas seu sepulcro ficou pronto apenas em janeiro. A Igreja determinou 25 de julho como a época mais conveniente para celebrar universalmente sua festa.

JACOPO DE VARAZZE.
Legenda Áurea: vidas de santos. Trad. Hilário Franco Júnior.
São Paulo : Companhia das Letras, 2003. PP. 562-564

São Francisco de Assis e o «lugar ricamente adornado» onde se deve conservar a Eucaristia

Muito interessante este texto que foi publicado no blog do Pe. Paulo Ricardo, do qual destaco a seguinte passagem:

Assim pensava São Francisco, o poverello de Assis. Ele passou toda a sua vida como um pobre entre os pobres, mas, quando falava de Jesus eucarístico, condenava o desprezo e o pouco caso com que muitos celebravam os santos mistérios. Em uma carta aos sacerdotes, Francisco pedia a eles que considerassem dentro de si “como são vis os cálices, os corporais e panos em que é sacrificado” muitas vezes nosso Senhor. E insistia: “Onde quer que o Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo for conservado de modo inconveniente ou simplesmente deixado em alguma parte, que o tirem dali para colocá-lo e encerrá-lo num lugar ricamente ordenado” [Carta 2 aos clérigos].

Eis aí o verdadeiro franciscanismo, expresso com clareza – e sem ideologias – nas palavras do próprio São Francisco de Assis. Que diferença entre isto e o mau gosto que tantas vezes vemos nos dias de hoje! Distorcendo a memória do grande santo, muitas pessoas hoje acham que para Deus “qualquer coisa” está bom – ou, pior ainda, que para Deus quanto menos “ostentação” melhor…

Aquela «Carta 2 aos clérigos» termina com palavras ainda mais duras. Depois de dizer que o mesmo cuidado se deve ter com o SSmo. Nome do Senhor escrito, termina São Francisco:

E sabemos que temos que observar todas essas coisas acima de tudo, de acordo com os preceitos do Senhor e as constituições da santa mãe Igreja. E quem não fizer isso, saiba que deverá prestar contas no dia do juízo (cfr. Mt 12,36) diante de nosso Senhor Jesus Cristo.

Os sedizentes seguidores de S. Francisco deveriam meditar com atenção nestas palavras! Deveriam procurar conhecer o verdadeiro São Francisco de Assis, e não as versões deturpadas dele que hoje circulam por aí. Se forem negligentes em cuidar das coisas de Deus – diz S. Francisco – prestarão contas no Dia do Juízo. A seriedade dessas palavras é muito grande para ser ignorada. Os verdadeiros ensinamentos franciscanos sobre a Sagrada Liturgia são muito católicos para os deixarmos ocultos sob o desastre litúrgico dos nossos dias, levado diligentemente a cabo por muitos “devotos” de São Francisco…

Não existe nenhuma contradição entre a pobreza dos cristãos – mormente dos ministros de Deus – e a riqueza dos templos sagrados. Quem o afirma com todas as letras é o próprio Esposo da Pobreza. Querem seguir São Francisco de Assis? Sigam-no integralmente, sem fazer revisionismo da sua história e sem assumir atitudes tresloucadas que o santo jamais aprovaria! Ou por acaso os modernos pretendem entender mais da pobreza evangélica do que o próprio poverello d’Assisi?

“Um caminho fácil, curto, perfeito e seguro”

Um curto e bem didático documentário sobre o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” de  S. Luís de Montfort, obra que em 2012 completa 300 anos.

Um caminho fácil, curto, perfeito e seguro para a nossa santificação: a devoção à Santíssima Virgem! Faço coro ao pedido do final do vídeo: leia e consagre-se você também.

O livro é editado pela Vozes. Pode também ser encomendado à Fraternidade Arca de Maria. Ou pode também ser baixado (junto com as orações preparatórias da Consagração) na internet.

Meditação: Do pecado mortal

[Encontrei na internet estas piedosas meditações, que imagino (por tê-las encontrado ligeiramente diferentes aqui) serem de Santo Afonso Maria de Ligório. Alguém recentemente me lembrava que a morte é uma boa conselheira; graças ao bom Deus, nunca duvidei desta máxima já tantas vezes repetida e que, hoje, parece asquerosa ou repulsiva à sensibilidade moderna. Ninguém será capaz de me convencer de que o mundo não seria um lugar melhor se as pessoas vivessem à luz da meditação quotidiana dos Novíssimos! Porque a nossa pequenez sói ser um poderoso argumento contra nossas crises de megalomania. Pensar que se vai morrer um dia é poderosa força capaz de mudar o homem. E a mudança do mundo, ao contrário do que se costuma pregar hoje em dia, sempre começa pela mudança de nós mesmos. Mesmo depois de passados todos esses séculos, aquelas palavras de Cristo sobre buscar primeiro o Reino de Deus e a Sua Justiça permanecem verdadeiras. Este é o verdadeiro Carpe Diem, no qual devemos sempre nos exercitar.]

II. Para a segunda-feira

Do pecado mortal

Considera como, sendo tu criado por Deus para amar, com ingratidão infernal te rebelastes contra ele, trataste-o como inimigo, desprezastes a sua graça e a sua amizade. Sabias que lhe davas um grande desgosto com a aquele pecado, e ainda assim o cometestes. Quem peca, que faz? Volta as costas a Deus, perde-lhe o respeito, levanta a mão para dar-lhe uma bofetada, aflige o coração de Deus: Et afflixerunt Spiritum Sanctum eius. Quem peca diz a Deus com suas obras: afasta-te de mim, não quero obedecer, não quero servir-te, não quero reconhecer-te por meu Senhor, não quero ter-te por meu Deus: o meu deus é este prazer, este interesse, esta vingança.

Assim o disssestes no teu coração, quando preferistes a criatura ao teu Deus. Santa Maria Madalena Pazzi não podia compreender como um cristão, a olhos abertos, pudesse cometer um pecado mortal. E tu, que nisto meditas, que dizes…? Quantos pecados, tens tu cometido…? Meu Deus perdoai-me, tende piedade de mim. Ofendi-vos, Bondade Infinita: agora odeio os meus pecados, amo-vos, e arrependo-me de vos ter ofendido tanto, ó meu Deus, que sois digno de infinito amor.

Considera como Deus te dizia, quando pecavas: Filho, eu sou o Deus que te criei do nada e que te resgatei com o meu sangue; proíbo-te de cometeres este pecado sob pena de te separares da minha graça. Porém tu, pecando, dissestes a Deus, Senhor quero satisfazer este gosto e não me importa desagradar-vos e perder a vossa graça. Dixisti: non serviam. Ah, meu Deus, e eu tenho feito isto tantas vezes! Como me tendes suportado? Quem me dera ter antes morrido do que vos ter ofendido! Eu não quero mais desgostar-vos; quero amar-vos, ó Bondade infinita. Concedei-me o dom da perseverança e vosso santo amor.

Considera como Deus, segundo os seus imperscrutáveis decretos, não costuma suportar em todos um igual número de pecados, nas a uns tolera mais, a outros menos, e quando está cheia aquela medida, lança mão de terribilíssimos castigos. E, com efeito, tantas vezes sucede vir a morte tão improvisamente, que o pecador não tem tempo de se preparar! Quantos morrem na própria ocasião de pecado! Quantas vezes uma pessoa se deitou no leito com boa saúde, e de manhã apareceu um frio cadáver! Quantos outros, à força de cometerem pecados sobre pecados, de tal modo se cegaram e endureceram, que, tendo todos os meios para se prepararem para uma boa morte, não querem se aproveitar deles, e morrem impenitentes! Enquanto o pecador vive, pode, se o quer deveras, converter-se com o divino auxílio; porém muitas vezes os pecados o tornam tão obstinados, que não desperta nem sequer na hora da morte. E assim se têm perdido tantos… E estes também esperavam que Deus lhes perdoasse, mas veio a morte, e condenaram-se… Teme que te aconteça o mesmo. Não merece misericórdia aquele que quer servir-se da bondade de Deus para ofendê-lo. Depois de tantos e tão graves pecados que Deus te perdoou, deves ter bem fundado temor de que te não perdoe qualquer outro pecado mortal que cometas.

Dá-lhe graças de te ter esperado até agora, e toma neste ponto uma resolução de antes morrer do que cometer outro pecado. De hoje em diante repetirás sempre: Senhor, bastam as ofensas que tenho cometido até agora. A vida que me resta não quero passá-la a ofender-vos; não, que vós não o mereceis; quero passá-la só a amar-vos e a chorar as ofensas que tenho feito. Arrependo-me de todo o meu coração. Meu Jesus, quero amar-vos, daí-me força; Maria, minha Mãe, ajudai-me.

Fruto:

Medita sobre estas palavras: sempre, nunca, eternidade.

O inferno dura sempre, a eternidade não acaba nunca. Toma um punhado de cinzas ou de areia lá contigo: Quando tiveres passado tantos milhões de séculos quantos são estes pequeninos grãos, não terá passado da eternidade um só momento. Quando puderes, considera, que grande mal seria este ou aquele trabalho, se não acabasse nunca, e não há dúvida que as penas do inferno nunca acabarão. Considera bem isto.

A Dios rogando y con el mazo dando

No dia de Santo Antonio María Claret (conforme o Vetus Ordo; no calendário reformado, a festividade do santo é celebrada amanhã, 24 de outubro), julgo bastante oportuno compartilhar este pequeno trecho (abaixo) de uma autobiografia do santo que foi enviado hoje mesmo à lista “Tradição Católica”. O título deste post é uma das frases mais famosas do santo espanhol, e sintetiza de uma maneira extraordinária a vida cristã: oração e luta, graça e livre-arbítrio, ora et labora. Este labor incansável foi bem característico do grande Confessor da Fé hoje celebrado.

À sua época, o campo propício para o apostolado – e, simultaneamente, o terreno pantanoso de onde surgiam os mais insidiosos ataques contra a Fé – era a imprensa. Nos dias de hoje, é bem fácil notar que este papel é desempenhado pelos novos meios de comunicação, máxime pela internet. Se vivesse hoje, é bem provável que o santo se lançasse com todo o seu vigor a este apostolado virtual que cada vez mais se revela tão necessário aos dias atuais. E a nós, a quem aprouve à Providência que vivêssemos à época da internet, cabe colhermos os sábios conselhos de Santo Antonio María Claret e aplicarmo-los à nossa realidade. Porque a Doutrina Cristã não precisa hoje de menos defesa do que à época do Arcebispo de Santiago de Cuba. Mudaram-se os tempos, mas os homens continuam igualmente necessitados do Evangelho de Deus. E cabe-nos empregar com diligência todos os meios ao nosso alcance para que esta Boa Nova alcance a todos os homens.

* * *

Da Autobiografia de Santo Antonio Maria Claret

CAPÍTULO 21
Sexto meio: Livros e folhetos.

310. A experiência me ensinou que um dos meios mais poderoso para a propagação do bem é a imprensa, ao mesmo tempo que é a arma mais poderosa para se propagar o mal, quando dela se abusa. Por meio da imprensa pode-se produzir muitos livros bons e folhetos para o louvor de Deus. Nem todos querem ou podem ouvir a divina palavra, mas todos podem ler ou ouvir a leitura de um bom livro. Nem todos podem ir à igreja ouvir a palavra divina, porém o livro irá à sua casa. Nem sempre o pregador pode estar pregando, porém o livro sempre estará repetindo a mensagem, sem nunca se cansar, sempre disposto a repetir a mesma coisa, quer seja lido pouco ou muito, lido ou deixado uma ou mil vezes, não se ofende por isso, permanece o mesmo, sempre se acomoda à vontade do leitor.

311. Sem dúvida, a leitura de bons livros sempre foi considerada de grande utilidade, hoje, porém, é de suma necessidade. Digo isto porque vejo que há como que um delírio para ler e, se as pessoas não têm bons livros, lerão os maus. Os livros são alimento para a alma. Se ao corpo faminto se oferece uma comida sadia será nutrido, mas se a comida está deteriorada, prejudicará o organismo. O mesmo ocorre com a leitura. Os que lerem livros bons e oportunos, adequados a si e às próprias circunstâncias, se sentirão nutridos e fortalecidos. Porém, se nutridos com livros perniciosos, periódicos e folhetos heréticos, verão corrompidas suas crenças e pervertidos seus costumes, extravia-se o pensamento, corrompe-se o coração e, do coração corrompido, saem os males, como disse Jesus, até chegar à negação da verdade primeira e do princípio de toda verdade, que é Deus: Dixit insipiens in corde suo: non est Deus: Disse o insensato em seu coração: Não há Deus.

312. Em nossos dias há uma dupla necessidade de fazer circular bons livros; estes, porém, devem ser pequenos pelo fato de as pessoas andarem apressadas e com mil e uma coisas para fazer por toda parte e, como a concupscentia oculorum et aurium: concupiscência dos olhos e dos ouvidos aumentou ao extremo, todos querem ver e ouvir tudo, além de viajar. Assim o livro volumoso não será lido, servirá unicamente para sobrecarregar as estantes das livrarias e as das bibliotecas. Por isso, convencido dessa verdade importantíssima e ajudado pela graça de Deus, publiquei inúmeros livretes e folhas volantes.

313. O primeiro livrete que publiquei contém conselhos ou avisos espirituais, dirigido às monjas de Vic, a quem acabara de pregar os exercícios espirituais; para que recordassem melhor o que lhes havia pregado, pensei deixar-lhes por escrito o conteúdo. Antes de entregar o escrito às monjas, para que cada uma o copiasse, mostrei-o ao querido amigo doutor Jaime Passarell, cônego penitenciário daquela catedral. Ele sugeriu que o imprimisse e assim evitaria às monjas o trabalho de copiar e seria utilizado por elas e por outros mais. Acatei a sugestão desse que tanto respeitava e amava por sua virtude, e o livro foi impresso. E assim foi que veio à luz meu primeiro livro.

314. Percebendo os bons resultados do primeiro livro, decidi escrever o segundo: Avisos às moças. Depois escrevi Aos pais; Às crianças; Aos jovens e outros, como se pode ver no catálogo.

315. À medida que ia missionando, percebia as necessidades e, conforme o que via e ouvia, escrevia um livrinho ou um folheto. Se na povoação houvesse o costume de cantar cantos desonestos, fazia imprimir logo um folheto com um cântico espiritual ou moral. Por isso quase todos entre os primeiros folhetos que imprimi eram de cânticos.

316. Desde o começo, publiquei um folheto contendo receitas contra as blasfêmias. Naqueles dias em que comecei a pregar era coisa horrorosa a quantidade e a gravidade das blasfêmias que se ouvia por toda parte. Parecia que os demônios do inferno se haviam disseminado pela terra a fim de provocar os homens a blasfemarem.

317. Também a impureza já ultrapassara seus limites e por isso resolvi escrever mais duas receitas. Como a devoção a Maria Santíssima é remédio muito poderoso contra todos os males, escrevi no início do folheto aquela oração que assim se inicia: Ó Virgem e Mãe de Deus… que se acha em quase todos os livros e folhetos. Estas duas palavras, Virgem e Mãe de Deus, coloquei-as porque ao escrevê-las lembrava que, quando estudante, nas férias de verão, li a vida de São Filipe Néri, escrita pelo padre Conciencia, na qual dizia que o santo gostava muito que se juntassem sempre estas duas palavras, e que com elas se honra muito e se obriga a Maria Santíssima. As demais palavras são uma consagração que se faz a Nossa Senhora.

Santa Hildegarda de Bingen e São João de Ávila, doutores da Igreja

Eu fiquei muito feliz quando soube que Bento XVI declarou dois novos doutores da Igreja no domingo 07 de outubro: Santa Hildegarda de Bingen e São João de Ávila. A proclamação solene foi feita na Santa Missa para a abertura do Sínodo dos Bispos, e a breve apresentação de ambos que o Papa Bento XVI fez foi a seguinte:

São João de Ávila viveu no século XVI. Profundo conhecedor das Sagradas Escrituras, era dotado de um ardente espírito missionário. Soube adentrar, com uma profundidade particular, nos mistérios da Redenção operada por Cristo para a humanidade. Homem de Deus, unia a oração constante à atividade apostólica. Dedicou-se à pregação e ao aumento da prática dos sacramentos, concentrando seus esforços para melhorar a formação dos futuros candidatos ao sacerdócio, dos religiosos, religiosas e dos leigos, em vista de uma fecunda reforma da Igreja.

Santa Hildegarda de Bingen, importante figura feminina do século XII, ofereceu a sua valiosa contribuição para o crescimento da Igreja do seu tempo, valorizando os dons recebidos de Deus e mostrando-se uma mulher de grande inteligência, sensibilidade profunda e de reconhecida autoridade espiritual. O Senhor dotou-a com um espírito profético e de fervorosa capacidade de discernir os sinais dos tempos. Hildegard nutria um grande amor pela a criação, cultivou a medicina, a poesia e a música. Acima de tudo, sempre manteve um amor grande e fiel a Cristo e à sua Igreja.

Confesso que não conheço muito bem a história e a obra de Santa Hildegarda; mas São João de Ávila é-me bem familiar. Já falei sobre ele aqui no Deus lo Vult! outras vezes (em particular, neste texto onde o grande santo espanhol fala sobre a crise da Igreja à época do Concílio de Trento – vale uma (re)leitura); gostei do seu estilo desde a primeira vez que pus os olhos sobre os seus escritos. Por exemplo, é ele o autor do Audi, Filia (disponível aqui: parte 1, parte 2, parte 3 e parte 4), e é com um trecho do início desta obra que eu encerro este ligeiro post:

E se é poderoso o gosto pelas honras vãs, muito mais poderosa é a medicina do exemplo e graça de Cristo, que de tal maneira as vence e desarraiga do coração que as faz ser percebidas como coisas muito abomináveis; de tal modo que, se um cristão vê o Senhor de Majestade abaixar-se a tais desprezos, fica o verme vil inchado com o amor da honra. Por isso o Senhor nos convida e encoraja com Seu exemplo, dizendo (Jo 16, 33): Confiai, que Eu venci o mundo. Como se dissesse: “Antes que Eu viesse, coisa difícil [recia] era lutar com o mundo enganoso [tomarse con el mundo engañoso], descartando o que nele floresce e abraçando o que ele descarta; mas depois que ele pôs todas as suas forças contra Mim, inventando novo gênero de tormentos e desonras, todas as quais Eu sofri sem lhe voltar o rosto, ele já não somente parece fraco – porque encontrou quem pôde sofrer mais – mas também se encontra derrotado para vosso proveito, pois com o exemplo que Eu vos dei e com a Fortaleza que Eu conquistei para vós, vós o podeis rapidamente vencer, sobrepujar e pisotear”.

Audi, Filia, Cap. III

Que os novos doutores da Igreja possam protegê-La neste Ano da Fé; e que, do Alto dos Céus, possam interceder por nós e conseguir-nos uma porção redobrada daquela Sabedoria do Espírito Santo que eles souberam possuir em grau tão admirável. Que eles aumentem e fortaleçam a nossa Fé. São João de Ávila e Santa Hildegarda de Bingen, rogai por nós!

“As portas do Abismo nada poderão contra Ela” – Beato John Newman

«Sobre esta pedra edificarei a Minha Igreja; e as portas do abismo nada poderão contra ela.»

Outrora, era uma fonte de perplexidade para quem crê, como lemos nos salmos e nos profetas, ver que os maus tinham êxito onde os servos de Deus pareciam fracassar. E o mesmo se passa ao tempo do Evangelho. E no entanto a Igreja possui este privilégio especial, que mais nenhuma outra religião tem, de saber que, tendo sido fundada aquando de primeira vinda de Cristo, não desaparecerá antes do Seu regresso.

Contudo, em cada geração, parece que sucumbe e que os seus inimigos triunfam. O combate entre a Igreja e o mundo tem isto de particular: parece sempre que o mundo a vence, mas é Ela que de facto ganha. Os seus inimigos triunfam constantemente, dizendo-a vencida; os seus membros perdem frequentemente a esperança. Mas a Igreja permanece. […] Os reinos fundam-se e desmoronam-se; as nações espraiam-se e desaparecem; as dinastias começam e terminam; os príncipes nascem e morrem; as coligações, os partidos, as ligas, os ofícios, as corporações, as instituições, as filosofias, as seitas e as heresias fazem-se e desfazem-se. Elas têm o seu tempo, mais a Igreja é eterna. E contudo, no seu tempo, elas parecerem ter uma grande importância. […]

Neste momento, muitas coisas põem a nossa fé à prova. Não vemos o futuro; não vemos que o que parece agora ter êxito não durará muito tempo. Hoje, vemos filosofias, seitas e clãs alastrarem, florescentes. A Igreja parece pobre e impotente. […] Peçamos a Deus que nos instrua: temos necessidade de ser ensinados por Ele, estamos cegos. Quando as palavras de Cristo puseram os apóstolos à prova, eles pediram-Lhe: «Aumenta a nossa fé» (Lc 17.5). Procuremo-Lo com sinceridade: nós não nos conhecemos; temos necessidade da Sua graça. Qualquer que seja a perplexidade a que o mundo nos induza […], procuremo-Lo com um espírito puro e sincero. Peçamos humildemente que nos mostre o que não compreendemos, que suavize o nosso coração quando ele se obstina, que nos dê a graça de O amarmos e de Lhe obedecermos fielmente na nossa procura.

Sermões sobre os temas do dia, nº 6, «Fé e Experiência», 2.4
Citado por Evangelho Quotidiano, 04/ago/2011

Sobre jovens inglesas e francesas [a respeito da morte de Amy Winehouse]

Foto: AP via G1

A Amy Winehouse foi encontrada morta em Londres hoje. Provavelmente as únicas músicas que ouvi da garota foram as que, indistinguíveis, nos chegam aos ouvidos no meio da poluição sonora das cidades; não seria capaz de me lembrar, agora, de nenhuma delas. Mas o que me espantou foi saber que a Amy, morta aos 27 anos, “seguiu o mesmo roteiro trágico de outros ídolos mundiais da música pop, como Janis Joplin, Kurt Cobain, Jim Morrison e Jimi Hendrix”.

Porque do Nirvana e do The Doors eu sei, sim, algumas músicas. E aí, de repente, a morta precoce da jovem cantora inglesa passa a ter alguma coisa a ver comigo: quando menos, me faz lembrar de algumas bandas que eu escutei na minha adolescência. Faz-me lembrar de algumas mortes pelas quais eu já me interessei. E, em última instância, faz-me pensar na morte, que é coisa muito útil e muito santa de se fazer.

Vinte e sete anos! É a minha idade. E, por mais que a Florbela diga “tenho vinte e três anos! Sou velhinha!”, o fato é que… não é uma vida avançada em anos, da qual se possa dizer que foi longeva. Morrer aos vinte e poucos (ou mesmo aos vinte e muitos) é humanamente uma tragédia, é uma interrupção precoce de uma vida que – como no fundo todos esperamos – poderia ter dado mais a si própria e ao mundo.

Talvez haja quem diga que “foi intensa”. No caso da Amy (ou da Janis ou do Kurt), eu diria antes que foi fútil e vazia. Sim, a garota provavelmente gastou até os vinte e sete anos muito mais dinheiro do que a maior parte de nós vai ser capaz de juntar na vida toda. Mas as coisas do mundo – como fama e dinheiro – naturalmente só fazem sentido enquanto se está no mundo. E a morte trágica e precoce de grandes astros da música parece nos dizer aos ouvidos aquela passagem bíblica segundo a qual é tudo vaidade. É como se ela nos sussurrasse ou, antes, nos gritasse alto para nos despertar de nossa letargia: vê, sic transit gloria mundi. Assim passa a glória do mundo! Morreram Cobain, Morrison, Hendrix, Joplin e Winehouse. Para os seus fãs, ficaram as suas músicas e a saudade; mas para eles próprios, de que valeu?

Talvez digam: “foi intenso!”. Talvez nos citem o Neil Young e nos digam que é melhor queimar de uma vez do que apagar-se aos poucos: it’s better to burn out than to fade away. Enfim, talvez nos digam qualquer coisa; mas, data venia, eu preciso discordar. A nossa vida é potencialmente curta (uma vez que cada um de nós pode morrer hoje mesmo) e, por isso mesmo, ela precisa ser intensa; mas o próprio fato da efemeridade da vida deveria nos fazer pensar no além-vida. “Intensa” é uma vida que se prepara para o futuro; desperdiçar loucamente uma fortuna – os anos de vida – cujo tamanho não se sabe ao certo (mas que sempre nos parece estar ainda “muito longe” de acabar) não é intenso, e sim irresponsável.

Eu conheço uma vida curta que foi verdadeiramente intensa. Não viveu os vinte e sete anos da Amy, mas ainda menos: vinte e quatro anos. Não ganhou o dinheiro de um Kurt Cobain ou de um Jimi Hendrix e nem teve em vida a fama de uma Amy ou de uma Janis, mas soube empregar verdadeiramente bem os seus anos de juventude. Era francesa e se chamava Teresa. E, entre tantas outras coisas, legou-nos versos:

Revesti as armas do Todo-Poderoso,
Sua divina mão dignou-se me adornar;
Doravante, nada me assusta.
Do seu amor, quem pode me separar?
Ao seu lado, lançando-me na arena,
Não temerei nem o ferro, nem o fogo.
Meus inimigos saberão que eu sou Rainha,
Que sou a esposa de um Deus!
Oh, meu Jesus! Guardarei a armadura
Com que me visto ante teus adorados olhos.
Até o entardecer da vida, minha mais bela veste
Serão meus santos votos!

[…]

Se do guerreiro tenho as armas poderosas,
Se o imito e luto com valentia,
Como a Virgem de encantos graciosos,
Também quero cantar, combatendo.
Fazes vibrar as cordas de tua lira
E esta lira, oh, Jesus, é meu coração!
Posso, então, das tuas misericórdias
Cantar a força e a doçura.
Sorrindo, desafio o combate
E, nos teus braços, oh , meu divino Esposo,
Cantando hei de morrer, sobre o campo de batalha,
Com as armas na mão!…

[“Minhas armas”, in “Obras Completas de Santa Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face”.
pp. 622-624. São Paulo, Editora Paulus, 2002]

A morte no campo de batalha, com as armas na mão: eis o desejo que convém a uma alma jovem! Não a morte em um palco ou – pior ainda – em um apartamento vazio e solitário, desvanecido o glamour após se deixar o palco. Não, isto não é uma vida intensa; a vida de combate preconizada pela santa francesa morta aos vinte e quatro anos é que o é. Que o Altíssimo tenha misericórdia da Winehouse e de tantos outros mortos em condições similares. E que a tragédia ocorrida com a roqueira inglesa faça-nos ver que a vida é curta e, portanto, é fundamental que seja bem vivida.

“Cristo espera-nos” – São Josemaría Escrivá

A festa da Ascensão do Senhor sugere-nos também outra realidade: esse Cristo que nos anima a empreender esta tarefa no mundo espera-nos no céu. Por outras palavras: a vida na terra, que nós amamos, não é a realidade definitiva; pois não temos aqui cidade permanente, mas andamos em busca da futura (Heb 13, 14) cidade imutável.

Cuidemos, porém, de não interpretar a palavra de Deus dentro dos limites de horizontes estreitos. O Senhor não nos incita a ser infelizes enquanto caminhamos, esperando a consolação apenas no mais além. Deus nos quer felizes também aqui, se bem que anelando pelo cumprimento definitivo dessa outra felicidade, que só Ele pode consumar plenamente.

Nesta terra, a contemplação das realidades sobrenaturais, a ação da graça em nossas almas, o amor ao próximo como fruto saboroso do amor a Deus, representam já uma antecipação do céu, uma incoação destinada a crescer de dia para dia. Nós, os cristãos, não suportamos uma vida dupla: mantemos uma unidade de vida, simples e forte, em que se fundamentam e se compenetram todas as nossas ações.

Cristo espera-nos. Vivemos já como cidadãos do céu (Fl 3, 20), sendo plenamente cidadãos da terra, no meio das dificuldades, das injustiças, das incompreensões, mas também no meio da alegria e da serenidade que nos dá saber-nos filhos amados de Deus, e vermos como aumenta em número e em santidade este exército cristão de paz, este povo de corredenção. Sejamos almas contemplativas, absorvidas num diálogo constante com Deus, procurando a intimidade com o Senhor a toda hora: desde o primeiro pensamento do dia ate o último da noite; pondo continuamente o nosso coração em Jesus Cristo, Nosso Senhor; achegando-nos a Ele por Nossa Mãe, Santa Maria, e por Ele, ao Pai e ao Espírito Santo.

E, se apesar de tudo, a subida de Jesus aos céus nos deixar na alma um travo de tristeza, acudamos à sua Mãe, como fizeram os Apóstolos: Tornaram então a Jerusalém… e oravam unanimemente… com Maria, a Mãe de Jesus (At 1, 12-14).

San Josemaría Escrivá,
É Cristo que passa, 126.
Apud Opus Dei – Textos de São Josemaria – A Ascensão do Senhor