O ensino religioso e a laicidade do Estado Brasileiro

Está atualmente em curso no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4439) onde se pede que o ensino religioso confessional nas escolas públicas seja considerado inconstitucional. No entender do Ministério Público, “o ensino religioso em escolas públicas só pode ser de natureza não-confessional, com proibição de admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas”. O julgamento começou na última quarta-feira e, após cinco votos, foi suspenso até o próximo dia 20 de setembro. Até o presente momento há três votos pela procedência da Ação (Barroso — que é o relator –, Rosa Weber e Fux) e dois votos contrários a ela (Alexandre de Moraes e Fachin).

De tudo o que li sobre o assunto, o texto do Dr. Rodrigo Pedroso (publicado no Senso Incomum) é seminal. Nele o Procurador da USP demonstra com clareza que, em mais de setenta anos, desde 1934, sempre se entendeu que o ensino religioso confessional ministrado nas escolas públicas não violava a laicidade do Estado Brasileiro. Ora, o Estado é Laico desde a República, com a Constituição de 1891. O ensino religioso nas escolas públicas tem sede constitucional desde 1934. Durante todo esse tempo ninguém jamais pretendeu que houvesse qualquer oposição entre as duas coisas — porque uma coisa é o Estado institucionalmente não professar qualquer credo (ou melhor, para ser mais exato, professar o credo irreligioso) e outra coisa, completamente diferente, é haver matéria religiosa facultativa nas escolas públicas.

A uma porque uma coisa é a crença que se professa e, outra coisa, a crença que se conhece. A duas porque, se o Estado fosse confessional, então por força de coerência o ensino religioso nas escolas públicas deveria ser obrigatório e não facultativo. E a três porque, se fosse confessional o Estado, então deveria ministrar somente um ensino religioso, de uma única religião — aquela da sua confessionalidade –, e não de todas as religiões que manifestassem interesse.

Quanto à primeira, diga-se que é possível relacionar-se com uma religião — com qualquer religião, mesmo com o ateísmo — de duas maneiras. É possível aderir a uma religião aceitando como válidos e verdadeiros seus princípios, seus dogmas, sua cosmovisão, e neste caso você se torna um adepto daquela religião; mas é também possível conhecer os princípios, dogmas e cosmovisão de uma religião qualquer sem necessariamente fazer qualquer juízo de valor pessoal quanto à veracidade ou validade desta religião — e neste caso você é meramente um conhecedor daquele fenômeno religioso.

Ora, o Estado ser Laico — é dizer, aderir a uma determinada cosmovisão de mundo segundo a qual Deus não existe ou não importa socialmente — significa que ele não adere a nenhuma religião tradicional (e.g. ao Catolicismo, ou ao Budismo ou ao Islamismo). Isso de maneira alguma o impede de conhecer as características de todas essas religiões e — mais ainda — de reconhecer a existência de todas elas no seio da sociedade. Ser capaz de conhecer os princípios e dogmas de uma religião em nada afeta a laicidade do Estado, da exata mesma forma como conhecer, por exemplo, a cosmovisão budista não faz com que o fiel católico seja menos católico por conta disso. Em uma palavra, ensinar (ou, antes, permitir o ensino de) uma religião não faz com que alguém se torne por conta disso adepto dessa religião — donte a argumentação da sra. Procuradora-Geral da República é um verdadeiro e escandaloso non sequitur.

Quanto à segunda, a própria posição que o ensino religioso ostenta no sistema jurídico brasileiro dá testemunho da laicidade do Estado. Afinal de contas, tal ensino é facultativo — isso quer dizer que qualquer aluno pode, à sua livre-eleição, participar dessas aulas como igualmente não participar. Ora, uma coisa que não seja obrigatória evidentemente não faz parte dos valores elegidos como constituintes por uma determinada ordem jurídica.

Porque os valores que o Estado Brasileiro considera efetivamente como próprios, ele os impõe e não teria como ser diferente. Por exemplo, a Constituição Federal garante o direito de propriedade (CF, Art. 5º, XXII). Não está ao alvitre de qualquer cidadão respeitar a propriedade privada ou não a respeitar: ao contrário, quem a desrespeita viola a ordem jurídica e pratica um ato ilícito. Suponhamos que a Constituição determinasse que a proteção à propriedade privada seria “facultativa” (por exemplo, que cada Estado-Membro da Federação poderia optar entre a propriedade privada ou a propriedade coletiva). Poder-se-ia dizer de um Estado desses que ele fosse adepto da propriedade privada? Decerto que não! Ora, por que razão então querem acusar de “religioso” um Estado que simplesmente deixa ao arbítrio dos alunos da escola pública ter ou não ter aulas de religião?

Por fim, quanto à terceira, é forçoso notar que a coexistência de posições opostas sobre determinado assunto é característica justamente de quem não tem nenhuma dessas posições como própria. Quem adota uma determinada posição precisa, necessariamente, por força de coerência, repelir todas as posições que lhe são contrárias: assim o Brasil tem por fundamento a dignidade da pessoa humana (CF, Art. 1º, III), e não pode portanto assumir nenhum comportamento institucional que contrarie essa dignidade. Admitisse a República Federativa do Brasil a facultatividade na promoção da dignidade humana, ou mesmo que ela fosse ou não promovida a depender dos cidadãos, então não se poderia dizer que o país a tem como fundamento. Isso é lógico. Por que, então, haveria ofensa à laicidade em admitir o ensino religioso facultativo?

Por outra: o Estado Brasileiro tem por fundamento o pluralismo político (CF, Art. 1º, V) e, justamente por isso, encontram-se (ou, ao menos, dever-se-iam encontrar) manifestações políticas de todas as matizes em seus órgãos públicos. Quem dissesse que o Brasil não adota como própria ideologia política alguma e, por conta disso, não poderia subvencionar os diversos partidos políticos, não entenderia, em absoluto, o que significa pluralismo político. Pois bem: o discurso que intenta proibir o ensino religioso confessional é tão sem sentido quanto o que quisesse confinar os partidos políticos à esfera privada.

Neste sentido, o valor que é próprio ao Estado Brasileiro é a liberdade religiosa, e ela exige precisamente que a diversidade das religiões brasileiras esteja representada no ensino religioso confessional das escolas públicas. É justamente porque o Estado é laico e não pode adotar cosmovisão religiosa nenhuma que ele não pode impôr a todos os alunos o modelo único de “ensino religioso de natureza não-confessional” que o MPF pretende impingir às escolas públicas brasileiras. Semelhante ação judicial não pode prosperar. Sob nenhuma hipótese o Estado Brasileiro pode privilegiar a visão religiosa da Sra. Duprat em detrimento da diversidade das religiões do país.