Graças ao bom Deus

Eu “me reprovei” na minha primeira catequese de Crisma. Graças ao bom Deus. Ainda envolto nos liames de uma adolescência pouco virtuosa e da qual não tenho muito orgulho, entrei para a catequese já quase homem feito, com os meus dezessete carnavais. O curso, levei-o como quem não quer nada, oscilando entre o desinteresse e a displicência. Após ter perdido muito mais aulas do que permitiriam as mais generosas e tolerantes cargas horárias mínimas, ainda assim a minha catequista me chamou no final do curso e perguntou se eu queria me crismar. Eu disse que não. Ela insistiu: “amanhã pode ser tarde”. Eu fui resistente. “Não posso me crismar, não estou preparado”. Graças ao bom Deus, entre todas as minhas falhas de caráter nunca se pôde contar a hipocrisia. Não me crismei. Disse que voltaria no ano seguinte.

Era óbvio que eu não podia me crismar: graças ao bom Deus eu pude ver isto com clareza. Sem perceber, eu corria então o terrível risco de relegar o meu Sacramento à irrelevância das coisas que se fazem “só por fazer”, como (mais) uma das matérias do colégio que a gente só cumpre porque está no quadro de disciplinas mas que, para a nossa vida, não serve de nada. Que passa e depois a gente esquece. Mas eu aprendera que receber o Sacramento da Crisma era se transformar em soldado de Cristo com a missão permanente de defender a Santa Igreja, e o meu gosto de então por romances épicos me fazia levar demasiadamente a sério esta metáfora.

E eu não podia defender a Santa Igreja, eu que sequer pronunciava o “[Creio] na Santa Igreja Católica” do Credo dominical! Eu estava ainda enojado com a corrupção da Igreja evidente após séculos e séculos de opressão e de busca imoral por poder e por controle, e com todas as outras coisas que a gente aprende nas aulas de história do Ensino Médio. Com a perseguição à ciência. Com a carnificina das cruzadas. Com o genocídio indígena. Com o terror da Inquisição. O quadro era por demais tétrico e, a instituição nele retratada, por demais repulsiva para merecer o meu juramento de vassalagem. Graças ao bom Deus, eu não podia me crismar.

Eu não sei entrar em detalhes sobre como esta imagem se desvaneceu por completo da minha mente; eu mesmo não o sei ao certo. A curiosidade e a honestidade tiveram um importante papel neste processo: as incansáveis leituras e as infindáveis discussões (mormente pela internet) me levaram a abandonar – graças ao bom Deus! – o legado anti-clerical da minha adolescência. Depois, olhando para trás, pude fazer minhas estas palavras de Chesterton que retratam a sua perplexidade com as críticas ao Cristianismo. Graças ao bom Deus, eu sempre mantive a virtude da coerência.

E no ano seguinte eu voltei. Graças ao bom Deus, eu voltei. E, numa noite de sábado do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2002, com quase dezenove anos, eu recebia na fronte o óleo do Crisma e, na alma, o caráter da Confirmação. Este ano faz uma década. De lá para cá muitas coisas aconteceram, muita água rolou sob a ponte; mas graças ao bom Deus eu sempre consigo voltar àquela noite em que, jovem e entusiasmado cruzado com a testa rescindindo a bálsamo, depus a minha alma aos pés de Nosso Senhor. Graças ao bom Deus, ainda estou na luta. E permita-me Ele que neste combate eu possa viver e morrer.

Estadão inventa “sentença” do Santo Ofício contra o pe. António Vieira

Há algum tempo eu encontrei numa livraria uma bonita edição dos “Autos do processo de Vieira na Inquisição”. Passei um tempo considerável folheando o livro, que me pareceu interessantíssimo; não o trouxe para casa, contudo, porque a curiosidade histórica não me cabia então no orçamento mensal.

O livro não veio comigo, mas o conteúdo dele sim. O processo contra o pe. António Vieira, eu me lembrava perfeitamente, fora instaurado por conta de uma carta enviada a não-sei-que autoridade oriental, na qual o sacerdote dissertava sobre umas (supostas) profecias de um gajo segundo as quais o rei D. João IV haveria de ressuscitar. Estas referências foram-me suficientes para que eu recuperasse, hoje, a história inteira. Encontrei-a na Revista Semear 2, da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses. O silogismo brandido pelo pe. António Vieira foi o seguinte:

O Bandarra é verdadeiro profeta; o Bandarra profetizou que El-Rei D. João o quarto há de obrar muitas cousas que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando: logo, El-Rei D. João o quarto há-de ressuscitar.

Era exatamente isto. Lembrava-me de como me pareceu, à época, que o pe. Vieira estava a troçar dos portugueses, sustentando diante das fuças dos inquisidores um silogismo cuja premissa maior era gigantescamente questionável sem parecer se preocupar muito com esta singular lacuna argumentativa. Cheguei a pensar, a sério, que o interesse do reverendíssimo sacerdote era somente quanto aos aspectos formais da construção silogística, mais ou menos como Chesterton diz que os unicórnios eram importantes para os escolásticos medievais: “se um licorne tem um chifre, então dois deles têm tantos quanto uma vaca”. De qualquer maneira, lembro-me de que este processo do Santo Ofício evoluiu para coisas que faziam muito mais sentido, como a natureza das profecias ou a Revelação: assuntos propriamente teológicos, de leitura deliciosa cuja mera lembrança agora me dá ganas de ter o livro à mão e me faz refletir sobre o porquê de comprarmos livros. Se me é permitida a metáfora, trata-se de um testemunho – dir-se-ia profético! – do valor das estantes repletas…

Mas qual não foi a minha surpresa quando encontrei hoje, na primeira frase desta matéria do Estadão, esta incrível pérola: o pe. António Vieira foi «[c]ondenado pela Inquisição de Coimbra por fazer duras críticas à exploração dos escravos» (!). Como assim?! Não foi este o motivo do seu processo mais conhecido. Semelhante episódio da vida do sacerdote não consta na sua biografia da Wikipedia e nem em nenhuma outra. O próprio conteúdo da acusação é totalmente nonsense e descabido: como se a Igreja condenasse não os que exploravam escravos, mas os que eram contra a escravidão (!). De onde esta informação absurda foi retirada?

Confesso, desconcertado, não fazer idéia. Ou talvez até faça: trata-se aparentemente de mais um exemplar do velho e esclerosado preconceito anti-clerical, desta deficiência intelectual grave que parece ter uma doentia compulsão por dar crédito – ligeiro e leviano – a qualquer bobagem desabonadora que alguém atribua à Igreja Católica. O fenômeno não é novo. Mas encontrá-lo de novo e de novo, em pleno século XXI, é profundamente desanimador. Melhor me seria ler os autos do Santo Ofício! E melhor fariam certos repórteres em ler, senão processos antigos sobre os quais se metem a falar, ao menos os resultados mais relevantes do Google. Assim passariam menos vergonha.