Os armários intolerantes

A famosa frase de Chesterton – que cito na sua versão que ganhou mais popularidade, e não na literal proferida pelo insigne escritor inglês, mantendo no entanto intacto o sentido das suas palavras – sobre os ateus, “quando alguém deixa de acreditar em Deus, não é que ele passe a não acreditar em nada; na verdade, ele passa a acreditar em qualquer coisa”, dá a cada dia mostras de ser exata literalmente. Foi com surpresa que descobri o blog da “União Nacional dos Ateus” em um post com um vídeo – elogiado! – da mais inacreditável infantilidade.

Para os que não quiserem (sabiamente) perder oito minutos do seu tempo assistindo-o, conto em linhas gerais: é a história de um menino e de uma cultura de “construção de armários”. Os pais dele o ensinaram a construir armários com duas gavetas, porque era assim que um certo “manual” ensinava. Após o menino encontrar pessoas que construíam armários com gavetas em posições diferentes, ou com mais do que duas gavetas, passa a se questionar e recebe sempre respostas intolerantes dos seus pais. Decidido a ler o manual por conta própria e construir o armário do jeito, literalmente, que ele ensina, fabrica uma coisa totalmente tosca e inútil. É aí que ele percebe (1) que o manual é inútil porque não ensina a construir os armários que as pessoas dizem que ensina e (2) que cada um pode construir o seu armário do jeito que quiser. Moral da história: a Bíblia é inútil, cada um acredita naquilo que quiser e a intolerância religiosa é um terrível mal para a humanidade.

Detenhamo-nos um pouco a aplicar os rigores da lógica a esta puerilidade. Uma metáfora que tenha serventia precisa guardar semelhança com a coisa da qual ela se propõe a ser uma representação metafórica; conclusões tiradas com base em analogias só são válidas se respeitarem as semelhanças e dessemelhanças existentes entre o objeto “original” e o seu análogo. Tudo isso é óbvio. Assim sendo, a pergunta que salta aos olhos ao assistir o vídeo é: o que raios têm a ver os alhos com os bugalhos? Por qual misterioso processo intelectual infere-se, a partir de uma estúpida história sobre manuais e armários, que as religiões são males a serem combatidos pelos “iluminados” ateus?

“São coisas análogas”, pode alguém clamar. Não, não são, é óbvio que não são. Existem armários com duas gavetas, com três gavetas, armários toscos inúteis, armários azuis e vermelhos, armários de diversos formatos, e cada um pode ter o armário que bem entender, e cada armário de cada um é um armário diferente. O “objeto” apresentado pelas religiões – Deus – não é “diferente” para cada uma das pessoas, e sim o mesmíssimo Deus único; ao contrário dos armários – onde a multiplicidade dos objetos comporta perfeitamente que haja diferenças entre eles sem nenhum problema lógico -, a unicidade de Deus faz com que seja uma impossibilidade lógica estarem, ao mesmo tempo, corretas duas afirmações contraditórias sobre Ele mesmo. É a própria natureza do problema enfrentado – ao contrário do problema da “construção dos armários” – que faz com que os distintos conhecimentos sobre Deus sejam mutuamente excludentes: está na essência mesma das religiões serem incompatíveis.

Como uma coisa tão gritantemente óbvia “escapa” à inteligência atéia é um mistério inexplicável. Passa a terrível e incômoda impressão de que os ateus não são capazes de entender aquilo que eles estão, não obstante, empenhados em refutar. A fé dos ateus é uma coisa realmente espantosa, pois – ao que parece – faz com que eles acreditem piamente que Deus é um armário. Esta miséria intelectual chega a ser frustante, e chega até a dar saudade de nomes como o de Augusto Comte; ao menos era possível haver polêmicas de verdades