[OFF] Nota de Falecimento

Não vi, de manhã, as manchetes dos jornais locais noticiando um «Médico (…) morto a tiros na BR-101». Só quase à hora do almoço recebi a ligação da minha pneumologista, ainda chocada, com a notícia de que Artur morrera.

– Que Artur, o meu cirurgião torácico?!
– Foi, ele saiu do Português ontem à noite e depois ninguém sabe o que aconteceu.

Só depois eu entrei na internet e fiquei sabendo dos detalhes. Vários tiros de pistola; carteira roubada; carro encontrado queimado em outro lugar, distante do corpo. Uma verdadeira tragédia. Não se sabe ainda ao certo o que aconteceu.

artur-azevedo

Foi Sandra quem me apresentou Artur quando, ainda em dezembro, eu cheguei no hospital completamente dispnéico. Ele ia drenar o meu líquido acumulado na pleura. Só o vi pessoalmente já no bloco cirúrgico: jovem e sorridente, explicou-me o que ia fazer e esteve conversando comigo durante todo o procedimento (a toracocentese a gente faz apenas com anestesia local). Pessoa agradabilíssima.

Em janeiro eu tive que me submeter a uma segunda drenagem. De novo Artur esteve comigo, e é a última lembrança que eu tenho dele. Dessa vez, dos dois lados das costas, a mini-cirurgia foi feita no próprio apartamento onde eu estava internado. Conversávamos sobre as nossas profissões; ao saber que eu trabalhava com informática, ele me saiu com não lembro qual chiste de computação. Acho que foi «a informática surgiu para resolver os problemas que antes dela não existiam», ou coisa parecida. Eu disse que ia contar também algumas anedotas sobre médicos, mas só depois que ele fechasse as minhas costas. Rimos. Não esperei tanto e soltei, de memória, aquela quadra de Bocage (acho que é de Bocage):

Aqui jaz um homem rico,
nessa rica sepultura.
Escapava da moléstia,
se não morresse da cura.

Ele riu a plenos pulmões. Ainda conversamos um pouco até eu começar a ficar tonto e ele decidir encerrar o procedimento, após três litros drenados. Deitei e fui descansar; depois disso não me lembro se voltei a me encontrar com ele, casualmente pelos corredores, ou n’alguma visita de rotina. Mas essa foi a última vez – disso tenho certeza – em que conversamos mais demoradamente.

Todos os dias, no espelho, ainda vejo dos dois lados das costas as pequenas marcas dos furos das duas drenagens às quais me submeti; e, respirando incomparavelmente melhor, ainda me lembro dos momentos angustiantes dos pulmões obliterados. Artur muito me ajudou para que eu chegasse até aqui, e é estranho; agora não me lembro se eu o agradeci devidamente, e me bate uma profunda tristeza por ele não ter podido acompanhar o desfecho do meu caso ao qual se dedicou desde o começo. Tenho ainda no meu corpo as marcas do seu trabalho médico, e ele não está mais aqui para se orgulhar dos frutos que me proporcionou. As minúsculas cicatrizes duraram mais do que o homem que as produziu. É assustador; somos mesmo pó e nada.

Artur tinha quase a minha idade: 35 anos. Deixa uma esposa e um filho pequeno. Aos que por aqui passarem, peço que rezem uma Ave-Maria por ele e pela sua família; que o Bom Deus leve em conta a dívida de gratidão que eu tenho para com ele, e que o possa recompensar por toda a atenção que dedicou a mim e à minha família nos piores momentos do meu câncer. Não sei por quê, vêm-me à mente agora duas estrofes de Augusto dos Anjos, escritas pelo poeta paraibano – conterrâneo do Dr. Artur – a um seu amigo falecido. A última delas é assim:

A água quieta do Tejo te abençoa.
Tu representas toda essa Lisboa
De glórias quase sobrenaturais,
Apenas com uma diferença triste,
Com a diferença que Lisboa existe
E tu, amigo, não existes mais!

E aqui existem coisas ainda muito mais perecíveis do que Lisboa – este próprio convalescente que escreve estas linhas, as ainda mais efêmeras cicatrizes que Artur legou às minhas costas -, e o jovem cirurgião não existe mais…! É muito triste. Só não posso concordar em absoluto com o niilismo do controverso poeta. Entendo-lhe a dor, sem dúvidas, mas vejo-a em perspectiva: Artur pode não estar mais entre nós, mas ainda existe, distante daqui; e rezo para que o Bom Deus lhe seja propício e o faça receber, lá, o meu preito de gratidão e minhas preces de sufrágio. Hoje é Treze de Maio, dia de Nossa Senhora de Fátima; que a Senhora do Céu possa valer-lhe e abrir-lhe as portas à Jerusalém Celeste.

Requiem aeternam dona ei, Domine,
– et lux perpetua luceat ei.

Requiescat in Pace,
– amen.

O ditador e a perspectiva da morte

Alguém dizia recentemente que não existem ateus em aviões atravessando uma turbulência. Eu até concedo que, talvez, haja algum ateu fanático particularmente fundamentalista a ponto de sufocar a voz da própria consciência até mesmo em situações extremas como diante da morte; mas aposto que a maior parte dos ateus renegaria rapidamente a sua fé quando se visse na iminência de deixar o único mundo que ele se permite acreditar.

Porque a morte é um mistério que sempre provocou – e sempre há de provocar – espanto nos seres humanos. A possibilidade de deixar de existir repugna à inteligência humana. Pelo fato de ser racional, o homem sabe que é superior à matéria, mesmo à orgânica, uma vez que inteligência não escorre de pedras nem se sintetiza em laboratório. O homem almeja continuar existindo, ainda que insista em dizer a si próprio que isto são fábulas de gente ignorante. Na iminência da morte, penso que o desejo natural há de falar mais alto (pelo menos na maioria das vezes) do que a mentira artificial auto-contada nos momentos de prazer – quando o futuro (aparentemente) longínquo é fácil de ser ignorado.

Pensava nisso quando via o Chávez recebendo a Extrema-Unção. O ditador comunista perseguidor da Igreja descobre não apenas que não é imortal (isto, afinal de contas, é fácil), mas que pode morrer em muito breve. Esta característica profundamente cristã da brevidade da vida, onde não somos capazes de adicionar um côvado sequer aos nossos dias sobre a terra, é um poderoso fator de aperfeiçoamento próprio. Quem toma consciência de que pode morrer hoje mesmo vai procurar ser hoje mesmo alguém melhor. Ao contrário, quem não pensa nunca na morte e passa a vida empregando esforços para se convencer de que o poeta mentiu ao dizer que a mágoa acompanha o homem ainda “quando esse homem se transforma em verme”… tem muito mais facilidade em deixar “para depois”. A propósito, os que entendem inglês não deixem de ler isto.

Claro, é perfeitamente possível que o Chávez esteja somente fazendo uma jogada de marketing hipócrita. Isto, aliás, é até bastante provável. Mas eu gosto de pensar que ele – que enfrentou recentemente um câncer, segundo a notícia – tenha talvez se dado conta de que é tempo (ou já passou há muito do tempo) de fazer conta. Porque, diante da perspectiva da morte, todas as vaidades da vida perdem o sentido; e, se não provocaram a conversão, talvez tenham provocado ao menos a tomada de consciência da necessidade da conversão. Diante da morte, talvez Chávez tenha tremido e temido. Talvez este Sacramento lhe possa fornecer as graças necessárias à redenção.