A Ave-Maria da minha infância

Domingo, na Missa, por ocasião da festividade de um grupo mariano da paróquia, ao final da celebração foi cantada a Ave Maria de Schubert. A música evoca-me a minha infância! Domingo, na Missa, eu me lembrava de que esta Ave-Maria foi a primeira oração em latim que eu aprendi. Quando nem sabia direito o que era latim. Quando não tinha nenhuma noção de liturgia, de língua sagrada, dessas coisas.

Foi na escola, no Nossa Senhora do Carmo, colégio religioso onde me alfabetizei e fiquei até terminar o primeiro grau. O ano? Acho que era 1996. Por incrível que pareça, não foi na aula de religião; tínhamos aulas de religião, sim, mas não tenho quase lembrança nenhuma delas. Acho que líamos passagens do Evangelho e dávamos a nossa interpretação – de crianças – do que elas significavam, ou coisa assim. Não se me imprimiram à memória; não devo ter achado que valia a pena guardá-las. No entanto, lembro-me, perfeitamente, da aula de Artes onde a professora – acho que se chamava Suely – ensinou-nos a Ave-Maria.

Ela começou quase se desculpando. Disse que se tratava de uma peça de música clássica, que não estava doutrinando ninguém e respeitava a opção religiosa de cada um. Que estava ensinando arte e história, não catequizando nem impondo religião alguma. As palavras, claro, não sei se foram exatamente essas; mas o sentido que guardei, transmito-o com fidelidade. Hoje, olhando em perspectiva, acho que não se tratou de indiferença religiosa. Acho que já havia então alguma pressão, institucional ou social, tácita talvez, para que as diferentes visões religiosas fossem “respeitadas”. Mas isso não impediu a nossa querida professora de anunciar o Evangelho da Alegria da maneira que estava ao seu alcance fazer: ela soube se aproveitar do invólucro artístico para nos transmitir aqueles versos imortais, que tantos lábios piedosos já pronunciaram ao longo dos séculos.

(E que coisa maravilhosa é fazer crianças recitarem a Ave-Maria, mesmo que elas não saibam exatamente o que estão fazendo…! Aquele “deixai vir a mim as criancinhas” do Evangelho não significa tornar os pequeninos teólogos experientes desde a mais tenra infância. Os impactos de uma educação religiosa nos primeiros anos reverberam ao longo de toda a vida; além do quê, Deus é louvado nos lábios dos infantes, mesmo que estes não sejam capazes de contemplar o significado de seus atos em toda a sua dimensão.)

No quadro, antigo, verde-escuro – dito “quadro negro” -, os versos que nos eram conhecidos. Ave Maria, gratia plena. Eram-nos conhecidos, a todos, eu dizia, porque – e aí vai outra lembrança agradável da aurora da minha vida -, naquela época, praticamente só se ouvia música pelo rádio. E, todos os dias, na Rádio Recife – “ZYB-244 Recife FM, 97,5 MHz” como cantava a vinheta -, ouvíamos, todos, onde quer que estivéssemos, a voz grave do locutor anunciar solene: “em Recife, seis horas da noite” – e logo após as conhecidíssimas notas da peça que musicava a saudação angélica. Não faço idéia de como eram as coisas em outros lugares do Brasil, pelos idos de 90. Em Recife, repito, todos, todos conhecíamos a Ave-Maria de Schubert.

E, naquela manhã, naquela sala de aula, a professora nos decifrou a letra daquela canção. Maria, gratia plena; Maria, gratia plena. Eu não fazia idéia do que era o latim; mas comecei a gostar da música ouvindo-a no carro, na rua, no ônibus, em casa, e a aprendi definitivamente no quadro-negro de uma aula de artes. Não me lembro agora se a professora tocou-a, lá, com algum instrumento, ou levou um “Micro System” para a reproduzir n’alguma gravação K7: sei, contudo, que foi ali que travei contato – pela primeira e definitiva vez – com aqueles versos multicentenários. Eu devia ter uns doze anos, e é curioso: não consigo agora me lembrar de nenhum dia específico daquela fase da vida, mas da Ave-Maria naquele quadro-negro eu nunca me esqueci.

E, domingo, quando ela ressoou na igreja, no final da Missa, eu me lembrei de tudo isso. Aquele Ave, Ave, Dominus preencheu o templo sagrado: Dominus tecum, e eu rezava pela professora que, há uns dezoito anos, teve a caridade de me ensinar um pouco de música sacra. Uma única aula na vida, provavelmente uma hora e meia ou duas horas: muitas vezes não somos capazes de dimensionar o alcance de nossas atitudes. Por isso é tão importante fazer tudo com perfeição. Por isso é importante se dedicar a cada pequena tarefa: nunca sabemos quais delas, no futuro, serão realmente importantes.

Benedicta Tu in mulieribus. Et benedictus, et benedictus fructus ventris: ventris Tui, Iesus!

Ave, Maria!, saúdam-Vos os Vossos filhos. Obrigado, professora, onde quer que tu estejas. Que a Santíssima Virgem, cujo louvor tu colocaste nos meus lábios e apresentaste ao meu coração infantil, possa olhar com particular benevolência para ti, e recompensar-te com munificência pelo serviço a Ela prestado.

Porcos e pérolas

Não sei se é para ânimo ou para temor o que eu li há pouco no Análisis y Actualidad, sobre a MTV e os sacerdotes. Não vi os vídeos, mas li que a MTV italiana elaborou uma série de reportagens sobre as histórias de jovens padres. Segundo consta no referido site,

[n]estes programas, almeja-se oferecer respostas, por meio de testemunhos, a perguntas como: qual o papel que têm os sacerdotes na sociedade moderna? Por que decidiram tornar-se sacerdotes? Como e quando sentiram a sua vocação? Como se relacionam com as demais pessoas? O que buscam e o que encontram na Igreja e em seu ministério sacerdotal?

O que é motivo de ânimo nesta notícia, é muito simples: afinal, são jovens sacerdotes dando publicamente o seu testemunho de resposta generosa à vocação sacerdotal. Porém, causa-me temor pensar nos efeitos que terão estes testemunhos, porque muitas vezes não se devem jogar pérolas aos porcos.

Não sei na Itália, mas aqui no Brasil a MTV é um antro de degradação moral e baixo nível intelectual. Espiritualidade zero. Adianta colocar testemunhos de vocação sacerdotal em um ambiente desses? As pessoas que assistem ao canal não estarão já propícias a receber negativamente a mensagem que se deseja passar?

E que tipo de “concessões” terão que ser feitas, nos testemunhos, para que eles se tornem “palatáveis” à MTV – para que dêem audiência? Falarão estes jovens sacerdotes em ministério do altar, em Sacramento da Confissão, em pecado e em salvação das almas, em necessidade da Igreja, em Céu e em Inferno? Ou ficarão numa conversinha naturalista de “sou muito feliz assim”, “sinto-me realizado”, “sou uma pessoa normal”, etc.? Não sei na Itália, mas no Brasil parece-me óbvio que uma propaganda vocacional decente não poderia ser veiculada na MTV.

Os porcos não sabem o valor das pérolas. Mutatis mutandis, temos aqui em Recife a Rádio Recife – 97,5 FM – que, todos os dias, às seis horas da noite, toca a Ave-Maria de Schubert. Eu poderia ficar feliz porque a rádio saúda a Virgem Santíssima; mas este sentimento em mim coexiste com uma profunda angústia pela banalização da hora do Angelus, com a profanação das coisas santas. Afinal, na Rádio Recife, a saudação angélica das 18:00 é precedida por algum brega indecente, e as mesmas pessoas que a escutarem irão, logo depois, cantar alguma outra canção imoral em seguida. Acaso vale a pena…? Às vezes lembro-me de que Nosso Senhor calou-Se diante de Herodes. E penso se, em certas situações, não deveríamos nós fazer o mesmo.