A Consagração do Mundo e da Rússia ao Imaculado Coração de Maria

O Papa Francisco (re)fez no último domingo, 13 de outubro, aniversário do Milagre do Sol, a Consagração do Mundo ao Imaculado Coração de Maria. A fórmula usada por Sua Santidade pode ser vista aqui.

Não há que se menosprezar, por certo, a eficácia de tal gesto; uma consagração é uma coisa sem dúvidas boa, e seria muita impiedade pensar que a Santíssima Virgem Mãe de Deus, magnânima e liberal sobre todas as criaturas, perderia esta oportunidade de derramar abundantes graças sobre o mundo. É claro que choverá bênçãos do Céu por conta dessa entrega do mundo que o Vigário de Cristo fez no início da semana à Bem-Aventurada Virgem Maria.

Não obstante, atos assim sempre remetem à mensagem de Fátima e à Consagração da Rússia que Ela pediu quando apareceu aos três pastorinhos. É bem verdade que o mundo inclui a Rússia, mas não é menos verdade que, neste caso, o todo termina por obscurecer a parte, e a referência ao mundo inteiro faz perder de vista a referência àquela nação particular. Consagrar o mundo e consagrar a Rússia não é a mesma coisa, da mesma forma que – mutatis mutandis – receber uma bênção Urbi et Orbi pela televisão não é o mesmo que ser diretamente abençoado pelo Papa após uma audiência particular.

Desde Pio XII – que parece ter sido o primeiro pontífice a inaugurar a série de consagrações do mundo que se seguiram a ele – o mundo é consagrado ao Imaculado Coração da Virgem. Nunca o nome da Rússia se ouviu nessas cerimônias. O que explica esta aparente insistência em sistematicamente evitar fazer o que Nossa Senhora pediu em Fátima?

A resposta é simples. Não se trata, aqui (ao menos não diretamente), da revelação de Fátima. Quem pediu a Consagração do Mundo ao Imaculado Coração de Maria foi a Beata Alexandrina Maria da Costa de Balazar, portuguesa, contemporânea dos videntes de Fátima e «vítima da Eucaristia». A festa litúrgica dela é precisamente no dia 13 de outubro, e portanto era certamente esta beata que o Papa Francisco tinha em mente quando, domingo passado, consagrou mais uma vez o mundo à Santíssima Virgem. Não é uma desobediência aos pedidos de Fátima. É, ao contrário, atender aos pedidos da Beata Alexandrina.

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É claro que as duas consagrações – a da Rússia e a do mundo – não são excludentes. Mas elas também não se confundem. Foi o próprio Papa João Paulo II quem disse, no ato mesmo de consagrar o mundo ao Imaculado Coração de Maria, que a Virgem Santíssima ainda esperava que certos povos Lhes fossem consagrados de maneira particular. Disse-o (pelo menos) duas vezes, em 1981 e em 1984 (grifos e destaques no original).

Em 1981:

«Ó Mãe dos homens e dos povos, Vós conheceis todos os seus sofrimentos e as suas esperanças, Vós sentis maternalmente todas as lutas entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas, que abalam o mundo, acolhei o nosso brado, dirigido no Espírito Santo directamente ao vosso Coração, e abraçai com o amor da Mãe e da Serva do Senhor aqueles que mais esperam por este abraço e, ao mesmo tempo, aqueles cuja entrega também Vós esperais de maneira particular. Tomai sob a vossa protecção materna a família humana inteira, que, com enlevo afectuoso, nós Vos confiamos, ó Mãe. Que se aproxime para todos o tempo da paz e da liberdade, o tempo da verdade, da justiça e da esperança».

E em 1984:

Mãe da Igreja! Iluminai o Povo de Deus nos caminhos da fé, da esperança e da caridade! Iluminai de modo especial os povos dos quais Vós esperais a nossa consagração e a nossa entrega. Ajudai-nos a viver na verdade da consagração de Cristo por toda a família humana do mundo contemporâneo.

Ou seja: mesmo João Paulo II acreditava que a SSma. Virgem “esperava” a consagração de alguns povos especiais, feita «de maneira particular», e isso mesmo depois do mundo já haver sido anteriormente consagrado ao Seu Imaculado Coração. As duas consagrações não são portanto idênticas, não se confundem e uma delas não “realiza” automaticamente a outra.

É digna de nota esta recusa sistemática em se fazer a consagração nominal da Rússia. Muitos teólogos da conspiração vêem nisso um dos sinais de apostasia da Igreja (ou qualquer besteira do tipo), o que não faz sentido algum e se deve rechaçar com veemência.

A mensagem de Fátima, em que pese a sua importância, é revelação particular. Ora, ninguém se torna herege por não dar crédito a uma revelação particular. Se – por – absurdo os Papas não acreditassem em Fátima, eles não seriam menos Papas por causa disso. Portanto, a não-consagração da Rússia não teria jamais o condão de conduzir a indefectível Igreja de Deus à apostasia; e, por maiores que fossem os pecados de quem se recusasse a atender um pedido da Virgem Mãe de Deus, tal pessoa continuaria perfeitamente católica.

Logo, ainda que um Papa desprezasse a mensagem de Fátima, a Igreja por ele capitaneada continuaria sendo, mesmo assim, o infalível canal dos favores de Deus, a única Arca da Salvação, e a submissão a ele continuaria sendo absolutamente necessária a cada homem que quisesse salvar a própria alma.

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Parece que a Consagração de Fátima não foi feita. Foram feitas outras consagrações pedidas por pessoas santas, que deram incontestáveis frutos: após elas, o Comunismo – ao menos em suas formas mais radicais – caiu junto com o Muro de Berlim. Mas parece que falta ainda alguma coisa; parece que a Rússia espalhou, sim, os seus erros pelo mundo; parece que ela não se converteu; e, principalmente, parece que não estamos vivendo o triunfo do Imaculado Coração da Virgem.

O texto do Segundo Segredo parece corroborar esta nossa impressão. As exatas palavras de Nossa Senhora, pelo que sabemos, são estas aqui:

— Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores, para as salvar, Deus quer establecer no mundo a devoção a meu Imaculado Coração. Se fizerem o que eu disser salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra peor. Quando virdes uma noite, alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai a punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz, se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sufrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será consedido ao mundo algum tempo de paz.

São palavras que a maior parte de nós conhecemos muito bem. Não são, contudo, as únicas coisas que a SSma. Virgem disse em Fátima. Não está em nosso poder consagrar ou deixar de consagrar nação alguma. Mas há uma coisa, sim, que cada um de nós pode e deve fazer muito antes de se preocupar com a conversão da Rússia: zelar pela nossa própria conversão e pela salvação da nossa própria alma. Afinal, a Virgem Santíssima também nos mandou fazer penitência e rezar o terço todos os dias. E que importância temos dado a esses Seus rogos?

Cumpre-nos fazer o que está a nosso alcance fazer. Não caiamos na insensatez de nos preocuparmos mais com a conversão da Rússia do que com a nossa própria salvação. Afinal de contas, do Triunfo do Imaculado Coração da Virgem nós temos a certeza: Ela o prometeu em Fátima! Da salvação da nossa alma, contudo, nós não temos promessa alguma. É com isso, portanto, que nós temos que nos preocupar. É esta e não outra a parte da Mensagem de Fátima que nós temos que nos esforçar primeiramente por cumprir.