E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – I

O Rorate Coeli estampou hoje, com alarde, uma carta aberta de S. E. R. Dom Jan Pawel Lenga, bispo emérito de Karaganda (Cazaquistão), a respeito da crise da Igreja. O Fratres in Unum já a traduziu. Um dos seus pontos mais impactantes – e que consta até mesmo como subtítulo da chamada – é o que diz ser «difícil acreditar que o Papa Bento XVI tenha renunciado livremente [ao] seu ministério como sucessor de Pedro».

O problema é de ordem estritamente canônica. O Código atualmente vigente diz o seguinte:

Cân. 188 — A renúncia apresentada por medo grave, injustamente incutido, por dolo ou erro substancial ou feita simoniacamente, é inválida pelo próprio direito.

E ainda:

Cân. 332 — (…) § 2. Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao cargo, para a validade requer-se que a renúncia seja feita livremente, e devidamente manifestada, mas não que seja aceite por alguém.

O que o Direito dispõe é bastante lógico e justo: para a renúncia ser válida, ela precisa ser livre. O problema, assim, coloca-se com clareza: se o Papa Bento XVI não renunciou livremente, se ele o fez motivado por alguma espécie de medo grave, então esta sua renúncia não foi válida. Logo, ele jamais deixou de ser Papa. Logo, a Sé não ficou vacante, o Conclave foi convocado ilegitimamente e o Papa Francisco não é Papa verdadeiro, senão um usurpador.

O raciocínio parece sedutor. Os seus sucessivos passos parecem muito bem concatenados. Cada consequente parece decorrer, por exigência lógica, do seu antecedente.

No entanto, alguma coisa incomoda: a conclusão parece não estar muito bem. A seguir-lhe ferreamente, às últimas consequências, então tudo fica dependendo das disposições interiores do Papa Bento XVI naquele fatídico 11 de fevereiro. Tudo – a validade da eleição do Papa Francisco e todos os sucessivos atos de governo que se lhe seguiram, as nomeações episcopais, os consistórios, as normas canônicas promulgadas nos últimos dois anos, as canonizações, tudo – fica dependente do grau de liberdade subjetivo com o qual Bento XVI proferiu a Declaratio da Grã-Renúncia.

E isso não faz o menor sentido. Não dá para edificar todo o colosso da Igreja unicamente sobre as disposições subjetivas de um homem, por mais importante que ele seja. Não tem lógica absolutamente nenhuma fazer a validade de tudo o que é de competência eclesiástica – por natureza visível e externo – depender de determinadas condições subjetivas que ninguém tem condições de perscrutar com exatidão. Tal seria o triunfo completo do subjetivismo. A insegurança generalizada.

Faça-se um pequeno exercício de imaginação. Imagine-se que S.S. Francisco não seja Papa. Então

i) os cardeais que ele criou não são cardeais verdadeiros e, portanto, não têm direito a voto em um eventual futuro conclave – o que, com o passar do tempo, iria fazer não só com que ele próprio não fosse Papa legítimo mas com que fosse canonicamente impossível eleger um Papa legítimo, uma vez que a Capela Sistina teria cada vez mais homens fantasiados de púrpura e cada vez menos Príncipes verdadeiros da Igreja de Cristo;

ii) os bispos que ele nomeou igualmente não têm jurisdição verdadeira sobre as suas dioceses, o que acarreta a invalidade de todos os sacramentos cujo exercício depende de jurisdição eclesiástica – i.e., os matrimônios e as confissões;

iii) os santos que ele canonizou não são santos verdadeiros e, portanto, a infalível Igreja de Deus está, pública e universalmente, prestando um falso culto a homens comuns, usurpadores da glória dos altares;

iv) etc.

É até possível arranjar subterfúgios para fugir aos pontos i) e ii) acima. Quanto ao primeiro, é possível dizer que a Sé há de ficar vacante no momento em que Bento XVI morrer – e, a partir de então, um Papa pode vir a ser eleito legitimamente, ainda que objetivamente violando (mas em boa fé) certos dispositivos de direito eclesiástico. Quanto ao segundo, bom, é sempre possível aplicar o supplet Ecclesia – e, assim, garante-se a graça sacramental aos ignorantes sem maiores dificuldades.

Mas quanto ao terceiro não dá para tergiversar. Se o Papa Francisco não é Papa, então a Igreja está prestando um falso culto a todos os santos que ele canonizou de 2013 pra cá. E a Igreja, que é infalível em Sua liturgia, simplesmente não pode prestar um culto falso. Se o fizer, Ela deixa de ser Igreja. O problema não se resume, portanto, a uma questão de a Igreja estar temporariamente acéfala – fato extremamente banal e corriqueiro. Se o Papa Francisco não fosse Papa, a Igreja Católica, a Igreja de Cristo, a Igreja visível, estaria fazendo, hoje mesmo, uma coisa que Ela simplesmente – por promessa divina – não pode fazer: prestando um culto litúrgico espúrio.

Deixou de existir, portanto, Igreja visível. Recaem-se, aqui, em rigorosamente todos os problemas do sedevacantismo “clássico” (o que remete a Paulo VI, João XXIII, Pio XII ou seja lá até onde se deseje retroceder a vacância da Sé Apostólica). Estarão os críticos do Papa Francisco dispostos a aceitar tanto? Ou não pensaram jamais nisso – e acham que a hipótese de um falso Papa no sólio pontifício com o soberano legítimo ainda vivo é de algum modo menos problemática do que a de uma Igreja com o trono abandonado, esquecido e empoeirado por gerações a fio?

A nós não cabe senão continuar lutando

“Forçar conversões” é uma expressão que não tem o menor sentido. O ato de Fé é por definição um ato livre (este é aliás o fundamento positivo da liberdade religiosa) mediante o qual o intelecto, obedecendo à vontade movida pela graça, adere àquelas verdades reveladas por Deus e assim propostas pela Igreja. Não é portanto possível forçar ninguém a se converter; o que se consegue é, no máximo, um simulacro exterior sem nenhum compromisso de assentimento interno – e que, portanto, não é uma conversão verdadeira.

Ninguém pode ser, portanto, coagido a abraçar a Fé Católica: esta é uma verdade que, a despeito dos equívocos históricos por vezes cometidos por reis e imperadores, sempre integrou o patrimônio intelectual da Igreja. No entanto, os contornos do que se pode chamar aqui de «coação» são às vezes tênues. Sabe-se que ela não necessariamente precisa ser física, podendo se apresentar sob a forma de coação moral ou psicológica: isto é, é possível – note-se que digo apenas possível – que o consentimento interior de alguém que sofre intensa pressão social (digamos, de familiares) esteja tão viciado quanto o de um judeu que se fazia cristão-novo unicamente por medo do degredo.

O termo proselitismo tem, atualmente, a conotação negativa de uma pregação insistente cujo intento é coagir o destinatário a abraçar determinada mensagem. Basta notar o quanto a expressão em geral está ligada a determinada espécie de pregação protestante (geralmente neopentecostal ou da assim chamada teologia da prosperidade). A despeito de o uso do termo estar totalmente desvirtuado de sua acepção etimológica original (“prosélito” é meramente um neo-converso, sem nenhuma conotação de sectarismo ou coisa parecida), não se pode ignorar o fato de que, no seu emprego coloquial, o termo carrega uma não negligenciável carga negativa.

Não foi outra a razão pela qual Bento XVI, quando esteve no Brasil, disse que «[a] Igreja não faz proselitismo. Ela cresce muito mais por “atração”: como Cristo “atrai todos a si” com a força do seu amor» (Missa de abertura do CELAM13 de Maio de 2007). A rigor, a Igreja faz prosélitos sim; contudo – e este o sentido da declaração pontifícia -, Ela os faz livremente, e não por coação de nenhuma natureza.

O mesmo Bento XVI, dois dias antes, usava o termo exatamente neste sentido que se está aqui expondo: referiu-se às «pessoas mais vulneráveis ao proselitismo agressivo das seitas» e chamou a atenção para «certas formas de proselitismo, frequentemente agressivo» (Encontro com os bispos do Brasil11 de maio de 2007). Não há portanto margem para dúvidas: no discurso católico contemporâneo, o termo designa certa pressão psicológica empregada com vistas a dobrar a vontade de um terceiro e coagi-lo a “abraçar” determinado credo religioso – e não o mero fato de ajudar alguém a se tornar católico.

A conversão é ainda e sempre necessária. Por incontornável exigência filosófica, portanto, são também necessários os meios para a facilitar: chame-se-lhes proselitismo, apostolado, apologética. Todos esses, contudo, no seu sentido original e próprio, distantes do teor pejorativo que hoje detêm. Stat rosa pristina nomine. A nós não cabe senão continuar lutando. Independente do nome que dêem à batalha.

Bento XVI desautoriza o professor Ratzinger a respeito da comunhão dos divorciados

Há alguns meses, o Card. Kasper começou a fazer alvoroço em público com as suas teses a respeito da admissibilidade dos divorciados recasados à comunhão eucarística. Conhecemos a história: em um seu artigo publicado no início do ano, o prelado apresentava as suas idéias e coligia os fundamentos que julgava possível apresentar na defesa delas.

O passo do prelado, contudo, foi maior do que as suas pernas. Ele poderia ter somente defendido a sua posição particular nesta seara; para angariar maior força de persuasão, contudo, julgou preferível trazer para junto de si a opinião abalizada de um dos maiores teólogos da atualidade. Resolveu defender «la práctica de la tolerancia pastoral, de la clemencia y de la indulgencia» baseando-se em ninguém mais, ninguém menos do que Joseph Ratzinger.

À época, Kasper desenterrou um artigo publicado em 1972 pelo então prof. Ratzinger, e o apresentou aos seus leitores da seguinte maneira:

A Igreja dos primórdios dá-nos uma indicação que pode servir como caminho para escapar a este dilema, ao qual o professor Joseph Ratzinger já fez menção em 1972. […] Nas Igrejas locais havia um direito consuetudinário, de acordo com o qual os cristãos que viviam um segundo vínculo [matrimonial], mesmo que o primeiro cônjuge ainda estivesse vivo, depois de um tempo de penitência tinham à sua disposição […] não um segundo matrimônio, mas – através da participação da comunhão [eucarística] – uma tábua de salvação. […]

[…]

J. Ratzinger sugeriu [em 1972] retomar de maneira nova essa posição de [São] Basílio. Pareceria uma solução apropriada, solução esta que está na base das minhas reflexões.

As conclusões agora apresentadas por Kasper apoiavam-se, de fato, em um nome vultoso. A solução que ele ressuscitava agora tinha o inegável mérito de ter sido já defendida, na década de 70, pelo acadêmico Joseph Ratzinger. O arranjo fora muito bem preparado. Kasper só não contava com um pequeno detalhe: Bento XVI ainda estava vivo, lúcido e não gostou nem um pouco da maneira como o seu artigo (de há mais de quatro décadas) fora citado.

A honestidade intelectual é uma virtude delicada; ela exige que não utilizemos as palavras de terceiros de modo a apresentar um retrato do seu pensamento com o qual eles próprios não concordariam. E, após ter já publicado – enquanto cardeal e enquanto Papa – diversos trabalhos nos quais concluía a respeito da inadmissibilidade da comunhão eucarística aos recasados, Bento XVI não se reconheceu nos textos que escrevera no início dos anos 70, agora requentados para defender uma bandeira com a qual, em absoluto, o antigo Papa não concorda.

E a resposta veio nos últimos dias [p.s.: ver abaixo]: o Bispo Emérito de Roma republicou o seu artigo de 1972, com uma retractatio em sua parte final redigida agora em 2014, onde revisa a sua posição anterior. A atitude me surpreendeu por diversos motivos.

Primeiro porque tal não seria a rigor necessário, uma vez que a posição de Bento XVI a respeito do tema era já suficientemente clara a partir dos seus textos posteriores (entre os quais merece menção, para ficar somente em um exemplo, esta carta assinada de próprio punho pelo Card. Ratzinger em 1994). Mas parece que o acadêmico sentiu-se particularmente ofendido com a mera possibilidade de ter o seu nome associado às teses de Kasper e, portanto, julgou oportuno fazer a retratação.

Segundo porque penso que o fato é inédito. Não me recordo de nenhuma outra ocasião em que Bento XVI tenha rechaçado explicitamente as posições que assumira nos anos anteriores ao cardinalato e à presidência da Congregação para a Doutrina da Fé; pelo contrário, já o ouvi até dizer que foi a revista Concilium (de cuja fundação o jovem Ratzinger participou e que se consagrou mais tarde como um famoso veículo de doutrinas pouco católicas) quem mudou de orientação, e não ele próprio. O gesto abre um importante precedente (que era óbvio, mas a respeito do qual não se pode mais, agora, alegar dúvidas): não é possível transpôr acriticamente os antigos escritos do teólogo Ratzinger para os dias atuais, passando por cima dos debates teológicos que se travaram ao longo das últimas décadas e em cujo cerne o autor – primeiro como prefeito do Santo Ofício e, depois, como Papa – ocupou muitas vezes um lugar de indiscutível proeminência.

Terceiro, por fim, porque a decisão de Bento XVI coloca o seu conterrâneo em uma verdadeira saia justa. Rompendo o silêncio do seu pontificado emérito, ele desautoriza simultaneamente as teses de Kasper e os expedientes do qual este lançou mão para as fazer valer: tomando importante partido nesta importantíssima discussão contemporânea, não faltou quem dissesse que Bento XVI, agora, provoca uma reviravolta e passa a pautar o Sínodo da Família. Não me parece que tenha sido a atitude mais deferente do mundo; contudo, parece que estamos em uma daquelas situações em que se exige que a defesa categórica da Fé seja colocada acima da polidez política. Que seja bem-vindo o auxílio do Pontífice do passado.

[P.S.: Na verdade, a retratação não é assim tão recente e, portanto, não pode ser associada diretamente aos acontecimentos do Sínodo. Em uma entrevista publicada no último domingo (07/12) por um jornal alemão, «[o] jornalista lhe perguntou [a Bento XVI] se desta maneira [com a revisão do artigo] quis adotar uma postura no Sínodo dos Bispos sobre a família, recentemente celebrado no Vaticano, e o Papa emérito qualificou esta afirmação como sendo um absurdo total, já que não interveio nem quis intervir nas questões tratadas no sínodo extraordinário sobre a família e a revisão do volume foi feita antes do Sínodo». Deve ser lida assim, penso eu, como uma resposta aos ensaios de Kasper a respeito da comunhão dos divorciados recasados (feitos já no começo do ano), mas não diretamente ao dissenso cardinalício que se instaurou imediatamente antes e durante o Sínodo recém-encerrado.]

E isso sem falar da humildade necessária para se fazer assim, já no fim da vida, uma retratação pública de repercussão tão ampla: Bento XVI é realmente uma personalidade assombrosa, cuja envergadura intelectual não pode ser posta em dúvida. Nem tampouco a sua dedicação à Igreja…! Nem tampouco o amor à Verdade que o levou a grafar aquele Cooperatores Veritatis em seu brasão episcopal. Sim, há homens para os quais a Verdade está acima de sua imagem e prestígio pessoais. Que as novas gerações o aprendam deste ancião admirável.

Jornal “A Tarde” publica matéria sobre Missa Tridentina em Salvador

[A Missa Tradicional celebrada em Salvador – cujo aniversário de dois anos foi anunciado aqui – foi assunto de uma simpática matéria no “A Tarde”, conhecido jornal da Bahia. Reproduzo abaixo o .pdf que recebi por email, agradecendo ao meu caro amigo soteropolitano pela gentileza do envio.

Maravilhosa a explicação do pe. Gilson: “O sacerdote não está de costas para o povo, mas, com o povo, olha o oriente”. E isso, que não ouvimos nas nossas paróquias, exposto assim com clareza e sem preconceitos num jornal secular! São as pedras falando, porque se calaram os que tinham o dever de instruir o povo de Deus.

Cliquem nas fotos (ou aqui) para obterem o arquivo .pdf em maior resolução.]

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«Entendo o mal-estar, mas na Igreja ou se caminha com o Papa ou se vai em direção ao cisma» – Massimo Introvigne

[Original: Il Foglio
Fonte: Infovaticana
Tradução: Wagner Marchiori]

Entendo o mal-estar, mas na Igreja ou se caminha com o Papa ou se vai em direção ao cisma

Como sociólogo li com interesse o artigo de Alesssandro Gnocchi e Mario Palmaro que testemunha um mal estar em relação a [certos] gestos e atitudes do Papa Francisco, que também vi em setores minoritários, mas não irrelevantes na Igreja. Tal mal-estar, assumido e transformado em reflexão e cultura, pode ser útil; e creio que o próprio Papa Francisco o previu e o tem em conta em sua visão de uma Igreja na qual, como gosta de explicar, a unidade não se confunde com a uniformidade.

O mal-estar não deve ser confundido com o rechaço do Magistério Ordinário, já que essa atitude leva ao cisma. A tese pode parecer forte, mas é inteligível à luz do passado recente.

O venerável Paulo VI buscou evitar certas sequelas do pós-Concílio, a partir, ao menos, de 1968. Diante disso, os progressistas se recusaram a segui-lo  sustentando que os pronunciamentos do Papa não eram infalíveis e constituíam simples indicações pastorais das quais se poderia discordar permanecendo bons católicos.

E assim continuou com o beato João Paulo II. O cardeal Ratzinger e o cardeal Scheffczyk replicaram afirmando que nem todo o Magistério é infalível – uma solene besteira da qual não conheço defensores sérios – mas, também, não se pode ser católico aceitando somente os raríssimos pronunciamentos infalíveis dos Pontífices. Para estar na Igreja é necessário caminhar com os Papas e deixar-se guiar por seu magistério cotidiano. Fora deste caminho estreito está o caminho largo que leva ao cisma.

É um risco – para usar categorias políticas não de todo pertinentes, mas que ajudam a entender – para a esquerda. Mas é um risco também para a direita, onde – naturalmente a propósito de textos diversos dos criticados pelos progressistas – se começou a repetir a mesma cantilena segundo a qual, por exemplo, certos documentos do Concílio Vaticano II não são infalíveis e são meramente pastorais e, por isso, poderiam ser tranquilamente ignorados ou rechaçados.

Bento XVI tratou de pôr ordem no debate com sua famosa proposta da “hermenêutica da reforma na continuidade”, que convidava a acolher lealmente os elementos de reforma do Concílio, interpretando-os não contra o Magistério precedente, mas, sim, tendo-o em conta. A proposta foi rechaçada pela esquerda e, com frequência, mal entendida pela direita.

A direita aplaudiu a continuidade esquecendo-se da reforma e acreditou que o Papa autorizava a acolher, do Vaticano II, somente aquilo que tivesse apresentado de modo novo (‘nove’) o que já era ensinado antes, rechaçando o que era, de fato, “novum”, novo, não – segundo Bento XVI – em contradição com o Magistério precedente, mas certamente não redutível a ele. E não era isso. Esta “direita” interpretou o discurso de despedida aos párocos romanos de 14 de fevereiro de 2013 como uma admissão de que a hermenêutica da continuidade havia fracassado. Na realidade, o que realmente havia fracassado era a tentativa de usar Bento XVI para rechaçar o Concílio.

Reivindicando orgulhosamente seu papel de teólogo no Concílio naquela “aliança renana” dos padres conciliares alemães, franceses, belgas e holandeses que propuseram algumas das principais reformas do Vaticano II, o Papa Ratzinger esclarecia, justo no momento de deixar a cátedra petrina, que nada em seu pontificado autorizava rechaçar a reforma em nome da continuidade.

É possível que o Papa Francisco realize outras reformas na Igreja que o fiel católico deverá acolher com docilidade e sem procurar lê-las como contrárias aos ensinamentos dos pontífices precedentes, mas, sim, tendo-os em conta. Na encíclica “Caritas in Veritate”, Bento XVI esclareceu que  a hermenêutica da “reforma na continuidade” não diz respeito apenas ao Vaticano II, mas a toda a vida da Igreja.

A fórmula de Bento XVI será de grande ajuda para metabolizar o mal-estar e para transformá-lo em uma voz útil na grande sinfonia da Igreja. Construir a continuidade como rechaço da reforma ou declarar que se quer seguir o Papa somente em seus pronunciamentos infalíveis – dois por século – confinando todo o resto na esfera do “falível” e que pode ser ignorado leva, talvez sem se perceber, ao cisma.

di Massimo Introvigne

A “reforma histórica” do Papa Francisco (II) – Os casais divorciados

Dando continuidade ao que já comecei a escrever aqui anteriormente, um outro tema eclesiástico passível de «reforma» com conseqüências que só posso considerar nefastas é a situação dos casais católicos que vivem em «segunda união».

O problema é muito grave; Bento XVI não teve receios de o classificar como «una vera piaga» dos tempos modernos (“uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo”, na tradução controversa que está no site do Vaticano). É uma «praga», sim, mas é também e principalmente uma chaga, uma ferida, que é a tradução mais exata do «piaga» italiano.

Digo que é uma «chaga» porque é uma situação indiscutivelmente dolorosa para os envolvidos, que contam com bem poucas opções: ou esperam a morte do primeiro cônjuge, ou abandonam a sua segunda família (que muitas vezes se trata da família de fato), ou recorrem aos tribunais de nulidade.

Aguardar a morte do cônjuge verdadeiro é uma “solução” que, na prática, não se trata de solução nenhuma. Primeiro porque não há nada que se possa fazer concretamente aqui (assassinar o cônjuge, além de ser um evidente pecado contra o Quinto Mandamento, ainda é, segundo o Direito Canônico, impeditivo para a contração de novas núpcias). Segundo porque condicionar a saúde da própria alma à morte de alguém com quem já se relacionou no passado é no mínimo mesquinho, e não raro monstruoso e doentio. Terceiro porque devem ser bem poucos os casos que são “resolvidos” desta maneira, uma vez que o mais natural é que ambos os cônjuges levem uma vida mais ou menos longa e, portanto, é de se esperar que o bafo frio da Morte só rompa os liames do Sagrado Matrimônio quando constituir uma nova família não tenha mais o vicejo atraente com o qual a idéia se apresentava quando ainda se era relativamente jovem.

Abandonar a/o amante é sem dúvidas a solução mais radicalmente correta: o ímpeto de «mudar de vida» é a conseqüência mais óbvia que se espera de alguém que passe a ter consciência de estar vivendo em pecado grave. Trata-se de uma opção heróica cujo valor não pode ser minimizado: de forma alguma! No entanto, as coisas no mundo real muitas vezes não são assim tão simples. Como falei, por vezes acontece da «segunda união» ser a união de fato: os esposos podem estar já juntos há anos, décadas talvez, podem já ter patrimônio comum e (mais grave) filhos, para os quais a separação dos pais não tem um efeito menos daninho do que um divórcio para os filhos legítimos de um casal regularmente casado

[É preciso registrar aqui uma segunda modalidade de «abandonar a/o amante»: trata-se do que o próprio Bento XVI expôs na seguinte passagem da Sacramentum Caritatis: «Enfim, caso não seja reconhecida a nulidade do vínculo matrimonial e se verifiquem condições objectivas que tornam realmente irreversível a convivência, a Igreja encoraja estes fiéis a esforçarem-se por viver a sua relação segundo as exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente abeirar-se da mesa eucarística, com os cuidados previstos por uma comprovada prática eclesial. Para que tal caminho se torne possível e dê frutos, deve ser apoiado pela ajuda dos pastores e por adequadas iniciativas eclesiais, evitando, em todo o caso, de abençoar estas relações para que não surjam entre os fiéis confusões acerca do valor do matrimónio». Trata-se, em suma, de manter em tudo a vida familiar já estabelecida, à exceção das práticas sexuais. Infelizmente, a “invisibilidade” deste sacrifício (uma vez que, de fora, nada muda na vida do casal) e o alto grau de heroísmo que ele exige (mais ainda do que o abandono puro e simples, uma vez que a coabitação, mesmo «como irmão e irmã», comporta uma ocasião de pecado objetiva nada negligenciável) tornam-no tremendamente difícil e impopular para resolver um problema generalizado como este que estamos aqui abordando.]

Sobram os «tribunais de nulidade», sobre os quais Bento XVI falou na exortação pós-sinodal anteriormente citada:

Nos casos em que surjam legitimamente dúvidas sobre a validade do Matrimónio sacramental contraído, deve fazer-se tudo o que for necessário para verificar o fundamento das mesmas. Há que assegurar, pois, no pleno respeito do direito canónico, a presença no território dos tribunais eclesiásticos, o seu carácter pastoral, a sua actividade correcta e pressurosa; é necessário haver, em cada diocese, um número suficiente de pessoas preparadas para o solícito funcionamento dos tribunais eclesiásticos. Recordo que «é uma obrigação grave tornar a actuação institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais acessível aos fiéis».

Eu morro de medo de tribunais de nulidade, ou melhor, da popularização dos tribunais de nulidade. E isso porque a (enorme!) distinção entre nulidade e anulação é muito difícil de ser assimilada pelas massas. Exteriormente, visivelmente, para a imensa maioria das pessoas uma declaração de nulidade em nada se distingue de uma certidão de divórcio: trata-se de um documento que permite à pessoa “casar de novo”.

Mais ainda: pela minha experiência, dado o estado de miséria religiosa em que se encontra atualmente a maior parte dos católicos, estou intimamente convencido de que o número de Matrimônios nulos atinge facilmente a casa dos 50%. Ora, se os Tribunais Eclesiásticos dessem uma Certidão de Nulidade para cada Matrimônio que de fato é nulo, isso bastaria para que as taxas de nulidade católica se igualassem às de divórcios nos Cartórios Civis! Que golpe mais duro se poderia dar no Matrimônio que a Igreja prega ser «indissolúvel»?

Em uma das crônicas compendiadas no “Claro Escuro” de Gustavo Corção, ele fala que há casais para os quais seria justificável o divórcio. Não obstante, mesmo a estes casais o divórcio não deveria ser concedido, porque o Matrimônio é uma instituição cuja importância transcende os casais concretos: estes deveriam permanecer casados para dar exemplo e testemunho da indissolubilidade matrimonial aos demais casais do mundo. Mutatis mutandis, penso que o mesmíssimo se aplica aos casos de nulidade matrimonial: nem todos os casamentos nulos deveriam receber uma certidão de nulidade, porque a irrevogabilidade dos juramentos prestados diante do altar de Deus é um bem a ser preservado acima dos interesses dos particulares, por legítimos que estes sejam.

É portanto com temor e apreensão que eu vejo uma certa «popularização» dos tribunais de nulidade como se estes fossem “a Solução” para os casais recasados, quando para mim é óbvio que a verdadeira solução só pode ser impedir que “católicos” irresponsáveis simulem sacramentos na Igreja de Deus. Enquanto não se quiser enfrentar este problema com a seriedade que ele exige, ulteriores tentativas de consertar erros passados só vão aumentar ainda mais aquela «chaga» que Bento XVI deplorava na Sacramentum Caritatis.

Como vimos, Bento XVI já clamava por «tornar a actuação institucional da Igreja nos tribunais [de nulidade] cada vez mais acessível aos fiéis», e isso já me dava um frio na espinha. O Papa Francisco parece determinado a pôr isso em prática. Na entrevista realizada no vôo de volta a Roma após a JMJ, ao ser perguntado sobre este assunto, o Sumo Pontífice deu a seguinte resposta:

Este é um tema que sempre pedem. A misericórdia é maior do que aquele caso que o senhor põe. Eu creio que este seja o tempo da misericórdia. (…) Mas os próprios ortodoxos – e aqui abro um parêntese – têm uma prática diferente. Eles seguem a teologia da economia, como eles dizem, e dão uma segunda possibilidade, permitem-no. Mas eu acho que este problema – e fecho o parêntese – deve ser estudado no quadro da pastoral do matrimônio. E, para isso, temos duas coisas: primeira, um dos temas a consultar a estes oito cardeais do Conselho dos Cardeais, com quem nos reuniremos nos dias 1, 2 e 3 de outubro, é como avançar na pastoral do matrimônio, e este problema será lançado lá. E uma segunda coisa: esteve comigo, quinze dias atrás, o secretário do Sínodo dos Bispos, para ver o tema do próximo Sínodo. O tema seria antropológico, mas olhando-o de um lado e de outro, indo e vindo, encontramos este tema antropológico: a fé como ajuda no planejamento da pessoa, mas na família para se debruçar depois sobre a pastoral do matrimônio. Estamos a caminho de uma pastoral do matrimônio um pouco mais profunda. E este é um problema de todos, porque há muitos, não? Por exemplo – digo apenas um – o cardeal Quarracino, meu predecessor, dizia que para ele metade dos matrimônios são nulos. Mas dizia isso, porquê? Porque casam-se sem maturidade, casam-se sem notarem que é para toda a vida, ou casam-se porque socialmente se devem casar. E com isso tem a ver a própria pastoral do matrimônio. E também o problema judicial da nulidade dos matrimônios: isso deve ser revisto, porque os Tribunais eclesiásticos não são suficientes para isso. É complexo o problema da pastoral do matrimônio. Obrigado!

A referência à epikéia ortodoxa, mesmo feita entre parênteses, é significativa e angustiante. Os cismáticos orientais não acreditam na indissolubilidade matrimonial; permitem segundas (e terceiras… e quartas…) núpcias em alguns casos, ao arrepio da Lei de Deus. Obviamente, eu não penso que o Papa vá introduzir esta praxis herética no Ocidente, mas há uma maneira muito simples de seguir-lhe o espírito mesmo respeitando a Doutrina e o Direito: basta estimular os católicos a pleitearem a nulidade do seu primeiro Matrimônio nos Tribunais Eclesiásticos! Doutrinariamente perfeito, canonicamente impecável, pastoralmente desastroso. Se já é difícil às pessoas acreditarem na santidade do Matrimônio, quando se passarem a realizar na Igreja segundas núpcias à mesma proporção que “recasamentos” civis nos Foros de Justiça aí é que o número de matrimônios inválidos vai aumentar ainda mais!

Quem quer que passe os olhos sobre as notícias atuais percebe que a questão dos divorciados na Igreja está na ordem do dia. Ainda não se sabe exatamente o que o Sumo Pontífice vai dispôr para a Igreja; mas dessa “reforma histórica” pode muito bem vir algo de muito, muito ruim. Rezo para que o Espírito Santo ilumine o Vigário de Cristo e ele me surpreenda positivamente neste assunto: porque, se a Igreja continuar no caminho que vem há anos ensaiando, a terrível chaga do divórcio na sociedade contemporânea só vai se tornar maior, mais purulenta e mais difícil de ser sanada.

Outro Papa escreve a outro ateu

À semelhança do que o Papa Francisco fez recentemente, Bento XVI também escreveu uma carta a um ateu italiano. Piergiorgio Odifreddi é matemático e escreveu um livro – Caro Papa, ti scrivo – onde expõe as suas opiniões no formato de uma missiva ao Bispo de Roma que, hoje emérito, dignou-se dirigir-lhe uma resposta. A íntegra da carta assinada por Bento XVI tem 11 páginas, algumas das quais foram publicadas pelo La Repubblica. O Marcio Campos traduziu-lhe alguns trechos e os colocou no Tubo de Ensaio. Destaco somente um:

[S]e o senhor quer substituir Deus com “a Natureza”, fica uma questão: quem, ou o que é essa Natureza. O senhor não a define em nenhum ponto; ela aparece, então, como uma divindade irracional que não explica nada. Queria, então, acima de tudo deixar claro que na sua religião da Matemática ficam de fora três temas fundamentais da existência humana: a liberdade, o amor e o mal. Eu me surpreendo com o fato de o senhor, em uma única tacada, destruir a liberdade, que foi e é um valor fundamental da época moderna. O amor, em seu livro, não aparece; e mesmo sobre o mal não há nenhuma informação. Independentemente do que as neurociências digam ou deixem de dizer sobre a liberdade, no drama real de nossa história ela está presente como realidade determinante, e deve ser levada em consideração. Mas a sua religião matemática não conhece informação alguma sobre o mal. Uma religião que despreze essas perguntas fundamentais se esvazia.

E, como eu já tive a oportunidade de dizer outras vezes no Deus lo Vult! [p.ex. aqui], simplesmente dizer que não há causas ou atribuí-las a entes indefinidos (a “Natureza”, o “Acaso”, etc.) não é explicar rigorosamente nada. É na verdade o contrário mesmo de uma explicação: é um atestado de ignorância, é se esquivar a enfrentar as perguntas para as quais, por vias complementares, Filosofia e Religião sempre se empenharam em buscar respostas. Que certas pessoas imaginem poder calar dúvidas históricas do ser humano à força de repetir «não sei» é um evidente indício de decrepitude da razão, e não de florescimento intelectual.

Mas o mais engraçado dessa história é a genial perspicácia da nossa classe jornalística, rasa como um pires barato. A foto abaixo é a abordagem que o recifense Jornal do Commercio fez hoje sobre o assunto:

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Não vou nem mencionar a obviedade estampada na manchete (raios, o que eles esperavam que o Papa dissesse?!). Destaco o seguinte trecho, já no penúltimo parágrafo: «os textos [a carta anterior do Papa Francisco e esta agora de Bento XVI] mostram que o papa e o papa emérito têm a mesma opinião sobre determinados assuntos e alimentam especulações de que estejam trabalhando em conjunto».

Em nenhum momento parece ter passado pela cabeça do autor deste período que a «opinião» de ambos sobre Deus e o ateísmo é a mesma porque, ora bolas, todos os dois são católicos. O fato de ambos seguirem uma mesma religião parece não ser suficiente para explicar o curiosíssimo fato de todos os dois pensarem a mesma coisa a respeito do ateísmo. Ao invés disso, a opinião mais provável, a dar crédito ao Jornal do Commercio, é que os dois Papas «estejam trabalhando em conjunto»!

Eis o “senso crítico” que a mídia anda formando. A expressão não poderia ser mais exata: o senso adquirido por quem se acostuma a ler essas coisas é «crítico» como o estado de quem se encontra com uma doença terminal. Talvez já tenha até morrido há muito tempo e ainda não saiba. Que tempos…!

Nec rubricat, nec cantat

A frase acima é um antigo adágio latino aplicado aos jesuítas: diz-se que eles nem se preocupam com as rubricas litúrgicas [nec rubricant] e nem cantam [nec cantant]. Não sei qual a origem do ditado, mas ele parece se aplicar muito bem ao Papa Francisco.

Que ele não era um grande liturgista foi uma das primeiras coisas que eu falei aqui no blog, logo após a sua eleição: «Acho pouco provável que voltemos aos piores pesadelos litúrgicos da época de João Paulo II, mas infelizmente penso que tampouco iremos nos embevecer com a sacralidade do ethos de Bento XVI». Hoje o Rorate Caeli pôs uma pequena nota sobre a Missa Pontifícia do último domingo: pela primeira vez, o Papa Francisco distribuiu a Comunhão sem o genuflexório que Bento XVI introduzira nas liturgias papais. No último domingo, portanto, as pessoas que receberam a Eucaristia das mãos do Romano Pontífice, fizeram-no de pé e não de joelhos. E sem a patena, o blog faz questão de frisar.

É certo que se trata de uma notícia profundamente triste, uma vez que a nossa opinião particular é a de que existe uma estreita correlação entre sacralidade litúrgica e ortodoxia; e isso de tal modo que, no meio da terrível crise de Fé que a Igreja atravessa nos dias de hoje, o exemplo é uma das formas mais eficazes e seguras de transmitir os conteúdos da Fé da Igreja. Mas não nos esqueçamos de que o Papa Francisco não está fazendo nada de inesperado ou revolucionário. Não é inesperado, porque – como dissemos antes – os detalhes litúrgicos não nos parecem fazer parte das preocupações mais próximas do Sumo Pontífice. E não é revolucionário porque a rigor é lícito receber a comunhão de joelhos ou de pé, como dizem os documentos vigentes sobre o assunto.

Do fato da comunhão de joelhos expressar mais perfeitamente a Fé Católica na Eucaristia, não segue que recebê-La de pé equivalha a cair em heresia: mesmo quando as regras para a distribuição da comunhão eram mais rígidas, sempre se permitiu que comungassem de pé as pessoas que, por questões de saúde, não podiam se ajoelhar. Ainda, do fato da comunhão de joelhos ser o modo mais perfeito de receber a Nosso Senhor Sacramentado, não segue que um sacerdote não possa distribuir a Eucaristia para comungantes de pé, se julgar prudente em determinadas circunstâncias concretas (*). Por fim, do fato do Papa Francisco ter distribuído a comunhão para comungantes de pé na missa que celebrou na paróquia de Santi Elisabetta e Zaccaria, não segue que este deva ser doravante o modo ordinário de distribuição da Eucaristia. Nem nas liturgias papais, e nem muito menos nas missas celebradas mundo afora.

[(*) É fato que a Primeira Comunhão trata-se exatamente de uma ocasião que, por sua própria natureza, justificaria – quase exigiria até – uma maior solenidade na administração do Santíssimo Sacramento, sendo portanto o mais natural distribuí-Lo com o genuflexório… mas é dever de caridade pensar que o Santo Padre não fez considerações de caráter ideológico quando distribuiu a Eucaristia para crianças de pé no último Domingo. Nada nos autoriza a julgar mal as intenções do Romano Pontífice.]

Enfim… Nec rubricat. Já o sabíamos. Até o próprio pe. Lombardi já havia aludido ao adágio. Mas e quanto ao “nec cantat”? O significado mais literal nos diz que ele simplesmente não canta, o que em linhas gerais é verdade. Mas gosto de pensar em um sentido mais metafórico para a expressão: o Papa Francisco não canta, quer dizer, ele não [se preocupa em] agrada[r]. Ele não busca aplausos, não está em Roma para fazer espetáculos recreativos, e sim para anunciar a Religião do Crucificado com todas as exigências que ela acarreta. Não faz concessões, por mínimas que seja. Não tem palavras bonitinhas para o mundo moderno, mas somente duras admoestações. Já citamos aqui alguns exemplos disso, mas eles se multiplicam a cada dia. Trago mais dois.

Na semana passada, falando sobre o dia de oração pelos católicos chineses, o Papa não fez lamentações genéricas sobre as perseguições sofridas pela Igreja na China e nem se limitou a admoestar os poderes públicos para que respeitassem os direitos humanos, a liberdade religiosa e coisas do tipo. Muito pelo contrário, pediu que os católicos do mundo inteiro rezassem por estas intenções para a China: «para implorar de Deus a graça de anunciar com humildade e com alegria Cristo morto e ressuscitado, de ser fiel à sua Igreja e ao Sucessor de Pedro, e de viver a cotidianidade no serviço a seu país e aos seus compatriotas de modo coerente com a fé que professam». Fidelidade à Igreja de Roma e testemunho público da Fé Católica a despeito do ateísmo estatal: eis o que o Vigário de Cristo acha importante pedir para a China!

Já ontem, fustigando impiedosamente a mentalidade moderna – presente e atuante mesmo entre muitos ditos católicos! – a respeito do casamento, o Papa Francisco afirmou: «Quantos casais se casam e pensam em seu coração, sem ousar dizer: ‘enquanto houver amor e, então, veremos depois'[?]»; e ainda, colocando-se ironicamente “no lugar de um pai católico de hoje”: «Não, eu não quero mais um filho [p.s.: a melhor tradução é “não, não, mais de um filho não!”, como se depreende do original italiano «No, no, più di un figlio, no!» disponível no site do Vaticano], porque não poderemos viajar de férias, não poderemos ir a tal lugar, não poderemos comprar uma casa! (…) Nós queremos seguir o Senhor, mas até certo ponto». A contundência da mensagem foi tamanha que mesmo a mídia secular (pela primeira vez de que eu me recorde) se viu obrigada a compará-lo com Bento XVI não para antagonizá-los, mas para demonstrar a harmônica continuidade entre o Papa reinante e seu predecessor: «[o Papa] Francisco retomou fielmente, mas em termos concretos que podem estar na mente das pessoas, temas que seu antecessor Bento XVI expunha em termos abstratos: casamento concebido como temporário, medo de compromisso, preguiça e recusa de abandonar seu conforto pessoal».

Nec cantat! O Papa não busca a aprovação do mundo moderno, graças a Deus. Não mede esforços por fazer a mensagem cristã conhecida, ainda que isso vá ferir susceptibilidades contemporâneas. A sua pregação não é melosa ou condescendente, muito pelo contrário: as suas palavras são duras! Como as do Cristo de quem ele é vigário [cf. Jo VI, 60]. Mas, para os que somos católicos, elas são uma doce e agradável melodia. O Papa não canta, mas as suas homilias soem ser como música para os nossos ouvidos.

O valor espiritual desses oito anos

Era uma terça-feira de 2005; penso já ter dito por aqui que me recordo profundamente daquele 19 de abril. A fumaça branca na chaminé da Capela Sistina – então a primeira fumata bianca da minha vida! – anunciava ao mundo que o sucessor do Papa João Paulo II fora escolhido. Estava na copa da faculdade, diante de uma TV ligada, através da qual eu soube que Joseph Ratzinger assumia o sólio pontifício com o nome de Benedito Dezesseis. “Não, não, Bento XVI”, alguém rapidamente me corrigiu. Daquele dia em diante, pelos próximos quase oito anos, o velho alemão foi o meu pai e o meu general, o meu líder e o meu professor, o meu mestre e o meu amigo. Foi o meu Papa!

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Há não muitos dias, no aniversário natalício do Santo Padre, eu disse aqui que Bento XVI foi o Papa da minha juventude. Já confessei aqui no blog que eu já era praticamente homem feito quando retornei à prática da religião dos meus pais; o Papa Ratzinger foi, portanto, o Sumo Pontífice cujo pontificado eu acompanhei integralmente. Talvez eu pudesse ser mais ousado e dizer que, na verdade, ele que foi o Pontífice que me acompanhou durante os anos da minha vida que merecem ser chamados de “católicos”; o fato é que, de qualquer maneira, é impossível olhar para o hoje Bispo Emérito de Roma sem um sentimento de profunda gratidão. É impossível não lembrar o dia de hoje: faz oito anos!

Ninguém diria em 2005 que o Papa recém-eleito havia de renunciar alguns anos depois. Por certo sabíamos que o luminoso pontificado de Bento XVI havia de terminar um dia, mas ninguém imaginava que ele entraria para a História dessa maneira. Eu já manifestei aqui no Deus lo Vult! a minha profunda gratidão por tudo o que o Santo Padre Bento XVI fez pela Igreja ao longo desses anos; mas não consigo me livrar da impressão de que, não importa o que eu diga, nunca será o bastante. Se a dimensão histórica daquela Grã Renúncia do dia de Nossa Senhora de Lourdes é incontestável, penso que seria grande injustiça de nossa parte não reconhecer o quanto foi também histórico o Habemus Papam de 2005.

Sobre esses anos muito poderia ser dito, mas por hoje quero me restringir à questão litúrgica. Um amigo sacerdote empregou certa vez a expressão “ressuscitar altares” para se referir ao ato de celebrar a Santa Missa naqueles tantos altares – de tantas igrejas! – que, após a Reforma Litúrgica, foram rebaixados a meros nichos de santos ou suportes de velas ou vasos de flores. Bento XVI – mormente após o Summorum Pontificum de 2007, mas em todo o seu pontificado – deu novo vigor à consciência litúrgica na Igreja e resgatou a capital importância do Sacrifício Eucarístico do Corpo e do Sangue de Deus: ao longo dos últimos anos, quantos altares não foram ressuscitados! Quem será louco o bastante para negar o valor sobrenatural dessas tantas Missas que voltaram a ser celebradas em altares abandonados – em altares originalmente erigidos para oferecer sacrifícios à Trindade Santa, desgraçadamente desviados de sua finalidade durante os negros anos do pós-Concílio?

Recordo-me de um em particular: um antigo e simples altar frontal (não era o altar-mor) da capela do Seminário de Olinda, edifício do século XVI, onde certa vez o Santo Sacrifício da Missa foi celebrado depois de décadas e eu estava presente, junto com mais um ou dois amigos. Éramos uma quantidade ínfima de pessoas, mas conosco estava a totalidade da Igreja, Triunfante, Padecente e Militante. Sobre aquela pedra Cristo foi imolado, nas intenções – entre outras – do Santo Padre Bento XVI, e sinceramente não sei se tal teria sido possível se então fosse outro e não ele o Vigário de Cristo gloriosamente reinante. Penso que somente na Eternidade nós teremos a dimensão precisa das graças que jorraram desses altares e foram derramadas sobre o mundo graças ao zelo litúrgico que Bento XVI impingiu à Igreja de Cristo.

Foi em 2005, e seria vil impiedade não nos lembrarmos com alegria e gratidão do dia de hoje. Neste 19 de abril, suplicamos ao Todo-Poderoso que possa recompensar o seu servo por todo o bem que ele realizou em Seu favor, e também para que não deixe inacabada a obra de restauração iniciada naquela terça-feira de abril. Nós, os herdeiros do legado de Bento XVI, não temos o direito de esquecer tudo isso. Triste coisa seria se deixássemos que tudo fosse em vão. Loucura seria se desprezássemos o valor espiritual desses oito anos.