O sacrifício de Caim

A crise da Igreja é a crise da Liturgia, é a crise do culto a Deus. Porque a Fé enfraquece na medida em que não se cultua, ou se cultua mal, Aquele em quem se crê; e, do mesmo modo, e ao revés, em um ciclo vicioso, o culto empobrece na medida em que esmorece a crença. Se o nosso culto não se dirige a Deus, então ele pode ser feito “de qualquer jeito”; do mesmo modo, se as nossas cerimônias sagradas são feitas “de qualquer jeito”, então é porque, no fundo, elas não se dirigem, de verdade, a Deus. Esse raciocínio pode não ser verbalizado, pode ser até que alguém não tenha consciência, dele, nestes termos formais: mas ele é inelutável e se impõe a todos, instintivamente, como uma lei não escrita e mesmo não pensada.

É por isso que lex orandi lex credendi e é por isso, por exemplo, que Deus se agradou do sacrifício de Abel e aborreceu o de Caim. Abel sacrificou ao Senhor os primogênitos do seu rebanho; Caim ofereceu-Lhe “frutos da terra”, assim, sem adjetivos, sem qualificações, sem nada. Quem lê o início do quarto capítulo do Gênesis fica com a sensação de que foi isso que o hagiógrafo quis ressaltar: um dos irmãos reservou para Deus o melhor que possuía, enquanto o outro pegou para Ele a primeira coisa que encontrou.

E o fratricídio já estava todo anunciado naquele offerret Cain de fructibus terræ munera Domino. Nem era necessário ler o resto da história: no descaso para com Deus já se insinuava o descaso para com o próximo, e a ofensa a Deus já eram os prolegômenos da ofensa ao irmão.

Mas voltemos ao nosso tempo, e às nossas missas mal-celebradas, muitas das quais fariam o próprio Caim corar de vergonha. Não digo que os católicos desleixados com a Liturgia são pessoas perigosas, das quais se deve guardar prudente distância, porque estão sempre na iminência de cometer algum assassínio em massa. Não, a graça do Evangelho já se derramou irreversivelmente sobre o mundo e à blasfêmia não necessariamente se segue o homicídio, como se o Gênesis devesse sempre se repetir literalmente pelos séculos sem fim. Mas o desleixo litúrgico diz muito acerca do que somos e do que cremos, e da credibilidade que emprestamos à mensagem que nos propomos a passar. Ao rezarmos mal, aproximamo-nos mais do sacrifício de Caim do que do sacrifício de Abel, e isso não pode deixar de ter consequências.

A excelência litúrgica é coisa difícil de ser alcançada em meio à mediocridade generalizada em que vivemos; mas cada um pode fazer alguma coisa para conferir ao menos o devido zelo ao serviço do altar. O simples fiel tem por vezes — por muitas vezes, eu diria até mesmo quase sempre — pouca influência na celebração dos Santos Mistérios; mas mesmo ele pode e deve cumprir o seu papel. Que geralmente vai ser, dentro da missa, o não se deixar contaminar e nem desanimar.

E esse combate solitário e, a todas as aparências, improdutivo, não passará despercebido aos olhos de Deus. Ele fará a Seu tempo os céus orvalharem e o campo florescer. O último fiel ajoelhado diante do Santíssimo Sacramento presta um testemunho cujo valor ultrapassa a compreensão humana — afirma a Fé de uma maneira que mil abusos litúrgicos não são capazes de silenciar. Em meio ao deserto, qualquer filete de água é um oásis vivificante. E, a despeito do fratricídio, o que o Gênesis nos ensina é que, ao final, o sacrifício de Abel suplantou o de Caim.

Qual a verdadeira interpretação da Bíblia?

A questão da interpretação das Escrituras Sagradas é o calcanhar de Aquiles de todo o Protestantismo. Coloquemo-lo claramente: duas pessoas podem ser ambas muito santas e muito inteligentes e, ainda assim, chegarem a interpretações diametralmente opostas de um mesmo texto bíblico. Como resolver este problema?

A pior solução é sem dúvidas fazer circunlóquios do tipo “a Bíblia se interpreta pela própria Bíblia” ou “o critério da doutrina é a sua fundamentação bíblica”. Coisas assim absolutamente não resolvem o problema, que é apenas deslocado para um patamar anterior e se reduz, em última instância, ao subjetivismo mais radical: a interpretação correta passa a ser aquela que “me convence” melhor. É bem sabido que os adeptos desta tese fundamentam-se em um “é o Espírito Santo que convence” capaz, sem dúvidas, de fechar o sistema; mas é um fechamento autorreferencial e perfeitamente inútil para fins de apostolado, uma vez que o sujeito primeiro precisa se convencer para só depois entender que o seu convencimento é suficiente. Esta solução, enfim, flerta intimamente com aquela loucura que Chesterton menciona no início do seu Ortodoxia: é tão perfeita quanto um círculo fechado, limitado ao estreito horizonte de si próprio e incapaz de abrir-se à realidade circundante.

O mesmo se diga de qualquer tentativa de conferir a autoridade religiosa a um determinado grupo de pessoas — um grupo de pessoas santas, pessoas estudiosas, pessoas prudentes ou qualquer outra coisa do tipo. Sempre haverá outros grupos, formados por pessoas prudentes, estudiosas e santas; e o problema de decidir em qual dos grupos acreditar é, no limite, o mesmíssimo problema de decidir entre um líder religioso e outro, ambos alardeando deter a verdade do Cristianismo.

Uma solução talvez mais interessante seria apelar para a coletividade: a interpretação verdadeira é aquela geralmente aceita pelo conjunto de todos os crentes. O critério transfere-se assim do autoconvencimento para a presunção de razoabilidade, o que é sem dúvidas melhor: o erro individual é muito comum, mas o equívoco sincronizado de diversas pessoas, todas de boa fé, é consideravelmente mais raro. Talvez ainda mais: este consenso — construído e momentâneo — seria o máximo a que o homem, naturalmente, é capaz de chegar e, portanto, uma religião proporcionada à natureza humana não poderia desconhecer estes limites. Tratar-se-ia, assim, resumidamente, de uma aplicação do agir comunicativo habermasiano à esfera religiosa.

Duas são as dificuldades aqui. Em primeiro lugar é preciso questionar-se, seriamente, se este consenso é factualmente alcançável — e aqui se trata de uma crítica que, em princípio, pode-se fazer a toda a teoria da comunicação de Habermas. Não é preciso nem discutir se os pressupostos básicos de honestidade na comunicação estão ordinariamente presentes: mesmo que tal se conceda, é incontestável que o conjunto de coisas sobre as quais as pessoas no geral concordam é bastante restrito e não tem como ser de outra maneira. Afinal, se todo mundo sempre concordasse sobre tudo o próprio problema da interpretação dos textos sagrados não se colocaria.

Mas o pior é a segunda dificuldade: coletivos de pessoas são capazes de ao longo do tempo rever as suas convicções, e o consenso geral é sempre e por definição momentâneo. Isto não é um problema para o modelo habermasiano em geral — ele até prevê e pressupõe isso –, mas aplicá-lo a uma religião significaria esvaziá-la de todo conteúdo próprio. As sociedades podem se desenvolver até o ponto de se tornarem outras sociedades; mas um desenvolvimento de uma religião que chegasse ao ponto de transformá-la em uma outra religião é algo que, no mínimo, não é compatível com o conceito de Revelação Cristã.

Pegue-se o exemplo mais radical para o demonstrar: a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo é um dado objetivo, revelado por Deus e independente da crença ou descrença dos homens, ou é um consenso dos cristãos meramente útil para que eles se possam organizar em uma sociedade de crentes? Dito de outra maneira: é admissível que o conjunto dos crentes, um belo dia, decida que pode prescindir dessa complicação de união hipostática entre as naturezas humana e divina e que é suficiente encontrar em Cristo um sujeito iluminado que é modelo para todos nós? O número dos cristãos que se inclinariam por esta afirmativa é provavelmente bastante pequeno, desprezível até. Ora, se não existe consenso entre os cristãos sobre a possibilidade de sujeitar a verdade religiosa a este mesmo consenso, então é óbvio que o critério da correta interpretação dos textos sagrados do Cristianismo não pode ser o consensual.

Nem se pode dizer, registre-se, que certas coisas estariam sujeitas ao agir comunicativo (como, digamos, a forma do culto, a questão do batismo de crianças ou a guarda do Sábado ou do Domingo) e, outras (como a divindade de Cristo), não; porque neste caso permaneceria a dúvida sobre quais são, afinal, as coisas que dependem do consenso e quais as que não dependem, e o problema do qual se tentou fugir terminaria, cedo ou tarde, por retornar (e se um dia a generalidade dos crentes passasse a aceitar que a guarda do Domingo é revelada e não consensual?). Também este modelo de solução, em suma, deve ser rejeitado.

A melhor resposta ao problema, em conclusão, é aquela apresentada pelo Catolicismo: há uma instância superior, sim, capaz de dirimir a dúvida religiosa, e esta instância é a Igreja — mais especificamente até, tal instância consubstancia-se na figura do Romano Pontífice, um homem de carne e osso, vivo, que se pode interpelar pessoalmente e sobre o qual repousa a promessa de Cristo de que a sua Fé não haverá de desfalecer, por mais que Satanás reclame joeirá-lo como trigo (cf. Lc XXII, 31). Mas esta instância está vinculada a Ela mesma, e Pedro está sujeito a Pedro, e cada Papa tem os seus movimentos limitados ao espaço deixado pelos seus predecessores. A Igreja, que é o conjunto dos cristãos, estende os Seus alicerces por toda a História e abarca todos os séculos: existe n’Ela uma necessária harmonia diacrônica que simplesmente não cabe nos moldes de nenhuma das teorias que à doutrina clássica se pretendem alternativas.

Curiosamente, nenhuma das 95 teses de Lutero reivindicava a todo fiel — nem mesmo a um determinado grupo de fiéis, nem à sua totalidade — o poder de encontrar a correta interpretação da Bíblia, como infelizmente fizeram e fazem os seus sucessores. Nestes tempos de diálogo ecumênico, a questão sobre a interpretação das Escrituras Sagradas é primordial e precisa ser corajosamente abordada. Aceitarão os irmãos separados voltar às origens e dizer, parafraseando Lutero, que «expor a Igreja e o papa à zombaria dos [seus] inimigos» é, em última instância, «fazer os cristãos infelizes» (T. 90)? Cinco séculos de protestantismo já demonstraram de modo mais que suficiente o acerto dessa tese. Já passou da hora de o reconhecer.

A tradução cega-nos à nossa ignorância

Descobri ontem, ouvindo em latim o Evangelho das Bodas de Caná, que o chefe dos serventes — aquele que primeiro provou a água que Nosso Senhor transformara em vinho — se diz, em latim, architriclino. Ainda: que a palavra existe em português, ar·qui·tri·cli·no, Mordomo-mor da Roma Antiga: trata-se de uma função social específica, inserida em um contexto cultural que nos é estranho, e cujos contornos não nos é possível enxergar com clareza. A tradução de um substantivo comum para uma locução substantiva chamou-me a atenção para (mais) esta dificuldade de se traduzir línguas antigas: certas coisas deixam de existir com o passar do tempo, e isso faz com que as palavras que se lhes referiam caiam também em desuso — a ponto de se transformarem em termos técnicos incompreensíveis ao leitor vulgar.

Há não muito tempo eu lia também em algum lugar que, entre os judeus, o grau superlativo se formava pela repetição da palavra: assim “rei dos reis” ou “santo dos santos”, que nos dias de hoje se diriam provavelmente realíssimo e santíssimo. Aqui, ao menos a locução não é desprovida de significado, e o leitor vernacular consegue perceber que o “rei dos reis” está acima dos reis assim como estes estão acima dos que a eles são sujeitos. Mas é só quando se entende a lógica da gramática semítica — duplicar a palavra para significar o seu grau máximo — que é possível perceber a dimensão do que significar dizer, de Deus, que Ele é ἅγιος ἅγιος ἅγιος – Santo, Santo, Santo.

São dois pequenos exemplos apenas para dizer que o recurso aos originais é importante. Mais até: que as traduções constituem-se em um verdadeiro obstáculo ao conhecimento, na medida em que nos impedem de enxergar as nuances do texto antigo que não são perfeitamente reprodutíveis na língua moderna. Em uma palavra, a tradução cega-nos à nossa ignorância, na medida em que, por compreendermos — até perfeitamente — o recorte linguístico, simplesmente não percebemos os sentidos possíveis do texto original. Isso significa que há provavelmente uma infinidade de coisas que não sabemos por detrás de cada perícope bíblica, independente do quanto estejamos familiarizados com ela. É preciso muito cuidado ao se aproximar das Escrituras Sagradas: as mais das vezes, não somos capazes senão de arranhar-Lhes a superfície.

Sobre a multiplicação dos pães

A respeito de um recente texto de propósito obscuro sobre uma interpretação que o Papa Francisco expôs [não tão] recentemente do episódio da multiplicação dos pães, vale muito a pena ler este texto hoje publicado no «Católico Porque…». Cito apenas um trecho:

Mas o milagre não estaria na multiplicação dos pães, isto é, Jesus não os multiplica antes da distribuição dos Apóstolos, senão que sua quantidade vai aumentando durante a mesma, é o que se depreende da fala do Papa. Os pedaços que alimentam a multidão são pedaços dos cinco (ou sete) pães iniciais.

Sinceramente, é difícil até imaginar como poderia ter sido diferente! Teria porventura Nosso Senhor criado ex nihil uma montanha de pães antes de iniciar a distribuição?! O texto bíblico fornece algum mínimo suporte a semelhante interpretação? É muita má vontade. Que Deus proteja o Papa! Que o faça feliz e não o entregue nas mãos dos seus inimigos, principalmente quando estes se dizem católicos zelosos pela pureza da Fé mas agem como demônios insurgindo-se contra o Cristo-na-Terra.

Apontamentos sobre as Escrituras Sagradas e inerrância bíblica

A propósito de alguns comentários recentes sobre as Escrituras Sagradas feitos aqui no blog, aproveito o ensejo para esclarecer:

– A inspiração do Espírito Santo deu-se nos autores originais e em relação aos textos originais, inexistindo no geral a “inspiração do tradutor” e – com muito mais razão! – uma suposta “inspiração” de traduções apócrifas e desautorizadas das Escrituras Sagradas como o são as traduções protestantes.

– Inexistindo ou sendo difícil o acesso aos originais, o Concílio de Trento (e, repetindo-o, a Divino Afflante Spiritu de Pio XII) afirma «que devem reconhecer-se “como sagrados e canônicos os livros inteiros com todas as suas partes conforme se costuma ler na Igreja católica e estão na antiga Vulgata latina” (Concílio de Trento, Sessão IV, decr. l; Ench. Bibl ., n. 45)» (DAS 1).

– Assim sendo, a inerrância bíblica não se estende a todas as traduções e a todos os manuscritos, mas é característica dos textos originais (por desconhecidos que sejam nos dias de hoje, e ainda que tenham sido perdidos) e, para fins práticos, da Vulgata latina, como ensina o mesmo Pio XII: «esta autoridade preeminente ou autenticidade da Vulgata decretou-a o concílio não principalmente por motivos de crítica, mas antes pelo uso legítimo que dela se fez na Igreja durante tantos séculos; uso que prova estar ela, no sentido em que a entendeu e entende a Igreja, completamente isenta de erros no que toca a fé e aos costumes; de modo que, como a mesma Igreja atesta e confirma, se pode nas disputas, preleções e pregação alegar seguramente e sem perigo de errar» (DAS 14).

– Este lugar proeminente ocupado pela Vulgata não desmerece os textos originais; o estudo deles é não apenas legítimo como também encorajado, mas em estreita colaboração com a Vulgata e jamais em oposição a ela. Ainda Pio XII: «[n]em a autoridade da Vulgata em matéria de doutrina impede, – antes nos nossos dias quase exige – que a mesma doutrina se prove e confirme também com os textos originais, e que se recorra aos mesmos textos para encontrar e explicar cada vez melhor o verdadeiro sentido das Sagradas Escrituras» (id. ibid.).

– A inerrância bíblica deve ser entendida em sentido absoluto, e não apenas em um “sentido espiritual” (p.ex., que as Escrituras Sagradas apenas não contenham “erros contra a fé”). Assim pontifica Pio XII remetendo a Leão XIII: «Enfim é absolutamente vedado “coarctar a inspiração unicamente a algumas partes da Sagrada Escritura ou conceder que o próprio escritor sagrado errou”, pois que a divina inspiração “de sua natureza não só exclui todo erro, mas exclui-o e repele-o com a mesma necessidade com que Deus, suma verdade, não pode ser autor de nenhum erro. Esta é a fé antiga e constante da Igreja”» (id., 3).

– A esse respeito, peço vênia para uma citação um pouco mais longa de Leão XIII na Providentissimus Deus:

[N]ão é absolutamente permitido restringir a inspiração só a algumas partes da Sagrada Escritura, ou admitir que o mesmo autor sagrado tenha errado. Com efeito não se pode admitir o método dos que resolvem essas dificuldades sem hesitar em conceder que a inspiração divina se aplique às coisas que dizem respeito à fé e aos costumes e [a] nada mais, julgando erradamente que em se tratando do verdadeiro sentido dos trechos escriturísticos, não se deve tanto procurar o que Deus possa ter dito, mas antes sopesar o motivo pelo qual o tenha dito. Com efeito todos os livros, na sua integridade, que a Igreja recebe como sagrados e canônicos em todas as suas partes, foram escritos sob a inspiração do Espírito Santo, e, portanto, é impossível que a inspiração divina contenha algum erro, que ela, pela sua própria natureza, não somente exclui até o mínimo erro, mas o exclui e rejeita tão necessariamente, como necessariamente Deus, verdade suma, não pode, da maneira mais absoluta, ser autor de algum erro.

Essa é a antiga e constante fé da Igreja, definida também com sentença solene pelos Concílios Florentino e Tridentino e, finalmente, confirmada e declarada mais expressamente no Concílio Vaticano [I] que assim decretou, da maneira mais absoluta: “É preciso ter como sagrados e canônicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, como são elencados pelo decreto do mesmo Concílio (Tridentino) e como se encontram na antiga edição [da] Vulgata latina. E a Igreja os tem como sagrados e canônicos, não porque, compostos unicamente pelo talento humano, tenham sido depois aprovados por sua autoridade, e tampouco pelo simples fato de conter a revelação sem erros, mas porque tendo sido escritos sob a inspiração do Espírito Santo, têm Deus como autor”. Por isso não tem valor aqui dizer que o Espírito Santo teria tomado alguns homens como instumentos para escrever, como se algum erro possa ter escapado não certamente ao autor principal, mas aos escritores inspirados. (…) Conseqüentemente deriva que os que admitem que nos lugares autênticos dos Livros sagrados se possa encontrar algum erro, certamente estes ou pervertem a noção católica da inspiração divina ou fazem o próprio Deus autor do erro. Todos os Padres e doutores estavam de tal modo convencidos [de] que as Cartas divinas, assim como foram compostas pelos hagiógrafos, estão absolutamente imunes de todo erro, que não poucos daqueles trechos que parecem apresentar alguma coisa de contrário ou diverso (isto é, quase os mesmos trechos que agora são propostos como objeções sob o nome de ciência nova) procuraram de maneira não menos sutil e religiosamente compô-los e conciliá-los entre si, professando à humanidade que aqueles livros, quer inteiramente, quer nas suas partes singulares, eram igualmente inspirados divinamente e que o próprio Deus que falou por meio dos autores sagrados não pôde absolutamente inspirar algo falto de verdade. Sirva para todos o que o próprio Agostinho escrevia a Jerônimo: “Eu, com efeito, confesso à tua benevolência que aprendi a prestar tal veneração e honra somente aos livros das Escrituras, que já são chamados canônicos, e que creio firmissimamente que nenhum dos seus autores tenha cometido erro algum ao escrever. E se, por acaso, encontrasse neles alguma coisa que parecesse contrária à verdade, não tenho a mínima dúvida de que isso dependa ou do códice defeituoso, ou do tradutor que não interpretou retamente o que foi escrito, ou que a minha mente não conseguiu entender” (PD, 41-42).

– Não obstante, o verdadeiro sentido das Escrituras Sagradas encontra-se nos modos de dizer próprios dos tempos e lugares nos quais foram escritos os diferentes livros sagrados. Ensina Pio XII: «Ora, qual o sentido literal de um escrito, muitas vezes não é tão claro nas palavras dos antigos orientais como nos escritores do nosso tempo. O que eles queriam significar com as palavras não se pode determinar só pelas regras da gramática e da filologia, nem só pelo contexto; o intérprete deve transportar-se com o pensamento àqueles antigos tempos do Oriente, e com o auxílio da história, da arqueologia; etnologia e outras ciências, examinar e distinguir claramente que gêneros literários quiseram empregar e empregaram de fato os escritores daquelas épocas remotas. De fato os antigos orientais, para exprimir os seus conceitos, nem sempre usaram das formas ou gêneros de dizer de que nós hoje usamos; mas sim daqueles que estavam em uso entre os seus contemporâneos e conterrâneos. (…) Nenhum dos modos de falar de que entre os antigos e especialmente entre os orientais se servia a linguagem para exprimir o pensamento, pode dizer-se incompatível com os Livros Santos, uma vez que o gênero adotado não repugne à santidade e verdade de Deus. Advertiu-o já o doutor angélico com a sua costumeira perspicácia por estas palavras: “Na Escritura as coisas divinas nos são apresentadas ao modo usual, humano”. Como o Verbo substancial de Deus se fez semelhante aos homens em tudo “exceto o pecado”, assim também a palavra de Deus expressa em línguas humanas assemelhou-se em tudo à linguagem humana, exceto o erro» (DAS 20).

– Portanto, «não há erro absolutamente nenhum quando o hagiógrafo falando de coisas físicas “se atém ao que aparece aos sentidos” como escreveu o Angélico, exprimindo-se “ou de modo metafórico, ou segundo o modo comum de falar usado naqueles tempos e usado ainda hoje em muitos casos na conversação ordinária mesmo pelos maiores sábios.” De fato “não era intenção dos escritores sagrados, ou melhor – são palavras de santo Agostinho [-] do Espírito Santo que por eles falava, ensinar aos homens essas coisas – isto é, a íntima constituição do mundo visível – que nada importam para a salvação”. Esse princípio “deverá aplicar-se às ciências afins, especialmente à história”, isto é, refutando “de modo semelhante os sofismas dos adversários” e defendendo das suas objeções a verdade histórica da Sagrada Escritura. Nem pode ser taxado de erro o escritor sagrado, “se aos copistas escaparam algumas inexatidões na transcrição dos códices” ou “se é incerto o verdadeiro sentido de algum passo”» (DAS 3).

– Por fim, cabe lembrar que «a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita» (Dei Verbum, 12); e, portanto, «não menos atenção se deve dar, na investigação do recto sentido dos textos sagrados, ao contexto e à unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé» (id. ibid). O Magistério da Igreja permanece a única instância competente para precisar, sem possibilidade de erro, o verdadeiro sentido [de qualquer parte] das Sagradas Escrituras.

O bispo e o frei

O bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, Dom Antonio Augusto, está de parabéns. Sua Excelência resolveu comprar a briga com o frei Betto e, em um artigo publicado em ZENIT, atacou duramente (embora não nominalmente, mas a alusão é claríssima) um artigo pró-gay do frade dominicano chamado “Os Gays e a Bíblia” (sic).

O artigo de Dom Antonio tem por título “A Bíblia e o frei”. Embora diga que “não tem a mínima pretensão de responder a um outro artigo de um conhecido irmão religioso que goza de certo prestígio midiático”, as alfinetadas não deixam margem para dúvidas. À guisa de exemplo, destaco:

Todos esses questionamentos permanecem na superfície externa das culturas e das análises interpretativas de freis e freiras, de juízes e juízas, de padres e políticos, das próprias pessoas envolvidas nas decisões afetivas, quando não há a devida profundidade na revelação bíblica sobre quem é o homem, quem é a mulher, na única, fundamental e inequívoca verdade: “Deus disse: façamos o ser humano à nossa imagem e segundo a nossa semelhança (…). Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus os criou. Homem e mulher Ele os criou” (Gen. I, 25-27).

Aqui não há hermenêutica, nem singularizadora nem pluralizadora! Aqui há verdade! Aqui há imagem digna de ser reconhecida e respeitada! Aqui há identidade sublime! O que vem depois a essa revelação, isto é, os fatores biológicos, raciais, étnicos, sexuais, culturais, etc., só podem ser considerados a favor do bem das pessoas se as interpretações “politicamente corretas” forem desmascaradas e descartadas.

É no mínimo interessante que os inimigos de Deus e da Sua Santa Igreja estejam tão preocupados em apresentar uma caricatura do Cristianismo no lugar do Cristianismo verdadeiro. Diante das radicais exigências da Fé, agem como aqueles discípulos que abandonaram o Senhor, murmurando entre si: “Isto é muito duro! Quem o pode admitir?” (Jo 6, 60b).

Sim, consideremos que seja “duro” e, mais ainda, “muito duro”. Mas é a verdade que existe e, portanto, deve ser abraçada, a despeito das exigências que dela decorram. Por mais dura que seja a verdade, ela ainda assim é incomparavelmente melhor do que os enganos e as fábulas. Fazer as coisas certas é preferível a fazer as prazerosas, e é exatamente na possibilidade de optar por aquelas no lugar destas que se encontra a diferença específica entre os homens e os demais animais.

Quando eu era pequeno, lembro que li sobre uma espécie de aranha do deserto que precisava de alguns cuidados específicos para ser criada em cativeiro. Isto porque o bicho estava acostumado à escassez de alimentos e, portanto, sempre que encontrava algo para comer, ele comia, “sabendo” que ia passar dias (ou talvez semanas) sem conseguir alimentar-se novamente. Se, no cativeiro, esta aranha fosse alimentada regularmente até estar saciada, ela iria comer até morrer porque “saciar-se” não era critério para que ela deixasse de se alimentar. Acho que foi o meu primeiro contacto alegórico com o pecado da gula e com aquela definição – que eu conheci depois – de “pecado” como sendo a opção por um bem menor em detrimento de um bem maior.

Pautar-se, portanto, pela reta razão é obrigação de todo ser humano, e isto não tem bulhufas a ver com um genérico “seguir a própria (distorcida) consciência” – uma vez que as pessoas estão obrigadas a procurar a Verdade, e não a exercitarem uma flexibilidade moral que lhes permita cometer as maiores barbaridades “em paz consigo mesmas”. Seguir a própria consciência, no caso específico das pessoas com tendências homossexuais, é dar ouvidos ao que ensina infalivelmente a Igreja Católica. E a maior prova de que a consciência dos homossexuais lhes insta a seguirem o Cristianismo é esta tentativa desesperada de deformar a Doutrina Cristã até que ela aceite os hábitos depravados dos que pecam contra a natureza. Afinal de contas, se os gays estivessem em paz com a sua própria consciência (como gostam de dizer), não precisariam falsificar tão grosseiramente o Cristianismo.

Submeter a razão às paixões é trocar a Verdade pelas conveniências, é “pecado” por definição. E a Verdade, em se tratando de frades, gays e a Bíblia, é que Deus criou “homem e mulher” – e nenhuma falsificação da lavra de frei algum vai ser capaz de mudá-la, ainda que o arrogante exegeta ostente indignamente o hábito de São Domingos.

Verbum Domini – Bento XVI

O Papa Bento XVI publicou hoje a Exortação Pós-Sinodal Verbum Domini, dois anos após a conclusão do Sínodo dos Bispos sobre a palavra de Deus ocorrido em 2008. São mais de duzentas páginas “sobre a palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”. Para acessarem-na, cliquem aqui.

Ainda não li o texto. Apenas destaco um trecho, que colhi de um rápido passar de olhos sobre o documento:

A este respeito, São Boaventura afirma que, sem a fé, não há chave de acesso ao texto sagrado: « Esta é o conhecimento de Jesus Cristo, do qual têm origem, como de uma fonte, a segurança e a inteligência de toda a Sagrada Escritura. Por isso é impossível que alguém possa entrar para a conhecer, se antes não tiver a fé infusa de Cristo que é lanterna, porta e também fundamento de toda a Escritura ». E São Tomás de Aquino, mencionando Santo Agostinho, insiste vigorosamente: « A letra do Evangelho também mata, se faltar a graça interior da fé que cura ».

Isto permite-nos assinalar um critério fundamental da hermenêutica bíblica: o lugar originário da interpretação da Escritura é a vida da Igreja. Esta afirmação não indica a referência eclesial como um critério extrínseco ao qual se devem submeter os exegetas, mas é uma exigência da própria realidade das Escrituras e do modo como se formaram ao longo do tempo.

Verbum Domini, 29.

Stultorum infinitus est numerus

Engraçados dois comentários que foram feitos aqui recentemente.

O primeiro, no “sobre mim” do blog, disse que “[q]ue Jesus nunca existiu já está mais que provado, e faz muito tempo”. O segundo, no post sobre a Lady Gaga, afirmou que (a confusão é no original) “analisando coerentemente, coisa que este site não exerce, GAGA e a IGREJA CATÒLICA usufruem das mesmas técnicas descritas por mim anteriormente para arrendarem mais fans, fiéis (…) com o único e terrível propósito econômico”.

Às vezes eu fico pensando de onde é que essa gente surge, o que é que têm na cabeça… Quando eu leio coisas assim, lembro-me daquele texto (de Nelson Rodrigues, se a memória não me trai), segundo o qual os idiotas que sempre ficaram calados hoje em dia se acham no direito de falar – e esse é um dos grandes problemas dos tempos modernos.

Em pleno século XXI o sujeito abrir a boca para dizer que Jesus “nunca existiu” e que isso já está “provado”, é de uma idiotice descomunal. E olhe que ele fala com a empáfia de quem está proclamando uma obviedade. Do mesmo modo, o outro sujeito colocar lado-a-lado a Lady Gaga e a Igreja Católica, dizendo que ambas procuram “mais fiéis” e têm por único “propósito [o] econômico”… tal afirmação absurda e disparatada, em outros tempos, seria facilmente recebida como a idiotice que é. No entanto, hoje os idiotas falam, e falam, e têm público que lhes dê crédito pelas bobagens que afirmam sem enrubescer! De onde veio tanta decadência? Como é possível que as pessoas maltratem tanto as palavras e o discurso, e tenham quem lhes apóie nesta degradante empreitada?

Não sei quem é que dizia que a inteligência é limitada, mas a idiotice não. A cada dia, multiplicam-se os exemplos que corroboram a tese. Mas as Escrituras já diziam que o número dos tolos é infinito: stultorum infinitus est numerus (Liber Ecclesiastes 1,15). O mundo de hoje dá eloqüente testemunho em favor das Sagradas Escrituras! Haveria mais crentes, caso esta prova da inspiração divina da Bíblia não fosse, aquela própria (i.e. o número infinito de idiotas), obstáculo à Fé…

Na solenidade de São Pedro e São Paulo – pe. António Vieira

Primeiramente não nego, nem se pode negar que o texto  parece que fala com todos os Discípulos e Apóstolos,  a quem o divino Mestre fazia a pergunta. Mas eu  pergunto também quem foi o que única e singularmente respondeu a ela? Claro está que foi São Pedro: Respondit Petrus. E porque respondeu só ele e nenhum outro? Excelentemente St.° Ambrósio: Cum interrogasset Dominus quid homines de Filio hominis æstimarent, Petrus tacebat: ideo (inquit) non respondeo, quia non interrogor: interrogabor, et ipse quid  sentiam tum demum respondebo, quod meum est. «Enquanto Cristo perguntou o que diziam os homens, Pedro esteve calado sem dizer palavra» __  tacebat; e porque esteve calado Pedro e não respondeu palavra? «Porque aquela pergunta, diz ele, não fala comigo»: Ideo non respondeo, quia non interrogor; «porém quando eu for perguntado, então responderei e direi o que sinto, porque a mim me pertence»: Cum interrogabor, et ipse quid sentiam respondebo, quod meum est. Note-se muito esta última palavra, quod meum est, na qual excluiu o mesmo S. Pedro a todos os outros Apóstolos e confiadamente diz que a resposta daquela altíssima pergunta só era sua e só a ele pertencia. É verdade que a palavra da pergunta: vos autem parece que compreendia a todos; mas a resposta exclui aos demais, como encaminhada a ele por quem sabia o que só Pedro sabia e os demais ignoravam.

Em um famoso milagre do mesmo S. Pedro temos um extremado exemplo, com que a extensão do vós autem se limita só a ele. Entretanto S. Pedro com S. João por uma das portas do templo de Jerusalém a orar, estava ali um pobre tolhido dos pés desde seu nascimento, o qual lhes pediu uma esmola; disse-lhe S. Pedro: Respici in nos: «Olha para nós», e respondendo ao que pedia o pobre; __ Eu __ diz __ não tenho ouro, nem  prata, mas o que tenho, isso te dou; e tomando-o pela mão «o pôs em pé inteiramente são»: Et protinus consolidatæ sunt bases ejus. Pois se S. Pedro só havia de fazer, como fez, o milagre sem ter parte nele o companheiro, porque não disse também – olha para mim, senão, olha para nós?: Respice in nos ?

A razão fique para outro dia; o exemplo nos serve agora, e é quanto se pode desejar adequado. De sorte que o respice in nos referiu-se a Pedro, e mais a João; mas o milagre não o obraram Pedro e João, senão só Pedro. Pois assim como então o respice in nos se referiu a ambos e o obrador do milagre foi só um, assim no caso presente o vos autem referia-se a todos __ Respiciebat omnes __ e a milagrosa confissão foi só de Pedro. Só de Pedro, sem que o número ou multidão a que foi dirigida a pergunta, impedisse a glória única e singular de quem deu a resposta: e senão, combinemos o vos com o tu e o tibi. O vos autem foi de todos, e o tu só de Pedro: Tu es Petrus; o vos autem de todos, e o dico só de Pedro: dico tibi; o vos autem de todos, e o  dabo só de Pedro: Tibi dabo.

Padre Antonio Vieira,
Sermão de São Pedro

Primeiramente não nego, nem se pode negar que o texto  parece que fala com todos os Discípulos e Apóstolos,  a quem o divino Mestre fazia a pergunta. Mas eu  pergunto também quem foi o que única e singularmente respondeu a ela? Claro está que foi São Pedro: Respondit Petrus. E porque respondeu só ele e nenhum outro? Excelentemente St.° Ambrósio: Cum interrogasset Dominus quid homines de Filio hominis æstimarent, Petrus tacebat: ideo (inquit) non respondeo, quia non interrogor: interrogabor, et ipse quid  sentiam tum demum respondebo, quod meum est. «Enquanto Cristo perguntou o que diziam os homens, Pedro esteve calado sem dizer palavra» __  tacebat; e porque esteve calado Pedro e não respondeu palavra? «Porque aquela pergunta, diz ele, não fala comigo»: Ideo non respondeo, quia non interrogor; «porém quando eu for perguntado, então responderei e direi o que sinto, porque a mim me pertence»: Cum interrogabor, et ipse quid sentiam respondebo, quod meum est. Note-se muito esta última palavra, quod meum est, na qual excluiu o mesmo S. Pedro a todos os outros Apóstolos e confiadamente diz que a resposta daquela altíssima pergunta só era sua e só a ele pertencia. É verdade que a palavra da pergunta: vos autem parece que compreendia a todos; mas a resposta exclui aos demais, como encaminhada a ele por quem sabia o que só Pedro sabia e os demais ignoravam. Em um famoso milagre do mesmo S. Pedro temos um extremado exemplo, com que a extensão do vós autem se limita só a ele. Entretanto S. Pedro com S. João por uma das portas do templo de Jerusalém a orar, estava ali um pobre tolhido dos pés desde seu nascimento, o qual lhes pediu uma esmola; disse-lhe S. Pedro: Respici in nos: «Olha para nós», e respondendo ao que pedia o pobre; __ Eu __ diz __ não tenho ouro, nem  prata, mas o que tenho, isso te dou; e tomando-o pela mão «o pôs em pé inteiramente são»: Et protinus consolidatæ sunt bases ejus. Pois se S. Pedro só havia de fazer, como fez, o milagre sem ter parte nele o companheiro, porque não disse também – olha para mim, senão, olha para nós?: Respice in nos ?

A razão fique para outro dia; o exemplo nos serve agora, e é quanto se pode desejar adequado. De sorte que o respice in nos referiu-se a Pedro, e mais a João; mas o milagre não o obraram Pedro e João, senão só Pedro. Pois assim como então o respice in nos se referiu a ambos e o obrador do milagre foi só um, assim no caso presente o vos autem referia-se a todos __ Respiciebat omnes __ e a milagrosa confissão foi só de Pedro. Só de Pedro, sem que o número ou multidão a que foi dirigida a pergunta, impedisse a glória única e singular de quem deu a resposta: e senão, combinemos o vos com o tu e o tibi. O vos autem foi de todos, e o tu só de Pedro: Tu es Petrus; o vos autem de todos, e o dico só de Pedro: dico tibi; o vos autem de todos, e o  dabo só de Pedro: Tibi dabo.

Sobre Catolicismo e Protestantismo – pe. Leonel Franca

Que o Salvador tivesse conferido ao Colégio apostólico a mesma plenitude de poderes que a Pedro, já o sabíamos; não é novidade descoberta pelo Sr. ERNESTO que à p. 27 da IRC [N.E.: “Igreja, Reforma e Civilização”, livro anterior do jesuíta] poderia ler como “não há nenhuma incompatibilidade entre estas duas verdades. Um soberano diz a um general: “General, confio-te todo o meu exército. Tens plenos poderes para dirigir energicamente a campanha e levar a pátria à vitória. Tudo o que fizeres para defender a nação desde já o sanciono como se por mim fôra feito”. Dias depois fala o mesmo soberano ao estado-maior no meio do qual se acha o generalíssimo escolhido: “Confio-vos o meu exército. Tendes plenos poderes para dirigir energicamente a campanha, etc.” Que hermeneuta sofista haverá aí que pretenda inferir das últimas palavras do soberano que já não há generalíssimo no exército e que a plenitude do comando foi estendida a cada um dos oficiais presentes? Quem poderá sustentar sensatamente haver incompatibilidade entre os poderes do Estado-Maior e a chefia de um só? Ninguém. Ambas as expressões são, não só conciliáveis, mas apresentam juridicamente tôda a exatidão desejável. Diz-se em rigor de direito que um corpo moral possui todos os poderes de que se acha investido o seu chefe. Por que esquecer esta regra de senso comum quando se trata de interpretar o Evangelho para fantasiar contradições que não existem”, etc., etc. Como se vê, Sr. ERNESTO, a sua objeçãozinha já havia sido considerada e resolvida. Por que repeti-la teimosamente como se nada se houvera dito? É isto discussão sincera? desejo real de conhecer a verdade ou obstinação de preconceitos irredutíveis?

Não, tratemos a palavra de Deus com mais submissão e reverência. Em S. MATEUS, c. 16, diz Cristo só a Pedro: “tudo o que ligares na terra será ligado no céu…” Logo, Pedro só tem a plenitude dos poderes na Igreja de Deus. Em S. MATEUS, c. 18, diz Cristo aos seus apóstolos com Pedro: “tudo o que ligar[d]es na terra será ligado nos céus…” Logo, no Colégio apostólico com Pedro, reside também a plenitude dos poderes eclesiásticos. Eis o Evangelho. E o catolicismo ensina que no Papa só, sucessor de S. Pedro, reside a plenitude dos poderes, e que no corpo episcopal em união com o Papa – sucessão do Colégio apostólico com Pedro – se acha igualmente a mesma plenitude de jurisdição [N.E.: registro que isto foi escrito mais de dez anos antes da Lumen Gentium…]. Eis a Igreja Católica. Entre a palavra de Cristo e a constituição de sua Igreja fiel, a equação é perfeita. Que fizeram os protestantes das duas grandes palavras do Senhor? Atiraram uma contra a outra e destruíram ambas. No protestantismo não há nem uma pessoa nem um corpo moral com plenitude de poderes delegada por Cristo para ligar e desligar. Evidentemente, não nos achamos em face da Igreja fundada pelo Salvador.

[Pe. Leonel Franca, “Catolicismo e Protestantismo”, p. 31. 43-45. Ed. Agir, Rio de Janeiro, 1952]