Santa Dulce dos Pobres, rogai por nós, olhai pelo Brasil

A canonização da Irmã Dulce, ocorrida na manhã deste domingo (13 de outubro), foi uma reconfortante notícia para os católicos, em meio a tantas outras apreensivas que já quase nos acostumamos a receber nestes dias difíceis. Mas hoje o Anjo Bom da Bahia entrou no rol dos santos, a Irmã Dulce dos Pobres alcançou a glória dos altares; hoje é um dia feliz, hoje nós podemos descansar e dar graças a Deus.

Eu estive em Salvador em 2011 para ver a cerimônia de beatificação. Registrei então o carinho que o povo baiano demonstrava pela Irmã Dulce, que não se restringia ao círculo dos católicos devotos e, ao contrário, expandia-se até mesmo para além das fronteiras da Igreja. Aquela mulher viveu a caridade de forma tão concreta, visível, palpável até, que é como se, nela, as virtudes teologais ganhassem corpo e expressão sensível. É como se elas se encarnassem de tal modo que não podiam mais passar despercebidas. A Irmã Dulce foi o Catolicismo que, em pleno século XX, não se deixou confinar: saiu das igrejas e conventos para ganhar as ruas e os jornais, a cidade, o mundo.

Esta é a verdadeira santidade dos nossos dias: uma vida de austeridade e de sacrifício, indiferente aos encantos do mundo, confiante na Providência de Deus, esquecida de si no serviço ao próximo. Não estamos falando de um leprosário primitivo nem de nenhuma ordem mendicante medieval: tudo isso aconteceu aqui ao lado, em Salvador, em território urbano, em uma de nossas maiores capitais, um dia desses. A Irmã Dulce faleceu em 1992.

Também não estamos falando de assistencialismo social, do tipo que as pessoas sedizentes esclarecidas hoje acham que é dever do Estado dar a todo cidadão brasileiro. Para Santa Dulce dos Pobres, a caridade era um dever visceral dos cristãos e não um burocrático papel do Estado. Neste sentido, curiosíssimo o episódio narrado neste caderno especial da Folha: um hospital estava sendo reformado e, em dado momento, um estagiário foi dizer à Irmã Dulce que estava faltando cimento para concluir a obra. A boa baiana pega o rapaz pelo braço e o leva por diversas alas do hospital, dá de comer a crianças, troca curativos, procura remédios, conforta doentes, pára na capela para rezar. Duas horas depois, vira-se para o rapaz e lhe diz: “meu filho, você viu que Deus me deu muitos problemas para resolver hoje. O cimento você resolve, né?”

Vida da Irmã Dulce

E é este misto de vida ativa e vida contemplativa que confunde os sábios do mundo e dá frutos da parte do Altíssimo. É este o tipo de atividade que não se pode institucionalizar, burocratizar, impessoalizar; ela só pode ser humanamente desempenhada por almas generosas inflamadas de amor a Deus. Como dizia Bento XVI, a Igreja entende que a caridade “não é uma espécie de actividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência” (Deus Caritas Est, 25).

Do mesmo modo, o milagre que deu ensejo à canonização foi um prodígio impressionante. Um cego voltou a enxergar; talvez um dos mais tradicionais milagres do Novo Testamento, destes que os céticos desdenham e, os espiritualizados, buscam interpretar em sentido figurado. Mas, hoje, não estamos falando de miopia nem de catarata, destes males da retina ou do cristalino para os quais a moderna medicina consegue, muitas vezes, dar remédio. O miraculado é o maestro José Maurício Bragança Moreira, que passou 14 anos cego e, em 2014, da noite para o dia, voltou a enxergar. O glaucoma lhe havia destruído o nervo óptico, condição que, como sabemos, no atual estágio de desenvolvimento da medicina é infelizmente irreversível.

No entanto, certa noite, sofrendo de conjuntivite, sem conseguir dormir, José Maurício abraçou-se com uma imagem de Irmã Dulce e lhe pediu um refrigério para a dor que o consumia. Conseguiu dormir; na manhã seguinte, ao acordar, quando a sua esposa lhe deu algumas compressas de gelo para os olhos, ele percebeu que estava conseguindo enxergar o gelo e as mãos. A visão foi rapidamente voltando. Hoje, a julgar pelas fotos, parece que nem óculos ele usa mais.

E atenção. Não é que o nervo dele tenha regenerado de repente, o que já seria um milagre e tanto. O que os exames mostram é que o nervo óptico continua danificado; ele não deveria portanto enxergar e, não obstante, enxerga. É como se fosse não um milagre instantâneo, operado naquela noite de 2014, mas um milagre permanente: Deus está mantendo a visão de um homem que não possui estruturas biológicas aptas para enxergar. Se houvesse ainda a figura do “advogado do diabo” no processo de canonização, ele provavelmente alegaria que o milagre é pouco ortodoxo; no entanto, ele mesmo seria forçado a reconhecer que se trata de um feito portentoso.

Um milagre grandioso para celebrar não a entrada de Irmã Dulce no Céu — porque esta provavelmente se deu já naquele ano de 1992 –, mas o seu ingresso oficial, definitivo, na liturgia da Santa Igreja. Para mostrar que a vitalidade do Cristianismo continua sobre-humana a despeito das crises da Igreja. Para deixar claro que, mesmo há séculos de distância, o Evangelho mantém ainda o seu frescor e ainda é capaz de impregnar com seu perfume o nosso tempo, enchendo de assombro e admiração as nossas metrópoles.

Que o Anjo Bom da Bahia interceda por nós, olhe pela Igreja, vele pelo Brasil! Santa Dulce dos pobres, rogai por nós!

A morte de um exorcista

O recente falecimento do pe. Gabriele Amorth pegou-me de surpresa. Sim, o velho exorcista já contava com 91 anos e, nesta idade, a morte não é propriamente um acontecimento inesperado; a manchete, no entanto, mostrou-me o quão pouco eu estava acompanhando as notícias a respeito dele. Não sabia que estava doente, aliás nem me lembrava ao certo da idade dele. Na sexta-feira passada, no entanto, ele deixou o campo de batalha terreno para nos ajudar lá do Alto, onde agora pode mais junto a Deus.

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Há um mau hábito — já devo ter falado dele em algum momento por aqui — no Catolicismo contemporâneo de ser muito condescendente para com as imperfeições alheias, principalmente no que diz respeito à tendência de conceder uma imediata ascensão aos Céus às almas daqueles que minimamente admiramos. Todo mundo é santo sùbito, toda morte é entrada gloriosa no Paraíso. Esquecemo-nos do Purgatório — e isso pode até ser falta de caridade de nossa parte, na medida em que nos sentimos desobrigados de rezar pelas almas daqueles que já consideramos salvos. Esquecemos do Purgatório e queremos que todos os nossos mortos estejam, desde já, desde o instante seguinte à morte, gozando da Bem-Aventurança dos eleitos de Deus.

Ainda assim, eu disse acima que o pe. Amorth já agora estava nos ajudando de junto de Deus. Justifico. Em primeiro lugar, o venerável sacerdote chegou a uma avançada idade, e isso significa duas coisas. Primeiro que não foi apanhado de surpresa pela Morte; segundo, que pôde padecer os sofrimentos próprios da velhice em expiação pelas próprias faltas e em preparação para o Dia sem ocaso. Muitas pessoas acham que a melhor morte é aquela que nos chega sem que percebamos; o famoso “ir dormir e acordar morto”. Não vou dizer que este seja uma má morte (até porque a morte ser boa ou má depende essencialmente das disposições interiores em que nos encontramos no instante derradeiro, e não de ela ser mais demorada ou mais lenta, mais consciente ou mais súbita); mas se trata, parece-me, pelo menos de uma morte arriscada. As pessoas perderam o hábito de pensar na morte e, com isso, a morte repentina, de um mal súbito, ou a morte em um acidente, podem chegar sem que a casa esteja devidamente preparada, sem que as disposições interiores estejam suficientemente lapidadas, sem que a alma esteja pronta, em suma, para se encontrar com Deus e com os pecados de toda uma vida.

A morte na velhice, após uma doença mais ou menos longa, é o contrário. A Inimiga das Gentes vem devagar, vem anunciando a própria presença, vem a passos lentos — e, com isso, dá mais tempo para que nos preparemos. Podemos fazer um demorado exame de consciência; podemos suplicar mais demoradamente o perdão e a misericórdia de Deus. Podemos nos confessar, receber a Extrema Unção e o Viático; podemos até mesmo oferecer os inconvenientes da doença, os achaques, o medo, as dores — os sofrimentos todos em suma — em expiação pelas nossas faltas. Li que o pe. Amorth expirou após algumas semanas internados em um hospital; quero crer, portanto, que ele tenha sabido aproveitar todas essas oportunidades de apressar a própria chegada no Céu.

Uma segunda razão pela qual imagino que o pe. Amorth esteja junto de Deus é o ofício ao qual ele dedicou a própria vida. Não foi apenas sacerdote (como se isso fosse pouco), mas sim sacerdote e exorcista. Foi nesta terra inimigo ferrenho de Satanás, lutando corajosamente contra ele exatamente naqueles aspectos em que a presença demoníaca no mundo é mais forte e mais perturbadora: a obsessão, a infestação, a possessão. O mundo moderno vive em uma crise de Fé que, se muito esquece de Deus, muito mais esquece do Diabo; esta figura é muitas vezes relegada à superstição medieval, à ignorância de um passado obscuro, a concepções maniqueístas primitivas que não encontram mais lugar em um mundo onde Deus é Amor.

Ora, mas Deus sempre foi Amor; Deus é Amor desde a criação dos Anjos e a Queda de Lúcifer, e uma coisa não tem nada a ver com a outra. Satanás não é um “deus do mal”, mas isso não significa que não seja uma criatura capaz de fazer muito mal. Há entre os homens ladrões e assassinos, sádicos e estupradores, salteadores e bandidos de todos os naipes; a quantidade de mal que o homem tem provocado ao próprio homem é enorme e capaz de assombrar por toda uma vida aqueles que dela tenham ainda que um pálido vislumbre. Senão vejamos: se os homens podem causar mal uns aos outros sem que isso seja um óbice à existência de um Deus que é Pai Amoroso, por que um anjo não poderia também provocar o mal aos filhos de Deus sem que isso minimamente maculasse a Onibenevolência do Altíssimo? Não há maniqueísmos dentro da Doutrina Cristã e nunca os houve; não há um deus mau ao lado do Deus que é Bom. No entanto, o mistério da liberdade que permite a existência do mal moral dentro do mundo criado não se restringe apenas aos seres humanos. Também os anjos têm inteligência e vontade, também eles são seres livres, também podem fazer o mal. Satanás não é uma hipótese ingênua e contraditória com a noção de um Deus sumamente bom, pelo menos não mais do que um estuprador ou um serial killer. Na verdade é o contrário: ingenuidade é imaginar que, havendo ladrões e assassinos no mundo, não pudessem existir também seres angélicos voltados à prática do mal.

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O pe. Amorth foi inimigo ferrenho de Satanás nesta terra, eu dizia, e venceu-o por incontáveis vezes, e por isso eu também quero acreditar que Deus o tenha levado depressa para os Céus; pode ser sentimentalismo, mas acho que não convém que aquele que foi inimigo aberto do Demônio no mundo tenha a sua entrada no Céu postergada por causa de algum apego de sua alma aos pecados que nada mais são do que as obras do mesmo Satanás que ele dedicou a vida a combater. Mas há ainda uma terceira razão. É que o tempo e a Eternidade relacionam-se de maneira, digamos, curiosa: aqui a história se desenrola de maneira sequencial mas, lá, é tudo já e(vi)terno.

O padre Pio certo dia rezava pelo seu avô. “Mas padre, o senhor não disse que ele já estava no Céu?”, um amigo perguntou; “sim, está, mas as orações que eu fiz por ele até hoje e as que eu ainda farei até o fim da minha vida o ajudaram a chegar lá”. O John McCaffery registrou a história em seu livro de memórias, e compreendê-la ajuda a contemplar melhor o mistério da Comunhão dos Santos. O Céu já está completo enquanto a História se desenrola; e por mais tempo que uma alma justa tenha passado no Purgatório, já agora ela está no Céu, já agora ela pode interceder por nós.

É com este ânimo que olho para o pe. Amorth e quero já vê-lo em esplendor — o velho guerreiro revestido de suas armas gloriosas, impingindo já a Satanás maiores tormentos do que nos mais formidáveis exorcismos que ele exerceu durante a sua vida…! Que assim seja. Que o bom Deus olhe com misericórdia para o seu pobre servo e lhe dê o descanso eterno, a luz e a paz. E que, do alto dos Céus, o padre Gabriele Amorth continue a fazer guerra terrível contra todos os espíritos malignos que andam pelo mundo para perder as almas.

O “escândalo” sobre a vida íntima do Papa João Paulo II

Um leitor desafia-me aqui no blog: «quero ver agora qual será a desculpa para defender Karol Wojtyła». Ora, mas defender do quê?

A despeito da péssima qualidade da mídia laica e anticlerical — somente na qual, ao que parece, os detratores da Igreja vão buscar as suas informações… –, nem mesmo nela é possível encontrar o «escândalo sobre a vida intima (sic) de Karol Wojtyła» que o meu contendedor alardeia. O Jornal Nacional fala em «amizade intensa» do Papa polonês com uma filósofa americana; El País, em «íntima amizade». A BBC fala em «relação ‘intensa’», e o máximo que encontrei foi «amizade “corajosa”» na Gazeta do Povo. Onde está o escândalo?

Responda-se: o “escândalo” está na ilação maliciosa — que nem os órgãos de mídia ousarem fazer diretamente! — de que haveria, para usar o termo corrente, “segundas intenções” por detrás da correspondência que o Papa João Paulo II trocou durante longos anos com Anna-Teresa Tymieniecka. Veja-se bem o que estamos tratando aqui: nem mesmo a mídia anticlerical ousou acusar diretamente São João Paulo II de ter mantido um caso com a americana, e o comentarista autoproclamado católico sequer pensa duas vezes em tomar a insinuação maliciosa como um fato incontestável! E, pior, quer — exige até! — que todo mundo acredite no mesmo que ele!

Não satisfeitos em deixar o fundo do poço ao jornalismo medíocre que alardeia fatos públicos como se fossem descobertas bombásticas a respeito da vida privada dos santos da Igreja, os comentaristas do Deus lo Vult! que parecem dedicar as suas vidas à difamação da Igreja foram mais ousados: chafurdando ainda um pouco mais na lama para não perder em abjeção à imprensa anticatólica, complementam-lhe o serviço e vêm alardear, com ares de autoridade, aquilo que a mesma imprensa teve ao menos o decoro de deixar encoberto. É impressionante.

O que interessa dizer sobre o mérito da acusação? Primeiro, que trocar cartas não é crime nem é pecado. O clero católico faz voto de celibato (e não “de castidade” (sic), como saiu na mídia), não de silêncio ou de isolamento social. A correspondência pessoal do Romano Pontífice não é em si mesma uma violação de nenhum dos seus deveres de estado.

Segundo, que a incapacidade de enxergar amizade desinteressada nas conversas alheias — como se um homem só conversasse com uma mulher se tivesse interesses sexuais nela — é um defeito de quem julga deste modo, e não se pode admitir que semelhante reducionismo seja transposto da imaturidade dos que o alimentam para a personalidade das grandes almas do planeta. Em uma palavra: não é porque alguns retardados acham que só escreve “aquele tipo de carta” quem está sexualmente interessado em alguém que todo mundo — o Papa inclusive — fica obrigado a só escrever para quem quiser “pegar”. Isto é ridículo até mesmo no mundo secular; na Igreja, é patético a ponto de não merecer dois segundos de atenção.

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Terceiro, que se fosse verdade «que Anna-Teresa Tymieniecka poderia estar apaixonada pelo então cardeal Karol Wojtyla», como está na Gazeta do Povo, isso em nada desabonaria a figura de S. João Paulo II. As pessoas devem ser avaliadas moralmente por suas ações, e não pelas que terceiros têm para com elas; um possível (e olhe o que digo, possível, porque tudo não passa de especulação) amor platônico entre a americana casada e o cardeal europeu pode no máximo ser censurável a ela, não a ele — ao menos não sem acrescentar uma série de outras variáveis desabonadoras (e.g. que o Papa alimentasse deliberadamente a paixão da filósofa pelo simples prazer de se sentir desejado) que de nenhuma maneira se pode inferir dos documentos existentes.

Quarto, por fim, que o assunto não é sequer novidade; como disse um amigo jornalista no Facebook, o fato já fora publicado na biografia do Papa escrita há vinte anos por Carl Bernstein e Marco Politi. Além disso, não se trata de um caso isolado: a correspondência trocada entre Sua Santidade e a médica polonesa Wanda Półtawska ao longo de mais de 50 anos, por exemplo, é um livro que tem inclusive uma edição brasileira desde 2011.

Qual o sentido da “polêmica” agora levantada? Ela não diz nada a respeito da figura do Papa que não fosse já de conhecimento público; mas diz, sim, um bocado!, sobre as pessoas que, lendo a reportagem, ensaiaram um sorriso lascivo ou fizeram algum comentário malicioso sobre o assunto (preenchendo as lacunas que os jornais intencionalmente deixaram abertas, ‘pegando’ as insinuações deliberadamente deixadas no ar e achando que, com isso, faziam algum exercício particularmente notável de perspicácia). Ela revela, na verdade, a própria pequenez desses leitores, incapazes de manter um relacionamento interpessoal desinteressado e reduzindo a diferença entre os sexos ao seu mero aspecto venéreo. O que projetam no Papa é somente o seu próprio reflexo. E essa história, portanto, pode até não dizer nada sobre São João Paulo II; mas diz muito, sim, sobre o homem contemporâneo — e o que diz é deprimente.

Graças ao bom Deus

Eu “me reprovei” na minha primeira catequese de Crisma. Graças ao bom Deus. Ainda envolto nos liames de uma adolescência pouco virtuosa e da qual não tenho muito orgulho, entrei para a catequese já quase homem feito, com os meus dezessete carnavais. O curso, levei-o como quem não quer nada, oscilando entre o desinteresse e a displicência. Após ter perdido muito mais aulas do que permitiriam as mais generosas e tolerantes cargas horárias mínimas, ainda assim a minha catequista me chamou no final do curso e perguntou se eu queria me crismar. Eu disse que não. Ela insistiu: “amanhã pode ser tarde”. Eu fui resistente. “Não posso me crismar, não estou preparado”. Graças ao bom Deus, entre todas as minhas falhas de caráter nunca se pôde contar a hipocrisia. Não me crismei. Disse que voltaria no ano seguinte.

Era óbvio que eu não podia me crismar: graças ao bom Deus eu pude ver isto com clareza. Sem perceber, eu corria então o terrível risco de relegar o meu Sacramento à irrelevância das coisas que se fazem “só por fazer”, como (mais) uma das matérias do colégio que a gente só cumpre porque está no quadro de disciplinas mas que, para a nossa vida, não serve de nada. Que passa e depois a gente esquece. Mas eu aprendera que receber o Sacramento da Crisma era se transformar em soldado de Cristo com a missão permanente de defender a Santa Igreja, e o meu gosto de então por romances épicos me fazia levar demasiadamente a sério esta metáfora.

E eu não podia defender a Santa Igreja, eu que sequer pronunciava o “[Creio] na Santa Igreja Católica” do Credo dominical! Eu estava ainda enojado com a corrupção da Igreja evidente após séculos e séculos de opressão e de busca imoral por poder e por controle, e com todas as outras coisas que a gente aprende nas aulas de história do Ensino Médio. Com a perseguição à ciência. Com a carnificina das cruzadas. Com o genocídio indígena. Com o terror da Inquisição. O quadro era por demais tétrico e, a instituição nele retratada, por demais repulsiva para merecer o meu juramento de vassalagem. Graças ao bom Deus, eu não podia me crismar.

Eu não sei entrar em detalhes sobre como esta imagem se desvaneceu por completo da minha mente; eu mesmo não o sei ao certo. A curiosidade e a honestidade tiveram um importante papel neste processo: as incansáveis leituras e as infindáveis discussões (mormente pela internet) me levaram a abandonar – graças ao bom Deus! – o legado anti-clerical da minha adolescência. Depois, olhando para trás, pude fazer minhas estas palavras de Chesterton que retratam a sua perplexidade com as críticas ao Cristianismo. Graças ao bom Deus, eu sempre mantive a virtude da coerência.

E no ano seguinte eu voltei. Graças ao bom Deus, eu voltei. E, numa noite de sábado do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2002, com quase dezenove anos, eu recebia na fronte o óleo do Crisma e, na alma, o caráter da Confirmação. Este ano faz uma década. De lá para cá muitas coisas aconteceram, muita água rolou sob a ponte; mas graças ao bom Deus eu sempre consigo voltar àquela noite em que, jovem e entusiasmado cruzado com a testa rescindindo a bálsamo, depus a minha alma aos pés de Nosso Senhor. Graças ao bom Deus, ainda estou na luta. E permita-me Ele que neste combate eu possa viver e morrer.

“Um cientista santo” – Dom Fernando Rifan

[Publico artigo de D. Fernando Rifan sobre o Dr. Jerôme Lejeune. O texto é bastante útil para os que (ainda) pensam haver alguma incompatibilidade entre ciência e Fé; entre ser cientista e ser católico. Dia desses, um amigo me falava que deixara de escrever sobre Fé e Ciência por uma razão bem simples: não há muito o que escrever. As “regrais gerais” são suficientemente sucintas e claras e, uma vez que se lhas entende, só resta aplicá-las e aplicá-las de novo aos casos individuais que porventura apareçam. E isto é geralmente “trabalho mecânico” e não intelectual; agrega conhecimento apenas quantitativa, e não qualitativamente.

Outro dia um aluno me perguntou o que a Igreja dizia sobre extraterrestres. Eu disse que Ela não dizia nada e isto “nem interessava”, ao que ele aquiesceu com entusiasmo por haver entendido. A Igreja pode discorrer sobre as (possíveis) características espirituais dos extraterrestres, pode propôr hipóteses para explicar-lhes a (possível) existência ou descartar algumas outras como incompatíveis com a Revelação, ou outras coisas do tipo. Mas a Igreja não pode dizer nada sobre a questão de fato da existência ou não deles, porque o objetivo d’Ela não é perscrutar o Universo em busca de vida alienígena, e sim anunciar aos homens a salvação de Deus. Se algum dia esta missão d’Ela esbarrasse em uma nave extraterrestre, isto poderia ser interessantíssimo como obra de ficção científica ou como especulação recreativa para as horas vagas; mas isto, absolutamente, não interessa para a maior parte das pessoas no presente momento.

Da parte da Igreja, não há e nem pode haver óbice a nenhuma espécie de conhecimento verdadeiro, porque toda verdade vem de Deus e, sendo Deus o autor da Revelação, não há contradição possível entre o mundo que Ele criou e as coisas que Ele revelou a respeito de Si próprio e do mundo criado. Esta é a regra geral: sábio é o homem que a compreende! Então ele poderá fortalecer a sua Fé e a sua ciência diante das descobertas científicas concretas com as quais se deparar ao longo de sua vida. Por outro lado, estulto é o sujeito que em qualquer relampejo de técnica julga descobrir uma “prova” de que Deus não existe. Este infeliz não conseguirá jamais entender nem a religião e nem a ciência.]

UM CIENTISTA SANTO

Dom Fernando Arêas Rifan*

 

Em 2001, em Roma, tive a honra de jantar com uma distinta senhora e seu genro, cuja identidade me surpreendeu. Tratava-se da viúva do grande médico cientista, Dr. Jerôme Lejeune, falecido em 1994, e seu genro, o diretor da Fundação Jerôme Lejeune, inaugurada após sua morte, que dá continuidade à sua ação em favor dos deficientes mentais.

Jérôme Jean Louis Marie Lejeune (1926-1994) foi um médico francês, pediatra, professor de genética e cientista, a quem se deve a descoberta da anomalia cromossômica que dá origem à trissomia 21, identificando assim a origem genética da chamada Síndrome de Down.   

O professor Lejeune, considerado o pai da genética moderna, obteve, entre várias honrarias e títulos, os de doutor Honoris Causa das universidades de Düsseldorf (Alemanha), Pamplona (Espanha), Buenos Aires (Argentina) e da Pontifícia Universidade do Chile. Ele era membro da Academia de Medicina da França, da Academia Real da Suécia, da Academia Pontifícia do Vaticano, da American Academy of Arts and Sciences e da Academia de Lincei (Roma) entre outras. Participou e presidiu várias comissões internacionais da ONU e OMS. Obteve numerosos prêmios pelos seus trabalhos sobre as patologias cromossômicas, entre os quais o Prêmio Kennedy em 1962, que recebeu diretamente das mãos do presidente John F. Kennedy. Em 1964, ele foi o primeiro professor de genética na Faculdade de Medicina de Paris.

Em 1974, o Papa Paulo VI o convida a fazer parte da Pontifícia Academia das Ciências e, mais tarde, do Pontifício Conselho para a Pastoral no Campo da Saúde. Em 1981, Jérôme foi eleito à Academia de Ciências Morais e Políticas da França e, em 1994, tornou-se o primeiro presidente da Pontifícia Academia para a Vida, criada naquele mesmo ano pelo Beato João Paulo II, de quem era amigo particular.

Mas, o mais surpreendente de tudo isso: ele teve uma vida santa. João Paulo II, em 1997, na Jornada Mundial da Juventude em Paris, fez questão de ir rezar no seu túmulo. Seu processo de beatificação e canonização foi aberto em 28 de junho de 2007. Com Missa pela vida celebrada na Catedral de Notre-Dame de Paris, em abril passado, encerrou-se o processo diocesano da causa de beatificação e canonização do servo de Deus Jérôme Lejeune. Conhecido por tratar e acompanhar pacientes com deficiência intelectual e, sobretudo, pelo compromisso em favor da vida humana, em 1971 realizou um discurso contra o aborto no National Institute for Health e depois disto mandou uma mensagem à sua esposa dizendo: “hoje perdi meu Prêmio Nobel”. Nesse discurso, Lejeune foi forte: “Vocês estão transformando seu instituto de saúde em um instituto de morte”.

A Igreja tem santos de todos os tipos, temperamentos, profissões, classes sociais, idades, países e línguas. Assim ela nos ensina que a santidade não está excluída de ninguém. Pelo contrário, está ao alcance de todos. “Todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade” (Lumen Gentium, 39).

 

*Bispo da Administração Apostólica Pessoal
São João Maria Vianney

Santo Antônio

Assistiu à canonização de São Francisco em 1228 e deslocou-se a Ferrara, Bolonha e Florença. Durante 1229 as suas pregações dividiram-se entre Vareza, Bréscia, Milão, Verona e Mântua. Esta actividade absorvia-o de tal maneira que a ela passou a dedicar-se exclusivamente. Em 1231, e após contactos com Gregório IX, regressou a Pádua, sendo a Quaresma do ano seguinte marcada por uma série de sermões da sua autoria.

Instalou-se depois em casa do Conde de Tiso, seu amigo pessoal, onde morreu em 1231 no Oratório de Arcela.

O facto de ter sido canonizado um ano após a sua morte, mostra-nos bem qual a importância que teve como Homem, para lhe ter sido atribuída tal honra. Este acto foi realizado pelo Papa Gregório IX, que lhe chamou “Arca do Testamento”.

Evangelho Quotidiano, Santo António de Lisboa

* * *

Enquanto isso, leio que “até Santo Antônio foi mais twittado do que jogo da Copa”. Dividido entre a repulsa pelo tom de desprezo empregado na manchete e a alegria pela popularidade do grande santo lusitano, vou aos Trending Topics. A impressão é positiva; há pessoas dizendo que vão à Missa, biografias do santo, pedidos de intercessão, et cetera.

O que me entristece é a quantidade – também grande – de coisas referentes às simpatias para se arranjar namorado. Ver o Martelo dos Hereges reduzido ao “santo-corta-jaca” é sinceramente decepcionante. Santo Antônio de Pádua, rogai pelo Brasil.

P.S.: Encontrei por acaso e ainda não li: “Martelo dos Hereges – Militarização e Politização de Santo Antônio no Brasil Colonial”. O título me pareceu interessante; e, ademais, eu tendo a ser simpático por quem tem coragem de agradecer “a Deus (dos Exércitos)” em uma dissertação de mestrado.

São Luis Grignion de Montfort – Liturgia das Horas

st-louis-montfortNasceu no dia 31 de janeiro de 1673, na França. Foi ordenado sacerdote no dia 05 de junho de 1700, no seminário de São Sulpício em Paris. Durante seus primeiros anos de sacerdócio, trabalhou principalmente para os pobres no hospital de Poitiers, onde conheceu Maria Luísa Trichet a quem orientou em sua vocação. O Papa Clemente XI lhe deu o título de “Missionário Apostólico” e percorreu a França anunciando aos pobres o mistério da Sabedoria e o amor de Cristo Encarnado e Crucificado. Estabeleceu  em todas as partes a prática do santo Rosário e da santa Escravidão de amor, ou perfeita Consagração a Cristo pelas mãos de Maria, como meio eficaz para viver fielmente os compromissos do batismo. Aos 43 anos de idade, dia 28 de abril de 1716, em plena missão popular no povoado de São Lourenço, Luís Maria foi chamado por Deus para a glória do céu. Sua atividade foi essencialmente missionária, assim como todo seu estilo de vida. Viveu numa pobreza total para evangelizar os pobres. No dia 12 de março de 1853, o Papa Pio IX declarou os seus escritos isentos de qualquer erro. Dentre estes é universalmente conhecido o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima virgem Maria”. O Papa Leão XIII declarou-o beato no dia 22 de janeiro de 1888. Pio XII canonizou-o solenemente no dia 20 de julho de 1947. No dia 20 de julho o Papa João Paulo II inseriu sua Festa no calendário romano universal.

[…]

PRIMEIRAS VÉSPERAS

Hino
O.C. Cant. 11, 1-4

Vinde, Ó Jesus, que viveis em Maria;
vinde viver e reinar em nós,
que vossa vida se expresse em nossa vida,
para vivermos somente para vós.

Forjai em nossa alma, ó Cristo, vossas virtudes,
vosso Espírito divino e santidade,
vossas máximas perfeitas e vossas normas
e o ardor de vossa eterna caridade.

Dai-nos parte, Senhor, em vossos mistérios
para que possamos vos imitar.
vós que sois Luz da Luz, dai-nos vossas luzes,
e poderemos seguir os vossos passos.

Reinai, Cristo, em nós por vossa Mãe,
sobre o demônio e a natureza,
por causa de vosso nome soberano,
para a glória do Pai celestial. Amém.

Ant. 1 O Senhor me enviou a evangelizar com a manifestação de seu Espírito e de seu poder salvador, Aleluia.

[…]

Ant. 2 Pregamos a Cristo crucificado, que é força de Deus e sabedoria de Deus, Aleluia.

Ant. 3 Por Jesus Cristo, Deus nos predestinou a sermos seus filhos adotivos, Aleluia.

[…]

Preces

Oremos a Jesus Cristo, a Sabedoria eterna e encarnada, que constituiu a Luís Maria de Montfort seu missionário apostólico a serviço dos pobres e peçamos:

R. Venha o vosso Reino por meio da Virgem Maria.

Vós que elegestes o Papa Bento XVI como vigário de vosso amor, para presidir a caridade na Igreja,
– fazei que vossos ministros perseverem na doutrina dos santos Apóstolos e sejam fiéis despenseiros de vossos mistérios. R.

Vós que enviastes os vossos discípulos ao mundo inteiro a pregar a Boa Notícia a toda criatura,
– dai aos pregadores o dom de vossa sabedoria e confirmai sua Palavra com vossa graça. R.

Vós que inspirastes em São Luís Maria o desejo ardente de servir às necessidades da Igreja,
– inflamai nossos corações com o fogo do vosso Espírito para que possamos sempre sentir com a Igreja e dedicar-nos à evangelização dos pobres. R.

Vós que, por obra de São Luís Maria, suscitastes nossas famílias consagradas totalmente a vós pelas mãos de Maria,
– concedei-nos que, animados por vosso Espírito de sabedoria e guiados por Santa Maria Virgem, caminhemos de modo digno de nossa vocação. R.

Vós que sois a herança dos santos e o gozo que ninguém jamais poderá arrebatar,
– dai a vossos fiéis defuntos o gozo eterno e fazei-nos partícipes da glória do Reino dos Céus. R.

Pai nosso…

* * *

[Liturgia Própria da Família Monfortina, pp. 45-48, Edições Monfortinas, João Monlevade, 1999]