A Odisséia da Vida

Nos olhos há milhões e milhões de átomos, há milhões e milhões de moléculas de uma complexidade e instabilidade estonteadoras, há células e tecidos, há nervos que sentem, há músculos que movem, há vasos que alimentam, e tudo, desde as propriedades químicas e fisiológicas da citropsina até aos movimentos reflexos que asseguram o poder de acomodação do cristalino ou os movimentos sinérgicos dos globos oculares, tudo converge admiravelmente para a unidade de uma função. É esta convergência, é este princípio de unidade – que exige uma explicação, que pede uma razão de ser. E outra razão de ser não há senão admitir que a natureza construiu um órgão para ver.

Pe. Leonel Franca, “O problema de Deus”.

A criação da vida artificial

Não tenho muito tempo agora, mas é só para comentar en passant um assunto ao qual eu provavelmente terei que voltar depois: Vida sintética criada pela 1a vez. Pelo que entendi, um cientista projetou um genoma em computador, sintetizou, colocou em uma “carcaça” de bactéria (i.e., retirou o DNA “original” dela) e o bicho “funcionou” – a bactéria começou a se comportar de acordo com o DNA novo.

Bom, antes de mais nada, remeto ao lúcido texto da Lenise Garcia sobre o assunto, publicado na Gazeta do Povo. “Venter está ‘brincando de Deus’? Nem tanto. Afinal, o homem gera novas espécies de plantas e vegetais há muito tempo, fazendo cruzamentos”. As exaltações são até justificáveis, uma vez que o avanço científico é sem dúvidas notável; mas não há motivos para se colocar os carros na frente dos bois, ou – pior ainda – enxergar nos experimentos de Venter coisas que não estão lá.

Quais as grandes novidades do resultado? Ao que me conste, já se sabia o que era um genoma. Já se tinha noção de como ele funcionava. Já se sabia que o DNA, grosso modo, é um polímero bem grande, e já se sabia que polímeros podem ser sintetizados. A novidade, portanto, ao que parece, é que isso pela primeira vez foi feito.

Não acompanhei a pesquisa e não sei exatamente quais eram as dúvidas que os cientistas tinham, nem quais as linhas de pesquisa que se abrem agora, as próximas barreiras a serem ultrapassadas, os objetivos visados, ou nada disso. Quais as implicações teológicas desta descoberta, é o assunto que nos toca mais proximamente. Sobre estas, volto a escrever em breve.

Hélio, o aborto e a alma

Aproveitando o ensejo surgido em uma troca de emails com uns amigos, gostaria de comentar o artigo do Hélio Schwartsman de hoje sobre o aborto. Para fins de praticidade vou comentar por partes, abstendo-me de citar os trechos sobre os quais não tenho comentários a tecer; quem quiser ler o artigo na íntegra, vá no link supracitado.

Comecemos com um pequeno experimento mental. Suponhamos por um breve instante que as leis e instituições funcionassem direitinho no Brasil e que todas as mulheres que induzem ou tentam induzir em si mesmas um aborto (…) fossem identificadas, processadas e presas

[…]

Minha pergunta é muito simples: Você acha que a aplicação universal do que preconiza a lei do aborto tornaria o Brasil um país melhor ou pior do que é hoje?

Melhor, obviamente, porque um país que pune os crimes de seus cidadãos é sem dúvidas melhor do que um país onde reina a impunidade. Ademais, esta questão pragmática não tem nenhuma relevância no debate, simplesmente porque a “aplicação universal” de virtualmente qualquer artigo do Código Penal iria esbarrar nos exatos mesmos problemas apontados pelo articulista da Folha. E nem por isso nós advogamos pela extinção do Código Penal.

Trabalhos da década de 90 estimavam em até 1,4 milhão o número anual de interrupções forçadas da gravidez.

Estimativas chutadas, para dizer o mínimo. Sobre o número de abortos que ocorrem no Brasil, vale a pena ler este post do Murat – que, aliás, hoje completa exatamente um ano.

Independente disso, sob qualquer ótica minimamente racional, um grande número de crimes é motivo para se aumentar a fiscalização e a punição, e jamais para se lhe abrandar. Se os abortistas fizessem uma aplicação honesta dos seus princípios, quanto mais assaltos houvesse em uma cidade, maior deveria ser o clamor para a descriminalização do roubo. No entanto, eles não fazem isso. Só aplicam os seus “raciocínios” à questão do aborto.

É no mínimo complicado afirmar que a vida começa com a concepção.

Não, não é. O que é complicadíssimo – como o próprio articulista vai admitir no final – é negar que a vida comece na concepção. Mas já vamos chegar lá.

Uma semente não é uma árvore e não recebe do Ibama o mesmo nível de proteção que uma respeitável tora de mogno.

Não, mas o Ibama pune como crime contra a fauna a destruição de ovos – ainda que seja um único – de tartarugas marinhas. E aí, como ficamos? A vida das tartarugas começa “antes” da dos seres humanos? Trata-se de alguma peculiar característica evolutiva com a qual a espécie humana não foi agraciada?

O que a concepção produz é um ser humano em potência, para utilizar a distinção aristotélica, autor tão caro à igreja

Que grosseira petição de princípio. A concepção produz um ser humano em ato, e um homem adulto em potência. Como um recém-nascido é também um adulto em potência, e não “um ser humano em potência”.

Só o que torna coerente a posição do Vaticano, é um dogma de fé: o homem é composto de corpo e alma. E a igreja inclina-se a afirmar que esta é instilada no novo ser no momento da concepção.

Não, negativo. Não é somente por causa disso que a Igreja condena o aborto. Bastaria ler a Declaração sobre o aborto provocado da Congregação para a Doutrina da Fé, onde se diz, citando inclusive autores do início do Cristianismo: “Tertuliano não usou, talvez, sempre a mesma linguagem; contudo, não deixa também de afirmar, com clareza, o princípio essencial: « É um homicídio antecipado impedir alguém de nascer; pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda para nascer. É já um homem aquele que o virá a ser »”. Aliás, vale a pena citar a nota de rodapé que fala explicitamente sobre a questão da infusão da alma:

Esta Declaração deixa expressamente de parte o problema do momento de infusão da alma espiritual. Sobre este ponto não há tradição unânime e os autores acham-se ainda divididos. Para alguns, ela dá-se a partir do primeiro momento da concepção; para outros, ela não poderia preceder ao menos a nidificação. Não compete à ciência dirimir a favor de uns ou de outros, porque a existência de uma alma imortal não entra no seu domínio. Trata-se de uma discussão filosófica, da qual a nossa posição moral permanece independente, por dois motivos: 1° no caso de se supor uma animação tardia, estamos já perante uma vida humana, em qualquer hipótese, (biológicamente verificável); vida humana que prepara e requer esta alma, com a qual se completa a natureza recebida dos pais; 2° por outro lado, basta que esta presença da alma seja provável (e o contrário nunca se conseguirá demonstrá-lo) para que o tirar-lhe a vida equivalha a aceitar o risco de matar um homem, não apenas em expectativa, mas já provido da sua alma.

Agora, sabem de quando é este documento? De 1974. Tem, portanto, mais de trinta anos. O que justifica que, em pleno século XXI, um sujeito tenha a pachorra de publicar um texto na internet acusando a Igreja de defender uma coisa que Ela não defende? Isso poderia ser encontrado em qualquer pesquisa do Google! Custa se informar sobre um determinado assunto antes de escrever sobre ele?

Uma das mais importantes autoridades da igreja, santo Tomás de Aquino, afirmou, acompanhando Aristóteles, que a alma de garotos só chegava ao embrião no 40º dia. Já a de garotas (vocês sabem como são as meninas!) só no 48º dia.

É sinceramente frustrante ser obrigado a ler um coisa dessas no dia de Santo Tomás de Aquino (que é comemorado hoje, dia 28 de janeiro).

Em primeiro lugar, a teoria não dizia que as almas femininas eram infusas “no 48º dia”, e sim no 80º (ou no 90º, segundo alguns). Em segundo lugar, essa posição era mais científica (da “embriologia” de então) do que teológica, uma vez que, à época do Estagirita e do Aquinate, acreditava-se que os homens produziam “homúnculos” que se instalavam no útero materno e iam recebendo “almas sucessivas” (primeiro vegetativa, depois sensitiva e, depois, intelectiva – era essa última que era infusa no 40º dia) conforme fossem se desenvolvendo. Em terceiro lugar, há quem defenda que Santo Tomás não adotava a teoria da animação sucessiva. Em quarto lugar, a Igreja não condenou jamais nem uma teoria nem outra. Em quinto lugar, mesmo com as disputas filosóficas sobre o instante da infusão da alma, nem Santo Tomás de Aquino e nem ninguém na Igreja nunca defendeu o aborto (veja-se, p.ex., Dom Estêvão sobre o assunto, ou João Paulo II na Evangelium Vitae, n. 61)! Aliás, vou citar esta passagem da EV (grifos meus):

Ao longo da sua história já bimilenária, esta mesma doutrina [em classificar o aborto como desordem moral particularmente grave] foi constantemente ensinada pelos Padres da Igreja, pelos seus Pastores e Doutores. Mesmo as discussões de carácter científico e filosófico acerca do momento preciso da infusão da alma espiritual não incluíram nunca a mínima hesitação quanto à condenação moral do aborto.

Esta carta encíclica é de 1995. Tem quinze anos. E tem no Google. Custava ler antes de escrever?

Volto ao Schwartsman:

Mas será que a noção de alma para em pé?

Vale salientar que, uma vez que (como foi mostrado) a condenação moral do aborto independe do momento da infusão da alma, todas as objeções do Hélio à teoria da animação simultânea têm somente interesse filosófico. Em absolutamente nada mudam a condenação moral do aborto. No entanto, vamos às objeções dele.

Estima-se que 2/3 a 3/4 dos óvulos fecundados jamais se fixem no útero, resultando em abortos espontâneos.

Irrelevante. Um limbo “super-povoado”, embora me incomode profundamente, não é de per si uma demonstração da animação tardia.

Além da hipótese da superpopulação do Limbo, pode perfeitamente acontecer que (a) as estimativas estejam erradas; (b) estes abortos sejam frutos de um defeito na concepção, resultando assim em matéria não adequadamente disposta para a recepção da alma intelectiva e, portanto, neste caso, é precisamente a ausência da alma que provoca a “morte” do embrião e o subseqüente aborto espontâneo; (c) a teoria da animação simultânea esteja errada. Ou qualquer outra coisa na qual eu não consiga pensar agora.

Isso, como foi dito, pode até ter interesse metafísico, mas é completamente irrelevante no debate sobre o aborto.

Para começar, a própria concepção não é exatamente um instante, mas um intervalo que varia de 24 a 48 horas. Esse é o tempo que transcorre entre a penetração do espermatozóide no óvulo e a fusão genética dos gametas. Será que a alma leva todo esse tempo para ser soprada no novo ser?

Pode-se perfeitamente assumir que a infusão da alma ocorre ao fim do processo, quando a matéria está adequadamente disposta. Aliás, se a gente parar de pensar em “infusão da alma” como um “sopro”, literalmente, e considerar as coisas da maneira que a filosofia católica considera, todas as dificuldades levantadas pelo artigo da Folha deixam de existir.

O homem, como todas as coisas (exceto os anjos), tem matéria e forma. O corpo é a matéria, a alma é a forma. Para existir o homem – como, aliás, para existir qualquer coisa – é preciso que haja a matéria e a forma, porque “matéria não-informada” não existe e, forma sem matéria, só os anjos. Se, portanto, há um ser humano, há forma, há alma. Em outras palavras: se a matéria orgânica está disposta de tal maneira que seja um ser humano (lógico, e este ser humano em questão está vivo), há uma forma a lhe dar consistência ontológica, há uma alma. Assim considerando, todas as objeções perdem o fundamento, como se pode ver a seguir.

Como já expliquei em outras colunas, gêmeos monozigóticos (idênticos) se formam entre um e 14 dias depois da fertilização, quando o embrião sofre um desenvolvimento anormal dando lugar a dois ou mais indivíduos com o mesmo material genético. A alma, é claro, já estava lá. Cabem, assim, algumas perguntas. Ela também se divide, ou outras almas surgem para animar os demais irmãos?

As almas surgem quando a matéria está disposta, conforme acima explicado. Assim, caso uma divisão celular resulte em dois embriões, a segunda alma surge junto com o segundo embrião, da mesma forma como surgiria se o embrião fosse resultante de fecundação, e não de divisão celular.

Quem fica com a alma “original” é uma pergunta obviamente irrelevante e impossível de ser respondida.

O quimerismo é relativamente raro entre humanos, mas ocorre quando dois ou mais embriões se fundem antes do quarto dia de gestação.

Se o embrião deixa de existir, a alma dele morre. Qual a dificuldade com isso?

O que procurei mostrar com essas considerações é que não é tão certo que a vida comece com a concepção.

Aqui, o Hélio identifica – de maneira totalmente indevida – “a vida começa na concepção” com “a alma é infundida na concepção”. A primeira, é um dado científico incontestável; a segunda, é uma questão filosófica em aberto. O Hélio contestou a segunda; sobre a primeira, não deu um único pio ao longo de todo o longo artigo.

O meu palpite (e é só um palpite, porque eu, ao contrário de alguns religiosos, tenho muito poucas certezas) é que não dá para estabelecer um instante mágico a partir do qual o embrião se torna um ser humano. Ou melhor, até podemos eleger esse momento, mas ele será tão arbitrário quanto qualquer outro.

E, já que a definição é necessariamente arbitrária, não vejo motivos para não a ajustarmos às nossas necessidades.

Que pérola! Antes de mais nada, a embriologia já define perfeitamente que um embrião é um ser humano (se não for um ser humano, ele é o quê? Uma galinha?); o que o Hélio quer dizer, confundindo as duas questões que eu mencionei acima, é que não dá para dizer com certeza quando a alma é infusa.

E a “solução” para ele, ao invés do in dubio pro reo obviamente mais sensato (i.e., considerar ao menos que o embrião pode ser um ser humano, dado que esta possiblidade não foi de modo algum excluída e, portanto, todas as pessoas, para serem honestas, precisam considerá-la e, por conseguinte, proteger o embrião), é… ser arbitrário. Já pensou que maravilha? A gente pode mandar a biologia às favas. A gente pode arbitrar quando é que o ser humano passa a existir. Alguns podem escolher que é na concepção, outros, que é aos 48 dias. Outros podem escolher que é aos dezoito anos. Outros, aos sessenta. E talvez outros possam arbitrar que, para algumas pessoas (digamos, deficientes mentais, ou negros ou judeus), não é nunca. Afinal, não dá para saber com certeza…

Sim, o mundo não é um lugar perfeito. Mas seria muito, muito pior se os abortistas fossem levados a sério em todas as sandices que defendem.

Algoritmos Genéticos e Banda Djavú

Estando em curso um post cá no blog sobre Teoria da Evolução, achei curioso que, hoje, do nada, lá no laboratório da Universidade, a conversa sobre procedimentos matemáticos e biológicos tenha parado nos Algoritmos Genéticos.

Lembro-me deles, porque tive que os implementar numa cadeira sobre – salvo engano – inteligência artificial. A idéia é resolver os problemas de otimização modelando os possíveis resultados como se fossem indivíduos de uma “população” e, a partir daí, aplicar operadores inspirados na biologia – mutação (modificar aleatoriamente um resultado) e crossover (obter um resultado a partir da combinação de outros dois) – para gerar novos “indivíduos” a partir dos antigos (i.e., novos resultados) e, selecionando iterativamente os melhores, fazer com que a “população” convirja em torno do melhor “indivíduo”, que vai ser então o melhor resultado e, portanto, a solução para o problema. Para quem quiser visualizar isso, tem um interessante Applet na internet que mostra como funciona.

Acontece que, lá na Universidade, surgiu-me uma dúvida terrível, cuja resposta eu não lembrava a partir das minhas aulas da graduação: como impedir a “população” de diminuir? Porque a operação de crossover – segundo lembrava – pega dois resultados e gera um único novo, combinado a partir dos dois: assim, o espaço de resultados que se está analisando cai pelo menos à metade a cada nova “geração”, o que torna impossível fazer um algoritmo exploratório decente. Pensando melhor agora, depois de almoçar, acho que me equivoquei de manhã: se não me engano, o crossover gera dois resultados “filhos” a partir dos dois “pais” e, assim, mantém a população estável.

Não diminuir o número de indivíduos da população é uma necessidade dos algoritmos genéticos, a fim de que eles funcionem a contento. Esta necessidade é óbvia e salta aos olhos quando se imagina um problema concreto. Não dá para modelar virtualmente nada, caso as operações de crossover troquem sempre dois resultados por um, a cada iteração, e este escoamento de espaço exploratório não seja compensado de alguma maneira. Por qual motivo, então, é tão difícil para as pessoas do século XX entenderem que elas não podem ter somente um filho?

Provavelmente, porque elas estão sendo, cada vez mais, condicionadas a seguirem os instintos em detrimento da razão. O que será a banalização do sexo que vemos nos nossos dias, se não a imposição do “prazer pelo prazer” sobre o “prazer ordenado”? A defesa da moral sexual católica é complicada, porque o terreno de combate é-lhe desfavorável. As pessoas, via de regra, não estão interessadas em saber se a posição católica tem argumentos coerentes: querem saber se ela é “prazerosa”, como a pagã se apresenta.

Exemplo do cachorro de Pavlov moderno: quando eu vinha para o trabalho, estava tocando uma música (que depois descobri ser da Banda Djavú) que dizia: “pega, pega, pega, pega, pega e não se apega, beija mas não se apega, pega e não se apega. Se der mole na balada eu vou pegar geral: a moda é beijar e tchau tchau” (!). Ora, se os processos intelectivos aprendidos pela juventude resumem-se ao estímulo (“pega, pega, pega”) e ao prazer (a relação casual na “balada” ao som de “pega, pega, pega”)…  como é possível falar de castidade e matrimônio? O próprio terreno onde se está pisando é distinto: o condicionamento é “dançar e pegar”, ao invés de ouvir e pensar.

As pessoas deveriam aprender Algoritmos Genéticos antes de ouvirem a Banda Djavú (sim, o nome ridículo é exatamente esse). Deveriam aprender a submeter os instintos à razão, quando eles ainda são dóceis, e as paixões ainda não estabeleceram império sobre o resto do homem. Deveriam ser mais interiores e menos voltadas para o exterior. Mas como isso é possível, se até mesmo andando para o trabalho você não consegue evitar ouvir o hipnótico “pega e não se apega”…?