[OFF] Eu, com câncer (XI): A nova fase da vida

Volto a escrever depois de um bocado de tempo, tendo-me ocupado com uma miríade de outras coisas. O paulatino voltar ao ritmo do trabalho, as atividades acadêmicas de um primeiro período universitário após alguns anos longe da Graduação, as sessões de Quimioterapia que ainda fiz, os cinqüenta dias de Páscoa. Foram muitas coisas, nem todas as quais eu tive a oportunidade de registrar aqui ou alhures. Mas penso que já posso voltar.

Do final de abril para cá (quando escrevi pela última vez) passaram-se outras duas sessões de quimioterapia. No início do meu tratamento, naquele já longínquo e tenebroso dezembro, seis ciclos haviam sido o meu prognóstico inicial. Findo eles, no final de abril e em maio último, eu fiz mais dois exames: uma TC de tórax e abdômen + um PET-CT. Os 21 dias entre ciclos esgotaram-se mais depressa do que os exames puderam ser realizados e ficarem disponíveis os seus resultados; no dia 06 de junho eu tomei a sétima QT. A TC (recém-saída) era bem animadora. Quinze dias depois, eu fiz o PET-CT. Os resultados foram ótimos. Sexta-feira última, dia 30 de maio, tomei a oitava dose de quimioterapia. Ontem voltei à minha hematologista. E ela se mostrou extremamente feliz com os resultados.

O PET é um exame muito interessante. Grosso modo, o que ele objetiva é identificar as áreas do seu corpo onde está havendo maior consumo celular de açúcar. Para fazer isso, ele injeta um Flúor radioativo (18F, ou FDG) na sua corrente sanguínea (é um análogo da glicose) que, depois, a máquina capta onde está sendo consumido. A relevância disso? Células tumorais apresentam um elevado consumo de glicose. Sabe-se que certas células (como as cardíacas e as cerebrais, v.g.) apresentam normalmente alto metabolismo glicolítico; no entanto, caso o PET identifique “focos” de consumo do 18F em locais inusitados, isto pode indicar atividade cancerígena. A combinação entre a imagem tomográfica e a obtida do PET (o “-CT” de “PET-CT” significa justamente “Computerised Tomography” – é uma tomografia computadorizada simples, que é feita simultaneamente com o PET e permite a composição das duas imagens) é capaz de localizar a área do corpo onde está acontecendo o consumo de glicose suspeito e, assim, identificar tumores em atividade (ou mesmo – o que é mais interessante ainda – que estejam apenas ensaiando entrar em atividade, i.e., cujas características morfológicas não são ainda suficientes para os caracterizar como tais). Trata-se, em suma, de uma coisa linda, obra-prima do engenho humano.

O resultado do meu PET-CT foi extremamente animador. As únicas coisas “acesas” foram as rigorosamente esperadas: cérebro e coração (graças a Deus), rins e bexiga (por causa do metabolismo do FDG). Nenhum consumo anormal de glicose ao longo do meu sistema linfático, o que me valeu o seguinte alvissareiro laudo médico:

pet-ct

Ontem estive com a minha hematologista querida; fui levar-lhe os exames. Ela mostrou-se extremamente feliz com os resultados. Uma sua colega de trabalho entrou no consultório, para lhe falar sobre não-sei-o-quê; ela mostrou-lhe orgulhosa o laudo do PET, acrescentando: “linfoma folicular”, como se para enfatizar o quanto o resultado era admirável. Nos olhos dela, a alegria e o orgulho do trabalho bem-sucedido; nos meus, a gratidão pela vida nova descortinada.

O que acontece agora? Bom. câncer é uma doença muito chata, e o meu tipo específico de linfoma – o linfoma folicular – parece ser mais chato do que a média. As buscas no Google são unânimes em lhe apontar as seguintes duas características: indolente e incurável. Desisti delas logo no início do tratamento, por uma razão muito simples: que minha doença fosse indolente era uma clara inverdade empírica e, que fosse incurável, eu não queria acreditar (até pela patente inadequação do primeiro adjetivo). A Dra. Rosa, claro, é cautelosa: disse-me que em casos como o meu fala-se mais que o linfoma está controlado do que propriamente curado. Independente de tudo isso, o fato é que a minha resposta ao tratamento é extraordinária, nada compatível com a baixa efetividade da resposta terapêutica que costuma ser apresentada como obstáculo à cura efetiva da doença. Revisões acadêmicas à parte, neste instante em que escrevo essas linhas, o fato é que eu não possuo mais nenhuma neoplasia linfoproliferativa em atividade detectável; e isso é uma grande vitória e uma grande graça. É o melhor e mais animador dos mundos, dado o meu quadro original.

O que acontece agora? Entro em “manutenção”, como se costuma chamar: uma dose de Rituximab a cada 60 dias pelos próximos dois anos, para evitar a recidiva. Sem dúvidas é bastante chato, mas é incomparavelmente melhor do que os ciclos de R-CHOP a cada 21 dias que eu vinha tomando desde o Ano-Novo. Os anticorpos monoclonais não são tão agressivos quanto as outras drogas quimioterápicas; entre outras coisas, minha imunidade não deve baixar, por exemplo. De agora em diante, posso paulatinamente me desvencilhar dos cuidados dos quais me cerquei nos últimos meses e dos problemas menores cuja solução protelei para depois da quimio: largar os antibióticos preventivos, reavaliar a trombose, consultar-me com a endocrinologista para fazer o acompanhamento da minha antiga disfunção tireoidiana – saudades dos tempos em que os meus únicos problemas de saúde eram a levotiroxina matinal! Como é saudável ter as coisas em perspectiva. Nunca vou cansar de dizer o quanto a perda de algo precioso é capaz de nos tornar mais gratos pelo que já tínhamos e a que não dávamos tanto valor assim. Oxalá todos o soubessem.

De agora em diante, posso voltar ao normal. Já venho voltando: o meu quadro clínico geral está ótimo, como atestam todas as pessoas que convivem comigo, em casa e na vizinhança, no trabalho e na faculdade: meu aspecto é muito melhor, assim como minha disposição. Perdi o semblante pálido e cadavérico que adquirira nos últimos tempos: minha aparência é excelente. Os exames corroboram o que se percebe exteriormente. À guisa de exemplo, segue abaixo o laudo do Raio-X que tirei ontem mesmo: é a primeira vez, desde dezembro, que nele não aparecem palavras como “derrame pleural”, “atelectasia” ou “seios costofrênicos obliterados”. É verdadeiramente um troféu.

raio-x

De agora em diante, a vida pode voltar a seguir. Ainda sob a sombra ameaçadora da doença insidiosa, é verdade: mas pode seguir. A nossa vida nessa terra não é um céu perpetuamente sem nuvens, mas sim a possibilidade de caminhar mesmo quando o tempo está ruim. E, definitivamente, o tempo agora está muito melhor do que nos últimos meses. Ainda não são os prados e campinas verdejantes e a estrada diante de mim ainda se apresenta bastante escarpada; mas, como escrevi outro dia no Facebook, daqui do alto onde ora me encontro já posso olhar orgulhoso para o caminho percorrido e dizer sem medo de engano: veni, vidi, vici. É admirável e animador. É gratificante e pleno de esperança. O horizonte alarga-se novamente. O futuro volta a acenar luminoso e promissor.

Agradeço de todo o coração a todas as pessoas que estiveram comigo ao longo de toda essa luta. Aos parentes e amigos e mais próximos, aos colegas de trabalho e aos novos amigos da Faculdade, aos vizinhos e aos amigos mais distantes, aos desconhecidos com os quais tive a oportunidade de travar contato, aos médicos e enfermeiras que cuidaram de mim: o momento que estou vivendo agora é devido à dedicação de todos vocês, e a vitória ora alcançada é fruto da generosidade da cada um. Que o bom Deus lhes recompense em abundância, mais e melhor do que me permitem as minhas misérias e indigências, é o que sinceramente desejo. Muitíssimo obrigado por tudo.

Uma nova fase da vida se inicia. Vou continuar precisando de todos. Até aqui tem me ajudado o Senhor; daqui em diante Ele há de me continuar auxiliando. Até aqui, agradeço-Lhe por tudo; peço-Lhe perdão pelo (tanto!) que desperdicei desse tempo de graças, e suplico-Lhe que me ajude a bem viver dora em diante. Doravante, viver melhor: para outra coisa não valeria a pena ter passado por tudo pelo que passei. Há agora uma vida nova para mim, que cumpre ser bem vivida, que deve ser aproveitada. Aux armes, ao combate, à guerra. À cruz. À glória!