“Toda a criação ficou imersa nas trevas da dor” – Fulton Sheen

Eis a quarta palavra da Consagração da Missa do Calvário. As três primeiras palavras foram dirigidas aos homens. A quarta, porém, foi dirigida a Deus. Estamos agora na última fase do drama da Paixão. Na quarta Palavra, e em todo o Universo, só existem apenas Deus e Jesus. Esta é a hora das trevas.

Subitamente, o silêncio dessa escuridão é quebrado por um grito – tão terrível e tão inesquecível que até aqueles que não compreenderam a língua em que foi expresso hão de recordar-se sempre do tom estranho em que foi proferido: “Eli, Eli, lamma Sabcthany”.

Sim, embora alguns não pudessem compreender essas palavras da língua hebraica, o tom em que foram ditas não mais lhes esqueceu em toda a sua vida.

As trevas que cobriam a terra naquele momento representam apenas o símbolo exterior da noite escura da alma. O sol pode esconder a sua face perante o terrível crime dos deicidas, mas a verdadeira razão da noite que se estendeu sobre a terra foi a sombra da Cruz que se erguia no Calvário.

Toda a criação ficou imersa nas trevas da dor.

Qual foi, todavia, a razão do grito que partiu da escuridão?
“Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonastes?”

Esse foi o grito de espanto para o pecado, em que o homem abandonou Deus, em que a criatura esquece o Criador, em que a flor despreza o sol que lhe deu força e beleza. O pecado é uma separação, um divórcio da união com Deus, e do qual derivam todos os divórcios. Desde que Jesus veio a terra para remir os homens dos seus pecados, é certo que Ele sabia que havia de sentir esse abandono, esse apartamento, esse divórcio.

Ele sentiu-o, antes de mais, no íntimo da Sua alma, tal como a base da montanha, se fosse consciente, sentiria o abandono do sol quando uma nuvem descesse sobre ela, embora os seus cumes se conservassem radiosos, banhados de luz.

Não havia sombra de pecado na alma de Jesus, embora Ele quisesse sentir os efeitos do pecado, e a terrível sensação de isolamento e solidão – a solidão do afastamento de Deus.

Renunciando à divina consolação que poderia pertencer-Lhe, Ele quis mergulhar na tremenda solidão da alma que se extraviou de Deus pelo pecado, para expiar a solidão do ateu que nega a existência de Deus e deposita a sua fé nas coisas terrenas, a dor do coração despedaçado de todos os pecadores que sentem a amargura da ausência do seu Criador.

Jesus foi até ao ponto de remir todos aqueles que não crêem e que, na tristeza e na miséria, exclamam, blasfemando: “Por que é que a morte levou tal pessoa?”, “Por que é que perdi aos meus bens?”; “Por que é que hei de sofrer”.

O “Por que” que Jesus dirigiu a Seu Pai é uma expiação que abrange os “porquês” soltados por aqueles que blasfemam.

Para melhor revelar a sensação de tal abandono, Jesus exteriorizou-o. Porque o homem se apartara de Deus, Ele permitiu que o Seu sangue se separasse do Seu Corpo. O pecado entrara no sangue do homem e, como se os pecados do mundo recaíssem sobre Ele, Jesus deixou derramar o Seu precioso sangue, do cálice do Seu Corpo. Quase que podemos ouvi-Lo dizer:

“Pai, este é o Meu Corpo, este é o Meu Sangue. Eles estão separados um do outro, tal como a humanidade se separou de Ti. Esta é a Consagração da Minha Cruz”.

O que aconteceu então no Calvário acontece agora na Missa. Com uma diferença: Na Cruz, o Salvador estava só e, na Missa, está conosco. Nosso Senhor, agora, está no céu, à mão direita de Seu Pai, intercedendo por nós. Já não pode, portanto, sofrer na Sua natureza humana.

Como pode, pois, a Missa ser a renovação do drama da Cruz? Como é que Cristo pode renovar o drama da Cruz?

Ele não pode, realmente, voltar a padecer na Sua natureza, porque está no céu, gozando a divina bem-aventurança, mas pode ainda sofrer nas nossas naturezas humanas.

Ele não pode, de fato, reviver o Calvário no Seu Corpo físico, mas pode renovar os Seus sofrimentos no Seu Corpo Místico que é a Igreja.

O sacrifício da Cruz pode ser renovado, contanto que nós Lhe façamos a oferta do nosso corpo e do nosso sangue, em toda a plenitude. Jesus pode também oferecer-Se novamente a Seu Pai Celestial, pela redenção do Seu Corpo Místico – a Igreja.

Cristo anda no mundo juntando as almas que desejam ser outras tantos Cristos. Para que nos nossos sacrifícios, as nossas tristezas, os nossos calvários, as nossas crucificações, não fiquem isoladas, desunidas, a Igreja reúne-os, junta-os, e o agrupamento, a massa de todos esses sacrifícios humanos reúne-se ao grande sacrifício de Cristo na Cruz, durante a Missa.

Quando assistimos ao Santo Sacrifício da Missa, não somos precisamente apenas criaturas terrenas, nem indivíduos solitários, mas sim parcelas vivas de uma grande ordem espiritual, na qual o Infinito penetra e envolve o finito, e o Eterno penetra no ser temporário e passageiro, e o Espiritual reveste a materialidade.

Arcebispo Fulton Sheen, “O Calvário e a Missa”.
Extraído de “A Grande Guerra”.

A Paixão do Senhor

Hoje, Sexta-Feira da Paixão, nós não temos a Santa Missa – é o único dia do ano em que não a temos. Reunimo-nos, no entanto, para a Celebração Litúrgica da Paixão. A cerimônia é riquíssima e haveria muito o que falar sobre ela, mas gostaria de iniciar com uma pergunta simples: por que não há Missa?

Santo Tomás de Aquino (Summa, IIIa, q. 83, a. 2, ad. 2) explica que a Eucaristia “é figura e imagem da Paixão do Senhor” e, por isso, no dia em que se recorda esta Paixão – “tal e como Ela aconteceu na realidade” – não se consagra a Eucaristia. É como se o Sacrifício Eucarístico desse lugar ao Sacrifício do Calvário – único e mesmo sacrifício, sem dúvidas, mas distintos no modo de oferecer: aquele incruento e, este, cruento. É como se hoje os fiéis se colocassem diante do Calvário não mediante o véu sacramental, mas o véu da lembrança: toda Missa é uma “celebração da Paixão”, mas na Sexta-Feira Santa nós participamos de uma Celebração da Paixão que não é Missa.

Eu, particularmente, gosto de encarar também a liturgia de hoje sob o aspecto do despojamento; é como se a Igreja morresse com o Seu Esposo, de tal maneira que nem mesmo a Santa Missa é celebrada. Mas a morte não tem a última palavra e, mesmo durante esta “morte litúrgica” que a Igreja apresenta hoje aos fiéis, muita coisa é feita: das leituras às Grandes Orações, da adoração da Cruz à procissão do Senhor Morto. Descemos ao túmulo, sim, mas para ressuscitar junto com Cristo. Vivemos de modo mais enfático a Morte do Salvador, mas à luz da Fé e não do desespero. A Igreja – ao contrário do que fizeram os Apóstolos n’Aquela Sexta-Feira – não “abandona” simplesmente o Crucificado. Como a Virgem Santíssima, fica aos pés da Cruz. Sofre, sim – mas aos pés da Cruz, e não longe d’Ela. Talvez isso até Lhe aumente o sofrimento, mas Ela sabe que é necessário, e é isso que Ela pede aos fiéis: que fiquem junto à Cruz. A Virgem Maria não gozou da companhia do Seu Divino Filho na Sexta-Feira da Paixão: ao invés disso, acompanhou-O ao Gólgata. De modo análogo, hoje, os fiéis não têm a consolação da Santa Missa: ao contrário, são convidados ao Calvário.

É, no entanto, no dia em que se celebra a Paixão do Senhor que a Igreja faz as Grandes Orações: pela Igreja, sem dúvidas, mas também pelos que não fazem parte da Igreja: pelos catecúmenos, pelos hereges e cismáticos, pelos judeus, pelos infiéis, pelos ateus, enfim, por todos. Reza-se, no Calvário, pela conversão de todos. É como se a Igreja Se lembrasse daquelas palavras de Nosso Senhor: “quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim” (Jo 12, 32). E, de joelhos diante do Crucificado, pedisse Àquele que está levantado da terra que – como Ele disse que faria – atraia todos os homens a Si.

Segue a cerimônia com adoração da Santa Cruz, Comunhão, procissão. Cada uma das partes com um simbolismo riquíssimo. O altar permanece desnudado, os fiéis voltam para casa sem a bênção final. O Senhor está morto, e esta é a verdade que deve servir de meditação para os católicos no dia de hoje, é esta a verdade para a qual apontam a Via-Sacra, o jejum, a ausência da Santa Missa, as leituras da Paixão, a adoração da Santa Cruz, a procissão do Senhor Morto, tudo nesta Sexta-Feira Santa. Tudo lembra o Consummatum Est do Gólgota: se este Sacrifício de Amor passa-nos despercebido na Santa Missa quotidiana, na correria do dia-a-dia, a Igreja exige ao menos que hoje ele seja lembrado. Um Deus morreu por nós, foi levantado no Madeiro e, deste Lenho da Cruz, pendeu a salvação do mundo: Venite, Adoremus, é o convite que nos é feito. Atendamos a Ele: que a Salvação nascida da Cruz possa alcançar também a nós, miseráveis pecadores. Senhor, tende piedade de nós.

“A coroa de espinhos” – Meditação de Santo Tomás de Aquino

[Fonte: Permanência]

A COROA DE ESPINHOS

6a. feira depois das Cinzas

«Saí, filhas de Sião, e vêde o rei Salomão com o diadema de que sua mãe o coroou no dia do seu casamento e no dia do júbilo do seu coração» (Ct 3, 11)

É a voz da Igreja que convida as almas dos fiéis a contemplar quão admirável e belo é seu Esposo. Pois as filhas de Sião são iguais às filhas de Jerusalém, almas santas, habitantes do Reino de Deus, que gozam, com os anjos, da paz perpétua e da contemplação da glória do Senhor.

I. — Saí, ou seja, deixai a vida turbulenta deste mundo, para que, com o espírito livre, possais contemplar aquele a quem amais. E vêde o rei Salomão, isto é, o verdadeiro e pacífico Cristo. Com o diadema de que sua mãe o coroou; que é como se dissesse: considerai o Cristo, que, por nós, se fez carne, que tomou a carne da carne de sua Virgem Mãe. O diadema é sua carne, carne que tomou por nós, carne na qual morreu, destruindo o império da morte; carne na qual ressuscitou, deixando-nos a esperança da ressurreição.

Deste diadema, diz o Apóstolo (Heb 2, 9): « Mas aquele Jesus, que por um pouco foi feito inferior aos anjos, nós o vemos, pela paixão da morte, coroado de glória e de honra ». Diz-se que sua mãe o coroou, pois a Virgem Maria deu-lhe a carne de sua carne.

No dia do seu casamento, isto é, no tempo de sua Encarnação, quando a si uniu a Igreja, sem mácula nem ruga; ou quando Deus uniu-se ao homem. No dia do júbilo do seu coração. A alegria e o júbilo de Cristo é a salvação e a redenção do gênero humano; « e, indo para casa, chama os seus amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Congratulai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha » (Lc 15, 6).

II. — Pode-se, também, aplicar tudo isso à Paixão de Cristo, segundo a letra. Com efeito, Salomão, prevendo em espírito a Paixão de Cristo muito antes, adverte as filhas de Sião, isto é, o povo Israelita: Saí, filhas de Sião, e vede o rei Salomão, isto é, o Cristo; com o diadema, ou a coroa de espinhos, que sua mãe, a sinagoga, o coroou no dia do seu casamento, quando a si uniu a Igreja, e no dia do júbilo do seu coração, quando rejubilou-se por ter, por sua Paixão, redimido o mundo do poder do inferno.

Saí, portanto, e deixai as trevas da infidelidade, e vede, isto é, compreendei que aquele que sofre como homem, é Deus verdadeiramente. Ou ainda: saí para fora de sua cidade para o verdes, crucificado, sobre o monte Calvário.

Expositio in Canticum canticorum, III

O Natal e a Paixão

Iniciamos o advento, preparando-nos para comemorar o Natal de Nosso Senhor. A cor litúrgica desta época do ano – o roxo – lembra-nos um outro tempo litúrgico que iremos vivenciar mais à frente: a Quaresma. À primeira vista, contudo, parece não haver similaridade entre o Advento e a Quaresma: no primeiro, estamos à espera do Nascimento do Salvador e, no segundo, da Sua Paixão, Morte e Ressurreição. O que o Nascimento de Cristo tem a ver com a Sua Morte e Ressurreição?

A mim, afigura-se como se a Igreja quisesse envolver-nos todos no Mistério da Encarnação em Sua totalidade, remetendo, no Natal do Salvador, à Sua Dolorosa Paixão; a penitência que fazemos ao longo destas quatro semanas incompletas deixa entrever isso, unindo os dois tempos litúrgicos que estão logicamente unidos (afinal, Jesus não morreria na Cruz se não tivesse um dia nascido, e Ele nasceu para nos resgatar com o Seu preciosíssimo Sangue – o que só se consumou no alto do Calvário). Ademais – não nos esqueçamos -, foi diante de Jesus Menino que Simeão disse à Virgem Santíssima que uma espada iria transpassar-Lhe a alma (cf. Lc 2, 35), de novo aludindo, no meio dos festejos natalinos, às dores da Semana Santa.

É-nos bastante comum pensarmos na Cruz como a consumação do Sacrifício de Cristo, que perdoou os nossos pecados – e é correto pensarmos assim. No entanto, muitas vezes nos esquecemos que este Sacrifício começou trinta e três anos atrás: começou com um recém-nascido envolto em faixas e colocado em uma manjedoura. Quando o Verbo Se fez carne. Quando a Divindade assumiu a nossa humanidade. É sem dúvidas humilhante e indigno da Majestade Divina que um Deus Eterno assuma um corpo material; mas, ao contrário, que grande honra é para a Humanidade poder contar, entre os seus membros, com um Deus! Sim, é já no Nascimento do Salvador que a Humanidade começa a ser elevada; se ela ainda não se poderia considerar redimida, estava já sem dúvidas muitíssimo bem representada.

O Divino Sangue que pagou pelos nossos pecados foi aquele vertido na Cruz do Calvário; mas o Salvador por outras vezes verteu o Seu Sangue Precioso, o que já seria suficiente para satisfazer a Justiça Divina ofendida pelo pecado. Em particular, no Horto das Oliveiras, quando Jesus suou sangue; comentando sobre esta passagem, diz-nos São Padre Pio:

É o sangue do seu Filho Bem-Amado que caiu sobre a Terra para a purificar. É o Sangue do seu Filho que ascende ao Seu trono para reconciliar a Justiça ultrajada. A alegria é na verdade muito mais veemente do que a dor.

Jesus chegou então ao fim do caminho doloroso?

Não. Ele não quer limitar a torrente do seu amor! É preciso que o homem saiba quanto ama o Homem-Deus. É preciso que o homem saiba até que abismos de abjeção pode levar amor tão completo. Embora a Justiça do Pai esteja satisfeita com o suor do Sangue preciosíssimo, o homem carece de provas palpáveis deste amor.

O homem precisa de provas do Amor de Deus! Mil e uma maneiras poderia encontrar Nosso Senhor para reconciliar o homem com Deus; não só o sangue do Getsêmani, como também, muitos anos antes, o sangue que o Menino Jesus derramou na Sua circuncisão. Mas Ele quis amar até o fim, até a Cruz.

Olhemos para o Nascimento do Deus Menino, com os olhos fitos na Cruz do Calvário: olhemos para o Sacrifício em favor de nós, iniciado quando o Verbo resolveu fazer-Se carne. Olhemos para a Paixão iniciada três décadas antes de se consumar no alto do Gólgota. Olhemos para o amor deste Deus que é capaz de fazer tantas coisas por amor a nós. E, verdadeiramente contritos, esperemos com alegria o nascimento do Deus Menino, vivendo bem este tempo de preparação, a fim de que possamos um dia encontrar Aquele que nasceu, viveu e morreu por amor de nós. Que a Virgem Maria, Mãe do Verbo Encarnado, conceda-nos a graça de um santo advento.