A Igreja universal e as Igrejas particulares

Creio na Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica – assim reza o Símbolo Niceno-Constantinopolitano que professamos nas nossas missas. Uma dúvida pode ocorrer a quem se demore a meditar um pouco sobre o assunto: ao que parece, «Igreja» pode significar duas realidades (interdependentes, sem dúvidas, mas a rigor distintas) com as quais os católicos travam contato em sua vida espiritual. Uma, a Igreja particular, concreta, à qual territorialmente pertencem; outra, a Igreja universal, “Católica” propriamente, da qual fazem igualmente parte todos os católicos de todas as partes do mundo. A uma Igreja particular pode pertencer um católico e, outro, não; à Igreja Universal, contudo, pertencem todos os membros (católicos, evidentemente) de toda e qualquer Igreja particular do orbe.

Consideradas as coisas dessa maneira, poderia ser tentador pensar que a Igreja universal fosse formada pela reunião de todas as Igrejas particulares – as quais, em seu conjunto, constituiriam a Única Igreja de Cristo. A relação entre Igreja Universal e Igreja Particular seria, assim, uma relação todo-parte. A ordem de constituição da Igreja seria “de baixo para cima”, do mais concreto ao mais abstrato, do particular ao genérico: das Igrejas particulares para a Igreja universal.

Este assunto foi abordado recentemente no blog do pe. Hunwicke, e a resposta do conhecido sacerdote é taxativa: na verdade, quem vem primeiro é a Igreja Universal. Ela vem primeiro temporalmente, porque já nasce Una em Pentecostes; vem primeiro teologicamente, porque é Ela que é o Corpo Místico de Cristo; e, por fim, vem primeiro ontologicamente, porque as Igrejas particulares provêm d’Ela e não o contrário. Não é exato, portanto, afirmar que a Igreja universal seja a soma das Igrejas particulares: são estas, na verdade, que são realizações d’Aquela.

Não se trata de mero preciosismo: o tema tem relevância, uma vez que (ainda) ganha espaço uma eclesiologia que pretende “construir” a universalidade da Igreja a partir das especificidades das Igrejas particulares. Assim, por exemplo, poderia haver espaço para certo desacordo – mesmo em temas morais ou doutrinários… – entre o Bispo de uma Igreja particular e o Papa, Pastor da Igreja universal. É a antiga tese de Kasper esposada pelo pe. Libânio (p. 127): a “precedência ontológica e temporal” da Igreja universal sobre a particular seria uma “eclesiologia (…) anterior ao Vaticano II”. A perspectiva na qual “a Igreja local está no centro de modo claro e decisivo”, por sua vez, seria a “virada eclesiológica do Concílio Vaticano II”.

Sabe-se bem que essas tentativas de opôr o Vaticano II ao (dito) Magistério pré-conciliar carecem de fundamento: são, sempre, retórica vaniloquente de falsos mestres, cuja propriedade para ensinar a Doutrina Católica é sempre inversamente proporcional aos arroubos com os quais alardeiam as maravilhosas novidades teológicas das últimas décadas. Neste caso, contudo, é ainda mais fácil demonstrar a falsidade da tese: há um documento da Congregação para a Doutrina da Fé, assinado pelo então Card. Ratzinger e aprovado por São João Paulo II, que a refuta específica e pormenorizadamente.

Trata-se da Communionis notio, que vale uma leitura na íntegra, e da qual cito (destaques no original):

  • «Por isso, a Igreja universal não pode ser concebida como a soma das Igrejas particulares nem como uma federação de Igrejas particulares. Ela não é o resultado da sua comunhão, mas, no seu essencial mistério, é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular» (n. 9).
  • «Na verdade, ontologicamente, a Igreja-mistério, a Igreja una e única segundo os Padres precede a criação e dá à luz as Igrejas particulares como filhas, nelas se exprime, é mãe e não produto das Igrejas particulares» (id. ibid.).
  • «O Bispo é princípio e fundamento visível da unidade na Igreja particular confiada ao seu ministério pastoral, mas para que cada Igreja particular seja plenamente Igreja, isto é, presença particular da Igreja universal com todos os seus elementos essenciais, constituída portanto à imagem da Igreja universal, nela deve estar presente, como elemento próprio, a suprema autoridade da Igreja: o Colégio episcopal “juntamente com a sua Cabeça, o Romano Pontífice, e nunca sem ele”» (n. 13).

Não há portanto espaço para tergiversar: até os termos são os mesmos. Ao contrário do que diz o pe. Libânio (e outros), portanto, a Igreja universal ainda «é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular», e isso é a única eclesiologia “vigente” – é a boa eclesiologia “moderna” da Igreja “pós-conciliar”, redigida pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (depois Papa) e chancelada por São João Paulo II. É assim que a Igreja  entende-Se a Si mesma. É esta a verdadeira eclesiologia católica. Qualquer coisa que se oponha a isso deve ser prontamente rechaçada como doutrina espúria e já condenada pelo Magistério – inclusive recente! – da única e verdadeira Igreja de Nosso Senhor: a única que pode, com propriedade, dizer ao mundo como Se compreende.

Bento XVI desautoriza o professor Ratzinger a respeito da comunhão dos divorciados

Há alguns meses, o Card. Kasper começou a fazer alvoroço em público com as suas teses a respeito da admissibilidade dos divorciados recasados à comunhão eucarística. Conhecemos a história: em um seu artigo publicado no início do ano, o prelado apresentava as suas idéias e coligia os fundamentos que julgava possível apresentar na defesa delas.

O passo do prelado, contudo, foi maior do que as suas pernas. Ele poderia ter somente defendido a sua posição particular nesta seara; para angariar maior força de persuasão, contudo, julgou preferível trazer para junto de si a opinião abalizada de um dos maiores teólogos da atualidade. Resolveu defender «la práctica de la tolerancia pastoral, de la clemencia y de la indulgencia» baseando-se em ninguém mais, ninguém menos do que Joseph Ratzinger.

À época, Kasper desenterrou um artigo publicado em 1972 pelo então prof. Ratzinger, e o apresentou aos seus leitores da seguinte maneira:

A Igreja dos primórdios dá-nos uma indicação que pode servir como caminho para escapar a este dilema, ao qual o professor Joseph Ratzinger já fez menção em 1972. […] Nas Igrejas locais havia um direito consuetudinário, de acordo com o qual os cristãos que viviam um segundo vínculo [matrimonial], mesmo que o primeiro cônjuge ainda estivesse vivo, depois de um tempo de penitência tinham à sua disposição […] não um segundo matrimônio, mas – através da participação da comunhão [eucarística] – uma tábua de salvação. […]

[…]

J. Ratzinger sugeriu [em 1972] retomar de maneira nova essa posição de [São] Basílio. Pareceria uma solução apropriada, solução esta que está na base das minhas reflexões.

As conclusões agora apresentadas por Kasper apoiavam-se, de fato, em um nome vultoso. A solução que ele ressuscitava agora tinha o inegável mérito de ter sido já defendida, na década de 70, pelo acadêmico Joseph Ratzinger. O arranjo fora muito bem preparado. Kasper só não contava com um pequeno detalhe: Bento XVI ainda estava vivo, lúcido e não gostou nem um pouco da maneira como o seu artigo (de há mais de quatro décadas) fora citado.

A honestidade intelectual é uma virtude delicada; ela exige que não utilizemos as palavras de terceiros de modo a apresentar um retrato do seu pensamento com o qual eles próprios não concordariam. E, após ter já publicado – enquanto cardeal e enquanto Papa – diversos trabalhos nos quais concluía a respeito da inadmissibilidade da comunhão eucarística aos recasados, Bento XVI não se reconheceu nos textos que escrevera no início dos anos 70, agora requentados para defender uma bandeira com a qual, em absoluto, o antigo Papa não concorda.

E a resposta veio nos últimos dias [p.s.: ver abaixo]: o Bispo Emérito de Roma republicou o seu artigo de 1972, com uma retractatio em sua parte final redigida agora em 2014, onde revisa a sua posição anterior. A atitude me surpreendeu por diversos motivos.

Primeiro porque tal não seria a rigor necessário, uma vez que a posição de Bento XVI a respeito do tema era já suficientemente clara a partir dos seus textos posteriores (entre os quais merece menção, para ficar somente em um exemplo, esta carta assinada de próprio punho pelo Card. Ratzinger em 1994). Mas parece que o acadêmico sentiu-se particularmente ofendido com a mera possibilidade de ter o seu nome associado às teses de Kasper e, portanto, julgou oportuno fazer a retratação.

Segundo porque penso que o fato é inédito. Não me recordo de nenhuma outra ocasião em que Bento XVI tenha rechaçado explicitamente as posições que assumira nos anos anteriores ao cardinalato e à presidência da Congregação para a Doutrina da Fé; pelo contrário, já o ouvi até dizer que foi a revista Concilium (de cuja fundação o jovem Ratzinger participou e que se consagrou mais tarde como um famoso veículo de doutrinas pouco católicas) quem mudou de orientação, e não ele próprio. O gesto abre um importante precedente (que era óbvio, mas a respeito do qual não se pode mais, agora, alegar dúvidas): não é possível transpôr acriticamente os antigos escritos do teólogo Ratzinger para os dias atuais, passando por cima dos debates teológicos que se travaram ao longo das últimas décadas e em cujo cerne o autor – primeiro como prefeito do Santo Ofício e, depois, como Papa – ocupou muitas vezes um lugar de indiscutível proeminência.

Terceiro, por fim, porque a decisão de Bento XVI coloca o seu conterrâneo em uma verdadeira saia justa. Rompendo o silêncio do seu pontificado emérito, ele desautoriza simultaneamente as teses de Kasper e os expedientes do qual este lançou mão para as fazer valer: tomando importante partido nesta importantíssima discussão contemporânea, não faltou quem dissesse que Bento XVI, agora, provoca uma reviravolta e passa a pautar o Sínodo da Família. Não me parece que tenha sido a atitude mais deferente do mundo; contudo, parece que estamos em uma daquelas situações em que se exige que a defesa categórica da Fé seja colocada acima da polidez política. Que seja bem-vindo o auxílio do Pontífice do passado.

[P.S.: Na verdade, a retratação não é assim tão recente e, portanto, não pode ser associada diretamente aos acontecimentos do Sínodo. Em uma entrevista publicada no último domingo (07/12) por um jornal alemão, «[o] jornalista lhe perguntou [a Bento XVI] se desta maneira [com a revisão do artigo] quis adotar uma postura no Sínodo dos Bispos sobre a família, recentemente celebrado no Vaticano, e o Papa emérito qualificou esta afirmação como sendo um absurdo total, já que não interveio nem quis intervir nas questões tratadas no sínodo extraordinário sobre a família e a revisão do volume foi feita antes do Sínodo». Deve ser lida assim, penso eu, como uma resposta aos ensaios de Kasper a respeito da comunhão dos divorciados recasados (feitos já no começo do ano), mas não diretamente ao dissenso cardinalício que se instaurou imediatamente antes e durante o Sínodo recém-encerrado.]

E isso sem falar da humildade necessária para se fazer assim, já no fim da vida, uma retratação pública de repercussão tão ampla: Bento XVI é realmente uma personalidade assombrosa, cuja envergadura intelectual não pode ser posta em dúvida. Nem tampouco a sua dedicação à Igreja…! Nem tampouco o amor à Verdade que o levou a grafar aquele Cooperatores Veritatis em seu brasão episcopal. Sim, há homens para os quais a Verdade está acima de sua imagem e prestígio pessoais. Que as novas gerações o aprendam deste ancião admirável.

O “problema” dos casais recasados I: comunhão espiritual e comunhão sacramental

Não existe nenhum problema com os ditos “casais em segunda união” serem privados da comunhão eucarística. Ou, olhando a questão por outro ângulo, há sim: o problema é a naturalidade com a qual, hoje em dia, encaram-se o adultério e a bigamia. Isso, sim, salta aos olhos e choca, isso é escandaloso, isso deveria provocar-nos repulsa e inspirar-nos lágrimas de reparação pela facilidade com que Nosso Senhor é ofendido. Que aos pecadores públicos sejam negados os sacramentos de vivos é a conseqüência mais óbvia da Doutrina Católica. Que a julguem “dura demais” e procurem por todos os meios desfigurá-la, este é o verdadeiro problema que merece toda a nossa atenção.

Em recente pronunciamento preparatório para o Sínodo dos Bispos que tratará sobre o tema da Família, diante do Papa e dos cardeais reunidos em consistório, o cardeal Kasper fez um discurso que ganhou grande repercussão na mídia. Li primeiro sobre ele aqui e trechos mais amplos da fala do cardeal podem ser encontrados aqui. Algumas conclusões a que parece conduzir o raciocínio do Kasper são tão escandalosas que merecem alguns contrapontos, os quais espero fazer firmes e claros.

Antes de qualquer coisa, é digno de nota que o cardeal, que começou a sua alocução afirmando não ter respostas e sim somente perguntas, tenha vindo com “soluções” tão concretas (e equivocadas, como veremos) para o “problema” dos casais recasados. Há diferenças entre um questionamento verdadeiro e uma pergunta retórica, que podem até confundir as massas mas não escapam aos ouvidos atentos. Por exemplo, o seguinte excerto não contém um questionamento sério, e sim uma pergunta retórica cuja resposta já se encontra implícita na própria formulação do período:

Efectivamente, quien recibe la comunión espiritual es una sola cosa con Jesucristo. […] ¿Por qué, entonces, no puede recibir también la comunión sacramental?

A resposta implícita – à qual o sofista experiente fatalmente conduz o ouvinte incauto – é óbvia: não há nenhuma razão para que uma pessoa que já é «uma só coisa com Jesus Cristo» não possa receber a Comunhão Sacramental. Existe, portanto, uma absurda contradição na praxis da Igreja que precisa ser corrigida o quanto antes. Afinal de contas, se alguém pode tornar-se um só com Cristo, que autoridade terrena poderia negar-lhe a Sagrada Eucaristia?

O sofisma grosseiro por detrás desse raciocínio é ocultar a enorme diferença existente entre a presença real e substancial de Nosso Senhor nas espécies eucarísticas e a Sua presença espiritual na qual o fiel se coloca por meio da oração. É eliminar por completo a diferença existente entre as orações individuais dos fiéis e os Sacramentos – sinais sensíveis e eficazes da Graça – instituídos por Cristo e ministrados por Sua Igreja. É colocar em pé de igualdade a subjetividade da alma que reza e a objetividade da Graça conferida ex opere operato pelos Sacramentos da Nova Aliança. É, em suma, subverter por completo toda a teologia sacramental católica.

É verdade que Deus também confere a Sua Graça por meios desconhecidos aos homens, e que Ele não está de nenhuma maneira preso aos Sete Sacramentos. Mas é igualmente verdade que o modo como se dá a Graça dos Sacramentos é distinto e especialíssimo. Ninguém pode ordinariamente estar certo da pureza de sua contrição perfeita; mas qualquer penitente pode ter certeza de que, quando o padre pronuncia o Ego te absolvo, o perdão de Deus é efetivamente concedido. Um protestante em ignorância invencível pode perfeitamente estar em estado de Graça; mas como esse juízo não pode ser feito senão por Deus, não é lícito participar-lhe a Santíssima Eucaristia. O Batismo de Desejo pode tornar um catecúmeno apto a entrar no Reino dos Céus, mas não lhe permite receber a unção do Santo Crisma.

Os exemplos se poderiam multiplicar à vontade, mas creio que já tenha ficado claro o que quero dizer: os Sacramentos, por sua própria natureza de sinais sensíveis, exigem certas condições igualmente sensíveis para que possam ser ministrados. As “disposições interiores” sozinhas não bastam: ao pagão é preciso que esteja batizado para receber a absolvição sacramental, por mais pungente e contrito que seja o seu arrependimento, e ao pecador (principalmente ao público!) é necessário que esteja confessado para que possa receber a Sagrada Comunhão, por maior que possa ser a sua união espiritual com Nosso Senhor.

Deus é sempre livre para conferir a Sua Graça. Já os homens, dispensadores d’Ele, não têm a mesma liberdade divina para ministrar os Sacramentos de um modo distinto daquele que o próprio Deus estabeleceu. A (chamemo-la assim) Graça sensível só pode ser ministrada sob circunstâncias objetivamente definidas; em particular, a Comunhão Eucarística só pode ser conferida aos católicos que se encontram em estado de Graça, não o subjetivo, mas o objetivo: o estado em que se encontra o fiel que, havendo pecado mortalmente após o Batismo, tenha confessado arrependido cada uma de suas faltas graves e recebido de um sacerdote a absolvição sacramental. Esta organicidade vital dos Sacramentos não pode ser rompida, e neste itinerário sacramental não é lícito tomar atalhos.

Não é portanto verdade que se negue a Graça de Deus a – p.ex. – um pecador impenitente que se aproxime da Mesa Eucarística. Na verdade, é ele próprio quem A nega a si mesmo, primeiro pelo seu pecado, depois pela recusa a valer-se dos meios instituídos por Cristo para a obtenção do perdão. O caminho para se aproximar dos Sacramentos é público e bem conhecido por todos. Quem se recusa a percorrê-lo na íntegra é o único responsável se não obtém aquilo a que esse caminho conduz.

O que fazer com as ambigüidades do Vaticano II?

Alguém me pergunta (na verdade, simplesmente anuncia em tom triunfal):

Essa vai para os conservadores populares:

Walter Kasper admite aquilo que todos os católicos verdadeiros já sabiam:

O documentos do Vaticano II foram de propósitos escritos de forma ambígua!

Refere-se a este texto: Cardeal Kasper admite ambigüidade intencional nos textos do Concílio Vaticano II. A declaração do purpurado é a seguinte (grifos do Fratres):

Em muitos lugares, [os Padres Conciliares] tiveram que encontrar fórmulas de concessões, em que, frequentemente, as posições da maioria estão localizadas imediatamente próximas àquelas da minoria, projetadas para limitá-las. Assim, os textos conciliares em si têm um enorme potencial de conflito, sendo uma porta aberta à recepção seletiva em uma ou outra direção.” (Cardeal Walter Kasper, L’Osservatore Romano, 12 de abril de 2013)

O que dizer?

De minha parte, eu só posso constatar que esta “confissão” veio com cinqüenta anos de atraso e apenas repetiu o que todo mundo já sabia. É claro que os textos do Concílio Vaticano II “têm um enorme potencial de conflito” e é claro que isso foi proposital; achavam o quê, que foi “por acaso”? Parafraseando Dawkins, pensavam que fora obra de The Blind Papermaker?

Dizer que há “fórmulas de concessões” nos textos do Vaticano II equivale a dizer que há sol ao meio dia, é o mesmo que descobrir a pólvora. É sério que precisávamos das declarações do Kasper para perceber esta obviedade? Se não houvesse possibilidade de interpretar equivocadamente os textos do Concílio, por qual absurda razão, por exemplo, a Lumen Gentium precisaria de uma “Nota explicativa prévia”, conhecida de qualquer pessoa que já tenha alguma vez na vida folheado o documento?

Aquela história do “a gente fala de maneira diplomática aqui e depois do Concílio tira as conclusões que nos forem convenientes” não é anedota, é fato documentado. Um papel com essas confissões bem pouco honestas caiu nas mãos de Paulo VI durante o Concílio, que então percebeu estar sendo enganado e chorou amargamente. Mais uma vez, isso não é conhecimento esotérico e nem segredo de estado conhecido apenas dos “católicos verdadeiros” (sic), isso é um dado jornalístico: o The Rhine Flows into the Tiber é um livro de 1967!

Ninguém jamais negou ou desconheceu aquilo que o Kasper disse ao Osservatore: o que negamos, e visceralmente, é que isso justifique a sedição contra a Igreja de Cristo. É claro que os textos do Vaticano II se prestam a diversas interpretações, e é exatamente por isso que ninguém – nem os progressistas e nem os rad-trads – pode prescindir do Magistério vivo da Igreja para lhes precisar o sentido correto!

A assistência do Espírito Santo não garante o esplendor da mais perfeita e conveniente expressão latina lapidar. A única coisa que Ele garante é que a Igreja não vai ensinar heresias – o que, aplicado ao Vaticano II, significa simplesmente que todo e qualquer texto do Concílio é passível de interpretação ortodoxa. Somente isso. Não significa que não há interpretações heréticas, não significa que a ortodoxia está sempre expressa da melhor maneira possível e não significa nem mesmo que, dado um excerto, a interpretação ortodoxa é a mais imediata. A única garantia que temos é a de que ela existe. C’est fini.

Ontem o Papa Francisco falou sobre o Vaticano II. Muitos acharam que ele fez uma crítica aos rad-trads, interpretação que é bastante aceitável. Mas eu penso que a verdadeira crítica é mais profunda, é ao modernismo estéril que, há mais de um século, vem envenenando a Igreja de Deus. As palavras do Santo Padre foram as seguintes:

Mas depois de 50 anos, fizemos tudo o que o Espírito Santo nos disse no Concílio? Não. Comemoramos este aniversário, erguemos um monumento, mas desde que não incomode. Nós não queremos mudar, e o pior: alguns querem voltar atrás. Isto é ser teimoso, significa querer domesticar o Espírito Santo; ser tolo, de coração lento”.

Ora, qualquer pessoa há de convir que os últimos cinqüenta anos foram o palco das maiores aberrações doutrinárias, litúrgicas, morais e pastorais que já envergonharam a Igreja de Cristo ao longo dos seus dois mil anos de história! Se o Papa, tendo isso diante dos olhos, diz que nós não fizemos “tudo o que o Espírito Santo nos disse no Concílio”, então só pode ser porque o Concílio não disse nenhuma dessas barbaridades que muitos passaram as últimas décadas realizando. Fosse diferente, o Papa teria afirmado com alegria que na maior parte dos lugares se fez, sim, a vontade do Espírito Santo de Deus. Mas ele não o fez. A declaração dele é sombria, mais até do que qualquer outra de Ratzinger sobre o assunto da qual eu me recorde agora; este pelo menos costumava destacar os bons frutos que haviam sido postos em prática, quando o Papa Francisco nem isso faz.

E, na verdade, “voltar atrás” sempre foi exatamente a maior característica dos taumaturgos que, desde a década de 60, assombram os pobres católicos com o famigerado “espírito do Concílio”. Ora, a “chance” histórica do modernismo foi justamente entre o final do século XIX e o início do XX: a janela de oportunidade dessa heresia era quando ela ainda não fora condenada pela Igreja. São Pio X, graças a Deus, fulminou-a na Pascendi (sabiam que esta encíclica está traduzida para o português no site do Vaticano? Nunca pararam para pensar que deve haver alguma razão para isso?) – e, de lá para cá, os modernistas são todos velhos que perderam o bonde da história e estão empenhados na utopia de fazer o relógio voltar para trás, transportando-os de volta ao tempo em que era pelo menos canonicamente lícito pregar as falsas doutrinas que a Igreja condenou sob Giuseppe Sarto. Em matéria eclesiástica, voltar atrás é desprezar as definições da Igreja, é insistir em discutir questões que já foram encerradas, é aferrar-se ao erro e se recusar a ouvir o Espírito Santo Paráclito, o Spiritus Veritatis que convence o homem do que é justo e verdadeiro.

Concluamos. Quem acompanha as palavras do Papa Francisco percebe que ele não é muito de falar sobre o Vaticano II. A curiosidade, creio, não permite maiores extrapolações. A meu ver, isso significa simplesmente que o Papa não o idolatra e nem o despreza, não sente necessidade nem de tudo justificar à luz dele e nem de evitá-lo como a uma moléstia contagiosa. O Santo Padre, afinal, sabe que a mensagem da Igreja é a mensagem do Evangelho, e é a esta verdade tão antiga e tão nova que – aí sim! – devem se referir todos os textos magisteriais, de S. Pio X ou de Paulo VI, do Vaticano II ou do Concílio de Florença. Independente de em que ânimo tenham sido escritos. Independente das traições que porventura tenha sofrido a Esposa de Cristo, uma certeza nós temos conosco para sempre: contra Ela não prevalecerão as portas do Inferno. E a força dessas palavras é maior do que todo o poder de Satanás; conhecendo-as, nós não temos o direito de tratar com suspeita a Igreja Santa de Deus.

Curtas

“A ousadia da santidade”, pelo Carlos Alberto Di Franco e publicada… no Estadão! “A tese, por exemplo, de que é necessário ouvir os dois lados de uma mesma questão é irrepreensível; não há como discuti-la sem destruir os próprios fundamentos do jornalismo. Só que passou a ser usada para evitar a busca da verdade. A tendência a reduzir o jornalismo a um trabalho de simples transmissão de diversas versões oculta a falácia de que a captação da verdade dos fatos é uma quimera. E não é. O bom jornalismo é a busca apaixonada da verdade. O jornalismo de qualidade, verdadeiro e livre, está profundamente comprometido com a dignidade do ser humano e com uma perspectiva de serviço à sociedade”.

Comunicado da Santa Sé sobre a audiência entre o Papa Bento XVI e o Cardel Schönborn. “A palavra ‘chiacchiericcio’ (fofoca) foi erroneamente interpretada como desrespeitosa às vítimas de abuso sexual, para com as quais o Cardeal Angelo Sodano nutre os mesmos sentimentos de compaixão e de condenação do mal, como expressado em várias ocasiões pelo Santo Padre. A palavra pronunciada durante a saudação de Páscoa ao Papa Bento XVI foi tomada literalmente da homilia pontifical do Domingo de Ramos e se referia à ‘coragem que não se deixa ser intimidada por fofocas de opiniões predominantes'”.

Crônicas Vaticanas: o Papa e a Itália. “Bento XVI e os seus estreitos colaboradores intervêm muito rapidamente em questões italianas, dando mais atenção em relação a outros países do mundo. Isso porque a Itália constitui uma espécie de laboratório para os muitos desafios que a Igreja deve enfrentar: é um país historicamente católico, mas a prática da fé e o seu impacto social estão em decadência. Portanto, a campanha de nova evangelização do Papa só pode começar literalmente do jardim de casa”.

El cardenal Kasper anuncia su partida y traza un balance de su gestión. Em espanhol, mas dá para compreender. “El balance examinó luego las relaciones con las Iglesias y las comunidades eclesiales de la Reforma: ‘Errores o, más bien, imprudencias en el modo de formular la verdad – admitió el cardenal Kasper -, han sido cometidos entre nosotros e incluso de parte nuestra’. Pero en lo que concierne a este diálogo, el cardenal quiso remitirse al texto recientemente publicado por el dicasterio, ‘Harvesting the fruits’, en el que se hace un balance de los resultados y de los acuerdos alcanzados”.

Poesia sobre a morte de Saramago. Destaco: “Proponho assim, por descargo / – Como quem dá a camisa / – Rezarmos por Saramago / Que bem precisa coitado…! / Mãe dos Céus, Oh se precisa”.

– Sobre a Bélgica: “Papa se solidariza com bispos belgas” e “Indignação da Santa Sé pela brutal inspeção ao episcopado belga”. Deste último: “‘Manifestaram que haveria uma inspeção do arcebispado devido a denúncias de abuso sexual no território da arquidiocese’, explica um comunicado assinado pelo porta-voz da Conferência Episcopal da Bélgica, acrescentando que ‘não se deu nenhuma outra explicação, mas todos os documentos e telefones celulares foram confiscados e se manifestou que ninguém poderia deixar o edifício. Este estado, de fato, durou até quase as 19h30′”.

Curtas

– Os ateus não gostaram do panfleto da Regional Sul 1 da CNBB contra o PNDH-3. No “Bule Voador”: “Todos conhecemos a incrível capacidade da CNBB e da Igreja Católica para se pronunciar em assuntos que deveria deixar para especialistas. (…) A vítima agora, é inclusive uma pessoa declaradamente cristã, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. Alguém avise aos “humanistas” que se dizer cristão é bem diferente de sê-lo.

La Iglesia católica, en el punto de mira del lobby homosexual en todo el mundo. E não poderia ser diferente. A aplicação da velha história de “como cozinhar um sapo” (que, em espanhol, ficou “una rana”): “No se trataba ya de pelear, sino de conseguir con mano izquierda y buena presencia que el americano medio llegara a pensar con un bombardeo mediático incesante que «la homosexualidad solo es otra cosa y se encogiera de hombros. De esa manera – aseguraba Kirk [neuropsiquiatra]-, la batalla por tus derechos y tu reconocimiento estaría virtualmente ganada y solo sería cuestión de esperar»”.

Deus e a terra, do Schwartsman. Só queria apontar que (a) Epicuro é um falso paradoxo, como o próprio articulista comenta; (b) o mal não é uma “aparência”, e sim uma ausência; e (c) é interessantíssimo que o articulista reconheça que o acaso, “a ausência de propósito”, são insuportáveis ao ser humano. Pena que tenha perdido uma ótima chance de se aprofundar nas causas dessa insuportabilidade.

O bebê de Frei Betto. O sujeito atingiu novos patamares de blasfêmia ao imaginar os filhos das núpcias de Santa Teresa de Ávila com Che Guevara (!!!!). Faço coro ao Reinaldo: “É chocante saber que este senhor é considerado um ‘pensador’ em certo círculos do Brasil”.

Dom Williamson diz que os diálogos entre a Santa Sé e a FSSPX são uma conversa de surdos. “Ou a Fraternidade trai a si própria, ou Roma se converte, ou então será um diálogo de surdos”. Infeliz posicionamento! Que a Virgem Santíssima, Sedes Sapientiae, interceda por estas disputationes theologicae.

Cardeal Hummes próximo de ser substituído. Não só ele, como também o cardeal Kasper (iminente) e o cardeal Re (por volta da Páscoa). Que o Espírito Santo ilumine o Papa Bento XVI, e o salve das mãos de seus inimigos!

Apanhado de notícias

Relíquias de Dom Bosco em Curitiba, desde ontem: para quem estiver na cidade, hoje “a urna estará na Paróquia São Cristóvão (Rua Santa Catarina, 1.750, Vila Guaíra), também podendo ser visitada durante todo o dia, com missas às 10, 15 e 20 horas”.

– Aproveitando, sobre relíquias, ver Dom Estêvão em uma Pergunte & Responderemos de 1960, pp. 194-202. “Com estas palavras [Mc 14, 6-9; elogio “a respeito de Maria de Betânia, que ungira o corpo do Mestre pouco antes do desenlace final”] Jesus aprovava solenemente a veneração póstuma do seu corpo sagrado. Os dizeres do Divino Mestre implicavam outrossim um convite a que se tratassem de modo semelhante os despojos de todos os justos que Ele no decorrer dos tempos enxertaria em seu Corpo Místico”.

– Reportagem que não entendi: Bispos anglicanos recusam proposta do Papa. “Cerca de 30 bispos e arcebispos anglicanos, opostos à linha liberal da Igreja no que se refere à homossexualidade, recusaram esta quarta-feira a proposta do Vaticano de se converterem ao catolicismo” – grifos meus. Hein?! Que linha liberal da Igreja? Será que estes anglicanos apedrejam homossexuais?

Audiência Geral do Sumo Pontífice: arte e verdade, a Beleza como um caminho para encontrar Deus. O Papa falou sobre as catedrais medievais. Leiam na íntegra, pois não consigo citar tudo que gostaria! “O impulso ao alto [das catedrais góticas] queria convidar à oração e era em si mesmo uma oração. A catedral gótica queria traduzir, assim, em suas linhas arquitetônicas, o desejo das almas por Deus. (…) Das vidreiras pintadas se derramava uma cascata de luz sobre os fiéis para narrar-lhes a história da salvação e envolvê-los nesta história”.

Comissão da CNBB prepara Seminário Nacional de Liturgia. “A equipe lembrou também o início do movimento litúrgico impulsionado por Lambert Beaudin ao afirmar, em 1909, a necessidade de ‘democratizar a liturgia'” – valei-nos Deus! A tradução da Editio Typica Tertia do Missal Romano, no entanto, que aliás já tem até uma versão corrigida, não aparece nesta Terra de Santa Cruz. Domine, usquequo?

Good bye, bad bishops: site que mostra contadores em tempo real indicando quanto tempo falta para alguns purpurados apresentarem a sua renúncia. A grande maioria é de bispos americanos, embora estejam lá o Schönborn e o Kasper. A versão tupiniquim de um site desses… deixa para lá.

Discurso do Papa aos bispos da Regional Sul 1. “Dado que a consciência bem formada leva a realizar o verdadeiro bem do homem, a Igreja, especificando qual é este bem, ilumina o homem e, através de toda a vida cristã, procura educar a sua consciência. O ensinamento da Igreja, devido à sua origem – Deus –, ao seu conteúdo – a verdade – e ao seu ponto de apoio – a consciência –, encontra um eco profundo e persuasivo no coração de cada pessoa, crente e mesmo não crente”.

Kasper e FSSPX

Uns comentários ligeiros sobre a entrevista de Kasper, à qual tive acesso via Exsurge, Domine. Original no Fratres in Unum.

Em primeiro lugar, e data maxima venia a Sua Eminência Reverendíssima, “o que alguns membros da FSSPX disseram (…) inclusive sobre mim” é provavelmente “inacreditável”, mas nem por isso é necessariamente falso. O cardeal alemão nunca foi famoso por sua ortodoxia. Pode-se até conceder que o pessoal da FSSPX veja as coisas “negras” demais, mas o cardeal Kasper parece-me ver as coisas negras de menos. Colocar no mesmo saco João Paulo II, Bento XVI e Walter Kasper – como fez o eminentíssimo cardeal na sua entrevista – é inadequado, para dizer o mínimo.

Depois, concordo em parte com Sua Eminência quando ele diz que “a FSSPX deve refletir sobre o gesto magnânimo do Papa” porque, até o presente momento, não se vê “nenhum sinal de reflexão por parte deles”. Eu vejo sinais de reflexão na FSSPX; menos numerosos do que gostaríamos, sem dúvidas, mas seria utopia esperar coisas muito maiores do que isso, considerando quem é a Fraternidade. Sem dúvidas que é necessário haver mais reflexão, e nesta intenção elevo súplicas ao Altíssimo por meio da Virgem Santíssima, Onipotência Suplicante. Mais reflexões, também, da parte de alguns cardeais da Cúria Romana, inclusive os de origem germânica.

Por fim, parece-me errada (ou, no mínimo, capaz de induzir ao erro) a resposta que S. E. R. dá ao problema levando pela Fraternidade: “[a] Igreja Católica não entende a Tradição como a FSSPX, ou seja, de maneira congelada no tempo anterior ao Concílio. Somos uma Igreja viva”. A Tradição Apostólica é “congelada” não no tempo anterior ao Concílio, mas na morte do último Apóstolo, porque é Palavra de Deus, parte integrante do Depositum Fidei, fonte (ou canal) da Revelação – e a Revelação encerrou-se com a morte do último Apóstolo, como ensina a boa Doutrina Católica.

A Tradição é “viva” somente no sentido em que a própria palavra de Deus – inclusive a Sagrada Escritura – é viva e eficaz (cf. Hb 4, 12). A Revelação “desenvolve-se” (talvez fosse até melhor dizer “é esclarecida”) ao longo dos séculos, mas eu não tenho muita certeza se é isso que o cardeal Kasper tem em mente quando critica a concepção de Tradição que tem a FSSPX. Aliás, entre um e outro, eu me sentiria inclinado a dizer que a São Pio X compreende a Tradição melhor do que o Cardeal germânico.

Escândalo sobre Taizé

É impressionante como quaisquer notícias relacionadas à comunidade de Taizé conseguem sempre provocar escândalo. A comunidade não-católica é uma fonte inesgotável de irenismo e de confusão doutrinária, e muitas vezes a Igreja é questionada pela “simpatia” com a qual sempre tratou Taizé e, em particular, o Ir. Roger Schutz, seu fundador, cujo assassinato completou recentemente (no dia 16 de agosto) três anos. A mais recente zombaria à qual foi submetida a Esposa de Cristo deu-se justamente por ocasião do aniversário da morte do Ir. Roger, onde o Cardeal Kasper deu uma entrevista sobre o fundador da Comunidade de Taizé. A notícia foi veiculada por ZENIT e também publicada integralmente no site da comunidade de Taizé.

O ponto mais doloroso da questão – apontado acidamente pelo Fratres in Unum – foi a declaração do Card. Kasper de que o Ir. Roger, mesmo não sendo católico, recebia ordinariamente a Sagrada Eucaristia:

“a Igreja Católica tinha aceitado que ele [Ir. Roger] comungasse na missa […] [e ele] também recebeu a comunhão, por diversas vezes, das mãos do Papa João Paulo II, que tinha uma relação de amizade com ele desde o Concílio Vaticano II” [Kasper, in ZENIT]

Todo mundo sabe que não se escreve o que o Kasper diz. Que o cardeal alemão tenha idéias heterodoxas sobre aspectos da Fé Católica que qualquer criança aprende no catecismo, não é novidade para ninguém. Agora, a declaração de que a Igreja e o Papa tenham aceitado sem mais nem menos esta sacrílega communicatio in sacris é bastante grave. Detenhamo-nos um pouco mais na questão.

Em primeiro lugar, o que o cardeal Kasper entende por “Ecumenismo” é uma besteira sem tamanhos. Diz o cardeal:

[O Irmão Roger e]stava convicto de que só um ecumenismo alimentado pela Palavra de Deus e pela celebração da Eucaristia, pela oração e pela contemplação, seria capaz de reunir os cristãos na unidade desejada por Jesus. [Kasper, in Taizé]

O Concílio Vaticano II, todavia, diz o contrário disso:

[N]ão é lícito considerar a communicatio in sacris como um meio a ser aplicado indiscriminadamente na restauração da unidade dos cristãos. [Unitatis Redintegratio, 8]

Ou seja: Kasper diz que o único ecumenismo que “funciona” é o que se alimenta da Eucaristia. A Igreja diz que a Eucaristia não pode ser considerada como um meio para a restauração da unidade dos católicos. Os dois dizem coisas diametralmente opostas. Claro está que é a Igreja quem está certa e, o Kasper, errado.

Acrescente-se a isso o fato óbvio de que não pode receber a Comunhão Eucarística quem está fora da Comunhão com a Igreja. Isso está no Compêndio do Catecismo (n.  291) e o Papa Bento XVI o afirma com bastante clareza:

De facto, a Eucaristia não manifesta somente a nossa comunhão pessoal com Jesus Cristo, mas implica também a plena comunhão (communio) com a Igreja; este é o motivo pelo qual, com dor mas não sem esperança, pedimos aos cristãos não católicos que compreendam e respeitem a nossa convicção, que assenta na Bíblia e na Tradição: pensamos que a comunhão eucarística e a comunhão eclesial se interpenetrem tão intimamente que se torna geralmente impossível aos cristãos não católicos terem acesso a uma sem gozar da outra. [Sacramentum Caritatis, 56]

As exceções da qual fala o Papa no mesmo número da exortação apostólica (“em ordem à salvação eterna, há a possibilidade de admitir indivíduos cristãos não católicos à Eucaristia, ao sacramento da Penitência e à Unção dos Enfermos; mas isso supõe que se verifiquem determinadas e excepcionais situações, associadas a precisas condições”) são as seguintes:

293. Quando é possível administrar a sagrada Comunhão aos outros cristãos?

1398-1401

Os ministros católicos administram licitamente a sagrada comunhão aos membros das Igrejas orientais que não têm plena comunhão com a Igreja católica, sempre que estes espontaneamente a peçam e com as devidas disposições.

No que se refere aos membros doutras Comunidades eclesiais, os ministros católicos administram licitamente a sagrada comunhão aos fiéis, que, por motivos graves, a peçam espontaneamente, tenham as devidas disposições e manifestem a fé católica acerca do sacramento.
[Compêndio, 293]

Evidente está que o “ecumenismo” não pode ser considerado como “em ordem à salvação eterna” e nem tampouco como “motivos graves” (pois isto iria contrariar o texto da Unitatis Redintegratio citado). Mas, então, por que o Ir. Roger comungava (até do Papa!) sem ser católico?!

Por respeito ao Sumo Pontífice, deve-se-lhe conceder a benevolência de não levantar suposições indignas do cargo que ele ocupa. Há uma outra suposição mais caridosa que se pode fazer: e se o Ir. Roger fosse católico?

A notícia saiu há dois anos:

Ir. Roger, o fundador da Comunidade Ecumênica de Taizé, na França, manteve em segredo, por 33 anos, o fato de ter abandonado a religião protestante e ter-se convertido ao Catolicismo.

[…]

A revelar, ou pelo menos confirmar oficialmente, a conversão do religioso suíço foi o bispo emérito de Autun, na França, Dom Raymond Seguy.

[…]

Sua possível conversão ao Catolicismo teria ocorrido em 1972 e, imediatamente após sua profissão de fé, ele teria tomado a decisão de manter segredo sobre isso.

Se baseia ela numa reportagem do Le Monde que diz (não tive acesso à íntegra e também não adiantaria, já que “mon Français est très petit”):

Le cardinal Ratzinger, préfet de la Congrégation pour la doctrine de la foi, qui avait toujours refusé l’accueil des protestants à la communion catholique, faisait-il une exception ? L’énigme est résolue. L’historien Yves Chiron, dans le numéro d’août de la lettre d’information mensuelle Aletheia qu’il publie, révèle que Frère Roger, mort assassiné le 16 août 2005, était converti au catholicisme depuis 1972.
[O Cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que sempre rejeitou que os protestantes fossem admitidos à comunhão [sacramental] católica, abriria uma exceção [ao dar a comunhão para o Ir. Roger nos funerais de João Paulo II]? O enigma está resolvido. O historiador Yves Chiron, na edição de agosto do boletim mensal Aletheia que ele publica, revela que o Ir. Roger, assassinado no dia 16 de agosto de 2005, havia se convertido ao catolicismo desde 1972 – tradução bem livre]

Os rumores foram imediatamente negados pela comunidade de Taizé (“Respeitemos a memória do irmão Roger”, “O Ecumenismo é em primeiro lugar uma partilha de dons” e “Um percurso sem precedente”), mas os artigos publicados pela comunidade são, como sempre, sofríveis. Será que a versão do Le Monde não é possível?

É possível que sim. São palavras do Kasper na citada entrevista:

No entanto, por respeito pela caminhada na fé do irmão Roger, seria preferível não aplicarmos a seu respeito categorias que ele próprio considerava desapropriadas à sua experiência e que, aliás, a Igreja Católica nunca quis lhe impor.

E, se o antigo prior de Taizé converteu-se realmente, e poucos o sabiam, e ele preferiu manter tudo em segredo, por achar termos com “conversão” pouco adequados à empreitada ecumênica por ele conduzida, as coisas passam a fazer mais sentido. Permita Deus que seja verdade! E que a Virgem nos conduza a tempos – em futuro não muito distante, esperemos – em que deixe de ser “politicamente incorreto” falar em conversão, ou em que os politicamente incorretos não corram o risco de pôr muitas coisas boas a perder.