Questões religiosas e questões políticas

Muito bonita e muito verdadeira a afirmação do Card. Dolan acerca de o aborto não ser uma questão de “direita” contra “esquerda”, mas sim do que é certo contra o que é errado. O trocadilho é intradutível: “[abortion is not about] right versus left, but right versus wrong”, e aliás não é da lavra do Cardeal de Nova York e sim do ex-governador da Pensilvânia Bob Casey Sr. Casey era do partido democrata e adversário ferrenho do aborto.

A política americana atual se encontra dividida entre dois campos ideológicos opostos e irreconciliáveis. Cada grupo tem o seu próprio pacote de reivindicações pronto e acabado: a esquerda é a favor do aborto e dos direitos dos trabalhadores, a direita é a favor das armas e do direito de propriedade. A esquerda é progressista e a direita é conservadora. A esquerda é o Partido Democrata e, a direita, o Partido Republicano.

Esta caricatura de ideologia política transcendeu as fronteiras dos Estados Unidos da América e, no mundo globalizado em que vivemos, passou a dar o tom de toda política. Assim, em qualquer lugar do mundo, hoje você é constantemente interpelado a se definir em termos de direita ou de esquerda; pior ainda, a depender das respostas que você dê a certos temas tidos como “representativos” (como política de drogas ou taxação de dividendos, por exemplo), você é classificado como pertencente a um grupo ou outro e, automaticamente, as pessoas atribuem a você — para o bem e para o mal — todo o pacote ideológico daquele grupo.

Assim, se você é, por exemplo, religioso, contra o casamento gay e contra o aborto, as pessoas presumem que você também é contra as políticas assistencialistas e as cotas sociais. Ou se você é a favor do divórcio, dos imigrantes e contra a presença de símbolos religiosos em prédios públicos, os outros presumem que você também é contra a posse de armas de fogo e a favor da intervenção forte do Estado na economia. Isso facilita as coisas, sem dúvidas, isso reduz complexidade social, mas isso também limita o campo de atuação humano e, convenhamos, dificulta e falseia o debate público. Ou seja, isso termina por atrapalhar a política.

Essa forma com a qual nos acostumamos a enxergar a realidade tem dois grandes problemas. O primeiro, como já foi ventilado, é que isso limita a esfera de ação daqueles que querem participar da vida pública. Precisando optar por um grupo político ou pelo outro, o cidadão acaba sendo coagido a comprar o “pacote completo” para fins de pragmatismo político e para fortalecer a identidade partidária: assim, o sujeito concorda bastante com x, w e z, não concorda muito com y mas acaba encampando também a sua defesa porque de outra sorte não teria espaço para defender x, w e z — que é aquilo pelo que ele realmente gostaria de lutar. Ou seja, a pessoa defende algumas coisas por convicção interior e outras por condicionamento exterior.

O segundo problema é ainda pior. É que existem algumas coisas dentro destes pacotes político-ideológicos — muitas coisas, eu diria — que são perfeitamente discutíveis, com relação às quais se pode chegar a diversos arranjos legítimos. Não existe uma única maneira correta de se cobrar impostos ou de se elencar os deveres mínimos que os empregadores devem guardar para com os seus empregados. Definir se a maioridade penal deve ou não coincidir com a maioridade civil, ou repartir entre os patrões e a sociedade os custos da licença-maternidade, isso são coisas cujas concretizações podem ser francamente inaceitáveis, sem dúvidas, mas que também se podem concretizar de muitas maneiras perfeitamente aceitáveis. Em temas assim, as questões verdadeiramente morais só se impõem nos seus extremos, deixando uma ampla margem para o saudável exercício da prudência e dos juízos contingentes. Aqui há muito espaço para negociações.

Mas isso não se aplica a todos os temas. Em particular, a defesa da vida não é negociável da mesma maneira que a alíquota do imposto de renda; com o aborto, com o assassínio, com o mal, não é possível condescender de nenhuma maneira. Não é possível, aqui, forçar um meio-termo que privilegie os dois lados da disputa: qualquer mínima autorização ao aborto é sempre e em si mesma uma ofensa objetiva à justiça e ao direito, uma ferida aberta na civilização. Da mesma forma que não se pode pacificar o embate entre escravocratas e abolicionistas dizendo que “apenas” poderão ser escravas as pessoas nas condições A, B e C: por restritíssimas que fossem essas condições, ainda assim elas não fariam descansar os que combatessem a escravidão.

O aborto permitido em condições restritas não é uma deferência concedida aos pró-vida, não é uma situação socialmente pacificada que se deve lutar pra manter: diante do horror do aborto, como diante do horror da escravatura, a única resposta humana possível é a luta por sua total abolição. Com menos do que isso não pode haver paz. Enquanto uma única criança puder ser assassinada com a anuência do Estado, então não é possível estar em paz com esse simulacro de direito e com esta caricatura de justiça.

Foto: Infocatólica | © Getty

A imensa maior parte dos outros temas politicamente relevantes não tem essa mesma imperiosidade. Foi por isso que o Card. Dolan pôde responder assim ao governador de Nova York, que parece ter enorme dificuldade para perceber estas nuances:

Ele — o governador — não me considerava parte da “direita religiosa” quando procurava minha ajuda para o aumento do salário mínimo, a reforma penitenciária, a proteção dos trabalhadores, a acolhida dos imigrantes e refugiados e a promoção da educação universitária para a população carcerária — causas pelas quais estávamos felizes de nos associar com ele, porque também eram as nossas causas. Suponho que eu era parte da “esquerda religiosa” nesses casos.

Card. Dolan

Em resumo, é preciso ter cuidado hoje em dia, porque nem tudo o que se costuma discutir entre pessoas religiosas é uma questão religiosa, como nem tudo sobre o que os políticos são chamados a se manifestar é uma questão política. Há no meio dos “pacotes ideológicos” muitas coisas que não podem ser defendidas com intransigência religiosa, como há também algumas coisas que não podem ser negociadas com condescendência política. É preciso saber separar uma coisa de outra — isso para o bem da política como para o bem da religião.

“Efeito Francisco”: Missas mais cheias e filas mais longas nos confessionários

[Publico uma tradução de um texto do Tornielli (em espanhol aqui) sobre os efeitos que o Papa Francisco tem provocado nos católicos americanos. Parece-me sinceramente difícil negar os bons frutos deste Pontificado.

As coisas não me parecem mais “confusas” do que (p.ex.) no ano passado, a despeito de todos os esforços da mídia anti-clerical para seqüestrar o Papa Francisco. Ao contrário, as informações que o Card. Dolan nos trazem dizem o extremo oposto disso: as missas estão mais cheias, há mais interesse sobre a Fé Católica e os confessionários são mais procurados. Os confessionários! Somos tão ímpios ao ponto de ousar pôr em dúvida a eficácia dos Sacramentos da Igreja Santa de Deus? Perdemos tanto assim o senso do sobrenatural que somos incapazes de ver o horizonte enfeitar-se com as cores do arrebol agora, quando mais e mais almas acorrem ao Sacramento da Penitência?

Olhemos o que acontece a nosso redor. Não deixemos que o azedume de alguns feche-nos os olhos às maravilhas da Graça de Deus que, a despeito das limitações humanas, sempre encontra uma maneira de frutificar. Não nos esqueçamos desta verdade: Cristo Crucificado sempre atrai as almas a Si. Ainda que nos esforcemos por afastá-las d’Ele.]

Cardeal Dolan confirma o “efeito Bergoglio” nos Estados Unidos

Em uma entrevista à  CBS: «Meus párocos falam de mais gente nas missas e de filas maiores nos confessionários»

O “efeito Bergoglio” sente-se também nos Estados Unidos, segundo confirmou o cardeal Timothy Dolan, Arcebispo de Nova York, que chegou ao final de seu mandato como presidente da Conferência Episcopal do país.

O purpurado falou sobre o assunto em uma entrevista com a CBS, na qual disse perceber o efeito do novo pontificado «a cada momento». «Não posso caminhar pelas ruas de nossa amada Nova York – explicou – sem que as pessoas se aproximem e me digam: “Ei, obrigado pelo Papa Francisco. Fizeram um excelente trabalho. Nós o adoramos”.

Tenho ouvido nossos párocos, que sempre estão na linha de frente, dizerem que aumenta o número de pessoas nas missas dominicais e que as filas dos confessionários estão cada vez maiores. Aumentam as perguntas sobre a Fé Católica e também as esmolas».

O Arcebispo de Nova York também respondeu sobre o questionário de 39 perguntas enviado às Igrejas locais em vista do próximo Sínodo da Família: «O que o Papa nos está perguntando é: como podemos apresentar melhor o ensino da Igreja? Como podemos ser mais eficazes em ensinar? E como podemos alcançar com o amor e a compaixão aqueles que têm dificuldades em viver a doutrina da Igreja?».