Ainda o “Deus seja louvado” da moeda brasileira: mais repercussões

– O De Lapsis fez o grande favor de transportar a nossa polêmica tupiniquim ao mundo hispânico ao verter na língua de Cervantes esta batalha cultural que se está travando no Brasil. A análise do articulista me parece bem verdadeira: «tenho certeza de que há católicos, inclusive de boa fé, que julgam estas questões irrelevantes [intrascendentes]. Talvez quando as vejam relevantes [trascendentes] seja já tarde demais»…

Em tempos onde bispos parecem aproveitar o calor da batalha para desferir mais um cruel golpe à Igreja Católica mandando tirar estátuas de santos de uma praça da matriz (o tempora! O mores!), estamos muitíssimo bem servidos de inimigos intra-muros. Chega a parecer incrível que a Igreja permaneça de pé. Cada episódio traiçoeiro destes (já incontáveis vezes repetido ao longo dos 2000 anos de Cristianismo) só nos revela a eficácia daquelas palavras de Cristo de que as Portas do Inferno não prevaleceriam sobre a Igreja d’Ele.

– Em defesa da retirada da inscrição, o sr. Robson de Souza escreveu para o Acerto de Contas e, o Carlos Orsi, para a Folha de São Paulo. Não vou mais repetir que a cédula vazia é tão anti-cristã quanto a mobilização para torná-la vazia é ateísta fanática, porque isto é óbvio: os efeitos apontam para as suas causas e são da mesma natureza destas. Guilhotinar o Rei de França e expôr o trono vazio é um símbolo anti-monarquista, ainda que não coloquem outra pessoa no trono ou mandem afixar na sala real uma placa dizendo “não há rei”.

Cabe apenas notar aqui que o Carlos Orsi, que dedica a maior parte do seu texto a atacar espantalhos ou a despejar falácias – como se (p.ex.) a permanência de uma coisa errada por séculos a transformasse em menos errada [«os nomes de cidades seculares têm peso cultural e histórico muito maior que “Deus seja louvado” (lema adotado nos anos 1980)»], e não – ao contrário – tornasse a luta pelo restabelecimento da Justiça mais premente! -, tem uma interpretação peculiaríssima da língua portuguesa. Para ele, «[o] artigo 19 da Constituição proíbe o Estado de “subvencionar” cultos religiosos. E usar dinheiro para mandar as pessoas louvarem a Deus me parece um caso claro de subvenção». Como se a inscrição na cédula brasileira tivesse a força de um mandado legal para obrigar os cidadãos a celebrarem missas, ou como se a pequena frase implicasse na reserva legal de uma parcela do dinheiro em circulação para a construção de igrejas ou o pagamento de espórtulas, ou – ainda! – como se um indivíduo que, de repente, pegasse uma nota de Real para examinar, prestasse atenção na frase e repetisse mentalmente “Deus seja louvado!” estivesse celebrando um culto religioso!

O fato é que a Fé Atéia irracional não se confunde com a verdade objetiva dos fatos. A existência de Deus é objeto da razão e da Filosofia Natural, esferas que estão perfeitamente ao alcance de qualquer pessoa (e, por extensão, do Estado). O que entra na seara da religião é saber Quem é Deus e como Ele deve ser cultuado; a simples e genérica existência d’Ele não é crença religiosa, mas saber filosófico. Assim, o mero reconhecimento de que Deus existe (chame-se-Lhe de IHWH dos Exércitos, Allah, Primeiro Motor Imóvel, Causa das Causas ou como se queira) não é, sob nenhuma ótica, um culto religioso!

No “Consultor Jurídico”, o Lenio Streck – Procurador de Justiça do Rio Grande do Sul – também escreveu sobre o tema, em um texto longo e provocativo que vale a pena ler. E, além disso, vale fazer uma pequena retrospectiva histórica.

A Maçonaria (que eu não sei se os fanáticos ateístas consideram ou não uma religião, mas não vem ao caso agora, pelo que segue) diz que a efígie da República chama-se Marianne mesmo e – ainda! – que ela é «chamada por uns de Senhora da Liberdade e por outros de Senhora da Maçonaria». Ou seja, o fato de haver uma francesa nas cédulas de Real é (além de racismo, como já mostrado) um injustificável favorecimento dos Maçons em detrimento de todos os não-maçons. Alguém já viu cristãos encaminhando pedidos ao Ministério Público para a retirada deste símbolo?

E mais: a nota de 50.000 cruzeiros reais tinha na frente uma «[e]fígie de “baiana”, com torço e colares, tendo à esquerda painel onde figuram alguns de seus mais importantes balagandãs, os quais possuem diversos significados: romã e cacho de uvas (fecundidade); figa de madeira e dentes de animais (proteção); caju (abundância); peixe, cordeiro e pombas do Espírito Santo» (vejam aqui). Alguém se lembra de algum católico ter então exigido a retirada do símbolo alegando que ele ofendia os seus sentimentos religiosos?

Todas essas coisas servem para mostrar quem é que tem razão nesta história toda: se o punhado de ateístas fanáticos em uma jihad para banir Deus da vida pública ou o resto do mundo que não enxerga esta exigência de alijar a moeda brasileira de sua pequena inscrição de louvor a Deus. A realidade dos fatos mostra de modo insofismável quem são os verdadeiros intolerantes (e, por conseguinte, quem é a maior ameaça à vida em sociedade): não são os cristãos que sempre toleraram no dinheiro do Brasil referências a outras religiões até incompatíveis com o Cristianismo, mas sim os ateístas que – ao contrário – são incapazes de tolerar quaisquer referências (por mínimas e genéricas que sejam) a outras crenças distintas da sua própria.

“É exatamente de mudanças na lei que estamos falando, certo?”

Ainda sobre as reações ao artigo do Guzzo sobre o estado do homossexualismo no Brasil (aqui de segunda mão), achei bastante interessante este texto do Carlos Orsi que se propõe a analisar o mesmo artigo da Veja que o Cardoso desastrosamente comentou outro dia. E o que é interessante aqui é um pequeno detalhe, lá no final do texto, que pode passar despercebido mas que encerra o cerne desta discussão (o negrito é meu):

Num determinado ponto do artigo há uma tentativa lamentável de tratar da questão da justificativa:

Mas a sua ligação [entre gays] não é um casamento – não gera filhos, nem uma família, nem laços de parentesco.

Que é uma outra falácia, esta clássica, a do petitio principii, que consiste em presumir o que se deseja demonstrar. O que o autor faz, nessa linha, é simplesmente definir as palavras “casamento”, “família” e “parentesco” de modo que elas signifiquem o que ele deseja — coisas predicadas necessariamente numa união heterossexual que gera filhos naturais.

Esta talvez seja a definição preferida do Vaticano, quem sabe até seja usada hoje na lei brasileira, mas, no primeiro caso, a coisa é irrelevante (Estado laico, lembra?); no segundo, bolas, é exatamente de mudanças na lei que estamos falando, certo?

Opa! Certo? Muito devagar com o andor nesta hora. Concordo que se precise falar de mudanças na lei; mas não me parece nada claro no discurso da militância homossexual que estejamos falando “exatamente” de uma mudança no conceito de “casamento” (muito menos nos de “família” e “parentesco” – mas fiquemos só com o primeiro por enquanto) dentro da sociedade brasileira. Aliás, muito pelo contrário até: as descabidas referências ao “casamento inter-racial” cuspidas ad nauseam pelos campeões da causa gay ou a bandeira do deputado Jean Wyllys pelos “mesmos direitos com os mesmos nomes”, por exemplo, parecem ir no sentido de apresentar a inexistência do “casamento gay” no Brasil como uma injustiça atroz exatamente porque a dupla de homossexuais (alegadamente) já se enquadraria naquilo que se entende por “casamento”.

Eu inclusive me arriscaria a dizer que esta é a única razão pela qual a causa consegue angariar a simpatia dos brasileiros mais levianos: por se apresentar como uma bandeira de injustiçados aos quais está sendo negado um direito que todos já têm (e – adendo elíptico – que eles, por conseguinte, deveriam possuir também), e não porque se está fazendo uma serena e desapaixonada discussão jurídica para substituir a instituição familiar no ordenamento jurídico brasileiro por um outro agrupamento social distinto daquela. A força de apelo da causa decorre justamente do fato das duplas homossexuais já se considerarem (e assim se apresentarem) como “família” e “casamento”, e jamais por não se encaixarem nos conceitos vigentes e desejarem criar outros novos.

Concordo que estamos falando em mudanças de conceitos. O que discordo é que este aspecto esteja presente no inflamado debate social que se está travando sobre o assunto. Ao contrário, ele me parece muito convenientemente escondido.

Se estivéssemos falando “exatamente de mudanças na lei”, por exemplo, o Supremo – que não tem competência de legislar e, portanto, não poderia jamais efetuar “mudanças na lei” – não poderia ter igualado a união estável constitucional à dupla gay. A argumentação dos senhores ministros, aliás, diz o contrário daquilo que o Orsi está querendo vender agora como se fosse óbvio: para a Suprema Corte, a Constituição Brasileira já recepciona perfeitamente as duplas homossexuais como se famílias fossem, sem que seja necessário fazer “redefinição” alguma. Citando ao acaso uma das muitas barbaridades que se disse então, o voto do Ministro Marco Aurélio: «Com base nesses fundamentos, concluo que é obrigação constitucional do Estado reconhecer a condição familiar e atribuir efeitos jurídicos às uniões homoafetivas». Ora, se as reivindicações das duplas sodomitas demandassem mudança constitucional (repitamos, como eu e todo o mundo que tem bom senso defende, contra os onze lunáticos do STF), estaria equivocado o entendimento da Suprema Corte sobre esta “obrigação constitucional do Estado” (sic!) de tratar as duplas gays exatamente como trata as famílias. Ao contrário, se existe de fato esta obrigação, então não é necessário mudança de conceito legal alguma. E terceira alternativa não há.

Ainda: se estivéssemos falando “exatamente de mudanças na lei”, as comparações com as leis anti-miscigenação americanas seriam gritantemente descabidas, pela simples e evidente razão de que não foi jamais necessário redefinir “casamento” para que negros pudessem se casar com brancos – coisa que, segundo o sr. Orsi, precisa ser feita aqui para que “casamento” englobe também as relações entre pessoas do mesmo sexo.

Em uma palavra: a aceitação legal do “casamento gay” implica em profundas e radicais mudanças na forma como o Estado e a sociedade entendem “casamento” e “família”, mudanças estas sem absolutamente nenhum paralelo conhecido. Deseja-se, como já dizíamos há muito tempo, inventar e impôr um inaudito conceito de “família” que é diferente daquele que as civilizações sempre adotaram e que (ao contrário da retórica que sói empregar-se) não guarda semelhança alguma com questões arianas ou de Apartheid, aliás muito pelo contrário: enquanto estas consistiam basicamente em proibições sobre coisas que sempre houve (posteriormente revogadas, sem que fosse necessário modificar os conceitos fundamentais do Estado de “família”, “casamento” e “parentesco”), a disputa atual pelo “casamento gay” exige o reconhecimento positivo de uma coisa que nunca existiu, o que implica em uma mudança gigantesca nos elementos basilares constituintes da sociedade.

Portanto, os inovadores aqui são os promotores do “casamento gay”. Estão reivindicando não o restabelecimento de um direito injustamente subtraído, mas uma revolução em conceitos-chave da organização social – cuja necessidade não se pode pretender evidente à mera força de analogias forçadas com as instituições já existentes. Semelhante pretensão exigiria uma apologia positiva serena e racional, e não pode ser empurrada goela abaixo da sociedade sob gritos de “e por que não?”, “preconceituoso!”, “homofobia!” e tutti quanti. Mas os revolucionários optam sempre por este segundo meio; e isto, por si só, já testemunha eloqüentemente em seu desfavor.