A tortura, a Moral, a Santa Inquisição, o Magistério, o Catecismo e muito mais

Gostaria de fazer referência a um texto muito bom traduzido pelo Acies Ordinata e ontem publicado. E trata-se de uma interessantíssima situação: por um lado concordo inteiramente com a motivação do artigo, de refutar pretensas “contradições” no Magistério pré-conciliar para fazer frente aos tradicionalistas não-sedevancatistas. No entanto, e como sabem todos os que me lêem, discordo visceralmente da posição sedevacantista, adotada pelo autor do artigo e por seu tradutor.

E publico este post também por outro motivo: na introdução do referido texto acima, é feita uma menção a um excerto do livro do João Bernardino Gonzaga aqui publicado recentemente, na qual insinua-se constituir este uma espécie de defesa de uma contradição no Magistério da Igreja no tocante ao tema da tortura. Quanto a isso, (1) não posso falar com certeza pela posição de J. B. Gonzaga, mas a mim não me parece que ele adopte esta posição; e (2) por mim, de quem posso falar com segurança, quero deixar claro que nunca pretendi afirmar nem insinuar que o Magistério Se houvesse contradito no tema da tortura, mas tão-somente, por um lado, afirmar, do ponto de vista católico, que a tortura empregada pela Inquisição possuía uma série de características que a distinguiam quer da tortura dos nossos tempos, quer daquela praticada no contexto onde surgiram os tribunais do Santo Ofício; e, por outro lado, do ponto de vista anti-clerical, pôr a descoberto o gritante anacronismo – mesmo prescindindo de um ponto de vista espiritual – que existe na condenação simpliciter da Santa Inquisição por conta do emprego da tortura.

Eu não me recordo de já ter dito isso aqui expressamente, mas já disse em conversas privadas que não julgava a tortura “intrinsecamente má” – mas, ao contrário, dependente quer de sua definição, quer das contingências históricas concretas. De fato, o Catecismo da Igreja Católica diz quanto segue sobre o assunto:

2297. Os raptos e o sequestro de reféns espalham o terror e, pela ameaça, exercem intoleráveis pressões sobre as vítimas. São moralmente ilegítimos. O terrorismo ameaça, fere e mata sem descriminação; é gravemente contrário à justiça e à caridade. A tortura, que usa a violência física ou moral para arrancar confissões, para castigar culpados, atemorizar opositores ou satisfazer ódios, é contrária ao respeito pela pessoa e pela dignidade humana. A não ser por indicações médicas de ordem estritamente terapêutica, as amputações, mutilações ou esterilizações directamente voluntárias de pessoas inocentes, são contrárias à lei moral (63).

2298. Nos tempos passados, certas práticas de crueldade foram comummente adoptadas por governos legítimos para manter a lei e a ordem, muitas vezes sem protesto dos pastores da Igreja, tendo eles mesmos adoptado, nos seus próprios tribunais, as prescrições do direito romano sobre a tortura. A par destes factos lastimáveis, a Igreja ensinou sempre o dever da clemência e da misericórdia; e proibiu aos clérigos o derramamento de sangue. Nos tempos recentes, tornou-se evidente que estas práticas cruéis não eram necessárias à ordem pública nem conformes aos direitos legítimos da pessoa humana. Pelo contrário, tais práticas conduzem às piores degradações. Deve trabalhar-se pela sua abolição e orar pelas vítimas e seus carrascos.

Catecismo da Igreja Católica

O Catecismo Romano, ao que me consta, silencia sobre o assunto. E a posição do atual Catecismo, contextualizada nos tempos em que vivemos, é no meu entender indistinguível daquilo que já havia sido dito por Pio XII (apud J.S. DALY, Pretensas Contradições do Magistério – Tortura e muito mais!, 2005; trad. br. por F. Coelho, São Paulo, blogue Acies Ordinata, abr. 2010, http://wp.me/pw2MJ-q2):

A instrução judiciária deve excluir a tortura física e psíquica e a narco-análise, antes de tudo porque lesam um direito natural mesmo se o acusado é realmente culpado, e além disso porque com demasiada frequência dão resultados errôneos

Ora, não havendo – como reconheço não haver, pelos motivos muito bem explicados no texto do Daly – contradições entre a Ad Exstirpandam e o Papa Pio XII, segue-se que também não as há entre estes dois textos e o Catecismo da Igreja publicado em 1992.

Reproduzo também, por fim, o trecho do referido artigo onde é feita menção ao Theologia Moralis de Santo Afonso de Ligório sobre o tema:

Convém abrir um livro sério de teologia moral e estudar um pouco o pensamento da Igreja sobre a tortura. Quem escolher Santo Afonso (Theologia Moralis, livro V, [art. III] nn. 202-5 – é o livro de teologia moral mais aprovado) aprenderá que a tortura é intrinsecamente ilícita salvo em certas condições extremamente limitadas:

1. A culpabilidade deve já ter sido estabelecida com certeza moral;

2. O sofrimento aplicado não deve ser insuportável a ponto de fazer até mesmo um inocente se acusar;

3. Numerosas categorias de pessoas estavam isentas de toda a tortura;

4. Toda a confissão assim obtida era inutilizável a menos que fosse livremente confirmada, sem tortura, no dia seguinte;

5. Se a tortura não obtivesse resultado, não se poderia recorrer a ela novamente.

Aí estão as condições de trabalho da Inquisição. Encontram-se expostas de modo similar no célebre Malleus Maleficarum. Ora, visivelmente, aquilo que Nicolau I condena não se assemelha a isso em nada. E a leitura do contexto das palavras de Pio XII confirma que tampouco ele falava de um tal uso da tortura. “Não é raro que elas cheguem exatamente às confissões almejadas e à condenação do acusado, não por ser ele culpado de fato, mas por sua energia física e psíquica estar esgotada…” A regra que Pio XII deseja ver imposta é a de Nicolau I. Ele não fala de maneira alguma de um emprego da tortura tão limitado e condicionado, a ponto de ela não ser contrária à lei moral, e no qual ninguém mais pensa.

Ressalto, finalmente, que a referência a estas condições limitadas está presente – embora não de maneira tão esquemática – no texto do J. B. Gonzaga aqui reproduzido anteriormente. E, somente como aviso aos navegantes (e antecipando as pedradas que virão), é óbvio que nem eu, nem o J. S. Daly e nem o Felipe Coelho estamos fazendo apologia da tortura ou propondo uma lei de iniciativa popular que a re-introduza no ordenamento jurídico brasileiro. Quem entender semelhante coisa, peço por gentileza que releia este texto e todos as referências antes de vir aqui com comentários indignados e descabidos.

A função do sacerdote – papa Bento XVI

[Fonte: Canção Nova apud Fratres in Unum. Grifos no original do Fratres.]

Nesta situação, realmente, realiza-se de novo a Palavra do Senhor: “Tenho compaixão do povo, são como ovelhas sem pastor”. O Senhor havia dito isso quando viu milhares de pessoas que o seguiam no deserto, porque, em meio à diversidade das correntes daquele tempo, não sabiam mais qual era o real significado das Escrituras. O Senhor, movido de compaixão, interpretou a Palavra de Deus – Ele próprio é a Palavra de Deus – e deu a orientação. E essa é a função in persona Christi do sacerdote, aquela de tornar presente, em meio à confusão, à desorientação de nosso tempo, a luz da Palavra de Deus, a Luz que é o próprio Cristo neste nosso mundo. Então, o sacerdote não ensina as suas próprias ideias. O sacerdote não fala “de si”, não fala “para si”, para criar para si, talvez, admiradores ou um partido próprio. Não fala de coisas próprias. O sacerdote ensina em nome de Cristo presente, propõe a Verdade que é o próprio Cristo, a Sua Palavra, o Seu modo de viver, e de andar adiante.

Magistério da Igreja – Autoridade Mundial

[Após o Papa Bento XVI ter dito, na sua última carta encíclica, que “urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial”, muitas pessoas rasgaram as vestes e escandalizaram-se, achando que o Papa estaria cedendo ao globalismo moderno, capitulando diante da ONU, adotando posições modernistas, ou qualquer coisa do tipo. Na verdade, o número 67 da Caritas in Veritate não constitui novidade alguma (obviamente) na Doutrina Social da Igreja, como se pode ver pelos documentos abaixo apresentados. Agradeço ao Rodrigo R. Pedroso pela elaboração e envio da coletânea.]

I – Catecismo e Compêndio de DSI

1911. As dependências humanas intensificam-se. Estendem-se, pouco a pouco, a toda a terra. A unidade da família humana, reunindo seres de igual dignidade natural, implica um bem comum universal. E este requer uma organização da comunidade das nações, capaz de «prover às diversas necessidades dos homens, tanto no domínio da vida social (alimentação, saúde, educação…), como para fazer face a múltiplas circunstâncias particulares que podem surgir aqui e ali (por exemplo: […] acudir às misérias dos refugiados, dar assistência aos migrantes e suas famílias…)» (II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 84: AAS 58 (1966) 1107).

1927. Compete ao Estado defender e promover o bem comum da sociedade civil. O bem comum de toda a família humana exige uma organização da sociedade internacional.

(Catecismo da Igreja Católica)

442 Uma política internacional voltada para o objetivo da paz e do desenvolvimento mediante a adoção de medidas coordenadas mais do que nunca tornou-se é necessária em virtude da globalização dos problemas. O Magistério destaca que a interdependência entre os homens e as nações adquire uma dimensão moral e determina as relações no mundo atual sob o aspecto econômico, cultural, político e religioso. Nesse contexto, seria de desejar uma revisão, que «pressupõe a superação das rivalidades políticas e a renúncia a toda a pretensão de instrumentalizar as mesmas Organizações, que têm como única razão de ser o bem comum», com o objetivo de conseguir «grau superior de ordenação a nível internacional».

443 O Magistério avalia positivamente o papel dos agrupamentos que se formaram na sociedade civil para exercer uma importante função de sensibilização da opinião pública para com os diversos aspectos da vida internacional, com uma atenção especial para o respeito dos direitos do homem, como revela o «o número das associações privadas, recentemente instituídas, algumas de alcance mundial, e quase todas empenhadas em seguir, com grande cuidado e louvável objetividade, os acontecimentos internacionais num campo tão delicado».

(Compêndio de Doutrina Social da Igreja)

II – Magistério Pré-Conciliar

5. Em primeiro lugar, o ponto fundamental é que a força moral do direito anteceda a força material das armas. Portanto, um justo acordo de todos na diminuição simultanea e reciproca das armas, segundo normas e garantias a serem estabelecidas, na medida necessaria e suficiente à manutenção da ordem publica nos países individualmente; e, em substituição das armas, um instituto que possa arbitrar com alta função pacificadora, segundo normas a estabelecer e a sanção a ser combinada contra o país que recusasse submeter as questões internacionais à decisão desse arbitro.

(Bento XV – Carta Dès le début, aos chefes dos povos beligerantes, 01.08.1917)

11. O que aqui recordamos aos individuos a respeito dos deveres que têm de praticar a caridade, entendemos que isso deva também ser estendido aos povos que combateram a Grande Guerra, para que removida, por quanto possivel, toda causa de dissidio — e salvas as razões da justiça –, reatem entre eles relações amigaveis. Não é outra a Lei do Evangelho da caridade entre os individuos da que deve existir entre os estados e nações, não sendo esses senão a conjugação dos individuos singularmente. A partir do momento em que a Guerra cessou, não apenas por motivos de caridade, mas também por certa necessidade de coisas, vai-se delineando uma coligação universal de povos, motivados a se unirem entre si para o atendimento de mutuas necessidades, além de benevolencias reciprocas, especialmente agora com a crescente humanização e com as vias de comunicação admiravelmente multiplicadas. (…)

13. Restabelecidas assim as coisas, segundo a ordem evocada pela justiça e pela caridade, e reconciliados entre si os povos, seria muito desejavel, veneraveis irmãos, que todos os estados, removidas as suspeitas reciprocas, se reunissem numa unica sociedade, ou melhor, familia de povos, seja para garantir a propria independencia, e seja para tutelar a ordem da sociedade civil. Para formar essa sociedade entre povos é de estimulo, entre outras considerações, a necessidade geralmente reconhecida de reduzir, senão abolir, as enormes despesas militares que não podem continuar a ser sustentadas pelos estados, para que assim se impeçam futuras guerras mortiferas, e se assegure aos povos nos seus justos limites a independencia da integridade do proprio territorio.

14. E uma vez que essa federação entre nações seja fundada sobre as leis cristãs, por tudo o que se refere à justiça e à caridade, certamente não será a Igreja que recusará o seu contributo válido, uma vez que, sendo ela o tipo mais perfeito de sociedade universal, por sua mesma essencia e finalidade é de eficacia maravilhosa para irmanar os homens, não somente em ordem à eterna salvação, mas também no seu bem-estar material e os conduz através dos bens temporais, de modo a não perder os eternos

(Bento XVCarta enciclica Pacem Dei Munus sobre a reconciliação cristã de paz, 23.05.1920)

En toda reordenación de la convivencia internacional, sería conforme a las máximas de la humana sabiduría que todas las partes interesadas dedujeran las consecuencias de las lagunas o de las deficiencias del pasado; y al crear o reconstruir las instituciones internacionales, que tienen una misión tan alta, pero al mismo tiempo tan difícil y llena de gravísima responsabilidad, se deberían tener presentes las experiencias que resultaron de la ineficacia o del defectuoso funcionamiento de anteriores iniciativas semejantes. Y, como a la debilidad humana es tan dificultoso, casi podríamos decir tan imposible, preverlo todo y asegurarlo todo en el momento de los tratados de paz. cuando es tan difícil verse libre de las pasiones y de la amargura, la constitución de instituciones jurídicas que sirvan para garantizar el leal y fiel cumplimiento de tales tratados, y, en caso de reconocida necesidad, para revisarlas y corregirlas, es de importancia decisiva para una honrosa aceptación de un tratado de paz y para evitar arbitrarias y unilaterales lesiones e interpretaciones de las condiciones de los referidos tratados.

(Pio XIIAlocução natalina In questo giorno aos membros da Cúria, 24.12.1939)

44. Ya en nuestro discurso navideño de 1939 Nos presagiábamos la creación de organizaciones internacionales que, evitando las lagunas y las deficiencias del pasado, fuesen realmente aptas para preservar la paz, según los principios de la justicia y de la equidad contra toda posible amenaza en el futuro. Puesto que hoy, a la luz de tan terribles experiencias, la aspiración hacia una semejante institución universal de paz reclama cada vez más la atención y los cuidados de los hombres de Estado y de los pueblos, Nos espontáneamente expresamos nuestra complacencia y deseamos que su realización concreta responda verdaderamente, en la más amplia medida, a la altura del fin, que es el mantenimiento, en beneficio de todos, de la tranquilidad y de la seguridad en el mundo.

(Pio XIIRadiomensagem Oggi al compiersi, no 5° aniversario do inicio da guerra, 01.09.1944)

III – Sacro Império Medieval

Que o orgulho da França não venha protestar dizendo que ele não reconhece superior, pois é uma mentira. De direito os franceses estão e devem estar submetidos ao rei dos romanos, que também é imperador. Não sabemos de onde eles tiraram e onde eles puderam encontrar a ideia de sua independência, pois está estabelecido que os cristãos sempre estiveram submetidos ao monarca de Roma e que eles assim devem permanecer.

(Bonifacio VIII, bula Ausculta Fili, 05.12.1301)

IV – Referências Conexas

– Plínio Corrêa de Oliveira, sobre Bento XV, a Liga das Nações e o Sacro Império.

– Dante Alighieri, De Monarchia (original latim, ou nesta tradução para o inglês).

As armas na defesa da Verdade

Recebi aqui no blog alguns comentários referentes à forma segundo a qual é lícito ao cristão travar os seus debates em defesa da Verdade. Em particular, foi atacada uma característica que sempre esteve presente na história da Igreja, que é a ironia direcionada contra os inimigos de Deus. Cabe, portanto, perguntar se é lícito ao cristão utilizar-se de ironia para defender a Deus e a Santa Igreja. A questão precisa ser analisada com um pouco de atenção.

Comecemos pelo Catecismo da Igreja Católica; o único momento em que ele fala sobre “ironia” é no parágrafo seguinte:

2481. A jactância ou vanglória constitui um pecado contra a verdade. O mesmo se diga da ironia que visa depreciar alguém, caricaturando, de modo malévolo, um ou outro aspecto do seu comportamento.

A ironia é, portanto, um pecado contra a Verdade. Mas cabe-nos ainda perguntar: isto se aplica a toda espécie de ironia? Ou ainda: a quê, exatamente, refere-se o catecismo quando coloca a ironia como sendo um pecado contra a Verdade?

Santo Tomás de Aquino também fala sobre a ironia na Suma Teológica (Secunda Secundae, q. 113). Para o Doutor Angélico, no entanto, a ironia é aquela coisa “pela qual alguém finge ser menos do que é na realidade”. E ele distingue a ironia que respeita a Verdade daquela que A falseia; esta última é sempre pecado mas, a primeira, não é pecado em si. Parece-nos, todavia, que ainda não é bem este o sentido da palavra que nós estamos buscando.

Sejamos um pouco mais insistentes e mergulhemos com mais afinco nos escritos do Aquinate. Em outro lugar da Summa, falando sobre a “burla” (Secunda Secundae, q.75) e principalmente sobre a “contumélia” (Secunda Secundae, q. 72), encontramos Santo Tomás falando de algo que se assemelha mais àquilo sobre o qual estamos tratando; esta última, aliás, refere-se justamente às injúrias verbais e, salvo melhor juízo, a “ironia” que nós estamos procurando encaixa-se justamente aqui. Santo Tomás nos ensina que “nos pecados de palavras parece que deve considerar-se, sobretudo, com que intenção se pronunciam as palavras. (…) [S]e alguém pronuncia palavras de insulto ou de contumélia contra outro, mas sem intenção de desonrá-lo, e sim para corrigi-lo ou por outro motivo similar, não profere um insulto ou contumélia formal e diretamente, senão acidental e materialmente. (…) Por isso, isto pode ser algumas vezes pecado venial e outras vezes nem sequer haver pecado” (II-IIae, q.72, a.2).

Isso nos explica melhor o sentido do parágrafo 2481 do Catecismo; a ironia que é pecado contra a Verdade é aquela “que visa depreciar alguém”, que é feita “de modo malévolo”. Se, ao contrário, for usada no meio dos embates apologéticos, com o intuito de defender a Verdade e condenar o erro, para desmascarar os sofismas levantados contra Deus e expôr ao ridículo os inimigos da Santa Igreja, então a ironia pode ser não apenas lícita como também meritória. E, desta boa aplicação da ironia, há abundantes exemplos na História da Igreja.

Uma das passagens bíblicas que melhor ilustra isso encontra-se no Primeiro Livro dos Reis. Elias fez um desafio aos profetas de Baal: tanto um quanto outros colocariam um novilho sobre uma pilha de lenha, e invocariam, estes Baal, aquele o Senhor. O Deus que respondesse seria o verdadeiro Deus. Os sacerdotes de Baal foram os primeiros a fazer a prova. Após gritarem pelo ídolo pagão durante a manhã inteira sem obterem resposta, Elias começou a zombar deles:

Sendo já meio-dia, Elias escarnecia-os, dizendo: Gritai com mais força, pois (seguramente!) ele é deus; mas estará entretido em alguma conversa, ou ocupado, ou em viagem, ou estará dormindo… e isso o acordará. [1Rs 18, 27]

E eles gritaram. “Mas não houve voz, nem resposta, nem sinal algum de atenção” (v. 29). Foi quando Elias preparou um altar, e invocou o nome do Senhor, e então “o fogo do Senhor baixou do céu e consumiu o holocausto, a lenha, as pedras, a poeira e até mesmo a água da valeta” (v. 38). Elias debochou duramente dos seguidores de Baal, expondo-os ao ridículo diante do povo de Israel; depois disso, clamou ao Senhor e foi escutado.

E os santos que se envolveram em polêmicas foram por muitas vezes ácidos e irônicos. Existe um escrito de São Jerônimo que, na minha opinião, todos os católicos deveriam ler e reler: trata-se do Tratado da Virgindade Perpétua da Santíssima Virgem. Foi uma polêmica que o santo travou com um herege chamado Helvídio, que negava a Virgindade de Maria Santíssima. Já nas primeiras linhas da obra, São Jerônimo deixa claro qual é o seu estilo:

1. Há algum tempo, recebi o pedido de alguns irmãos para responder a um panfleto escrito por um tal Helvídio. Demorei para fazê-lo, não porque fosse tarefa difícil defender a verdade e refutar um ignorante sem cultura, que dificilmente tomou contato com os primeiros graus do saber, mas porque fiquei preocupado em oferecer uma resposta digna, que desmoronasse os seus argumentos.

Havia ainda a preocupação de que um discípulo confuso (o único sujeito do mundo que se considera clérigo e leigo; único também, como se diz, que pensa que a eloquência consiste na tagarelice, e que falar mal de alguém torna o testemunho de boa fé) poderia passar a blasfemar ainda mais, caso lhe fosse dada outra oportunidade para discutir. Ele, então, como se estivesse sobre um pedestal, passaria a espalhar suas opiniões em todos os lugares.

Também temia que, quando caísse na realidade, passasse a atacar seus adversários de forma ainda mais ofensiva.

Mas, mesmo que eu achasse justos todos esses motivos para guardar silêncio, muito mais justamente deixaram de me influenciar a partir do instante em que um escândalo foi instaurado entre os irmãos, que passaram a acreditar nesse falatório. O machado do Evangelho deve agora cortar pela raiz essa árvore estéril, e tanto ela quanto suas folhagens sem frutos devem ser atiradas no fogo, de tal maneira que Helvídio – que jamais aprendeu a falar – possa aprender, finalmente, a controlar a sua língua.

Não é um exemplo isolado. De muitos que poderiam ser citados, também Santo Ireneu, quando atacava os gnósticos do seu tempo, não tinha melindres sentimentalistas e lançava-se com ardor à batalha que precisava travar para defender a Sã Doutrina:

Vejamos agora as inconstantes doutrinas deles [dos gnósticos]. São duas ou três, e como falam de forma diferente sobre as mesmas coisas e, servindo-se de nomes iguais, indicam objetos diferentes.

[…]

Outro ilustre mestre deles, dotado de gnose mais sublime e profunda, expõe assim a primeira Tétrada: existe, antes de todas as coisas, um Pró-princípio pró-ininteligível, inexprimível e inominável que chamo Unicidade. Com ele está uma Potência que chamo Unidade. Estas, Unicidade e Unidade, que são uma coisa só, emitiram, sem emitir, um Princípio inteligível, ingênito e invisível, ao qual dou o nome de Mônada. Com esta Mônada está uma Potência da mesma substância, que chamo Um. Estas Potências, isto é, Unicidade e Unidade, Mônada e Um emitiram os restantes Eões.

Ha! he! ah! ah! Valem estas exclamações trágicas diante desta audácia em inventar nomes e aplicá-los despudoradamente a esta mentirosa invenção. Com efeito, quando diz: Existe antes de todas as coisas um Pró-princípio pró-ininteligível que chamo Unicidade e com ele está uma Potência que chamo Unidade, mostra claramente que são ficção todas as palavras que pronunciou e que deu a estas ficções nomes que ninguém antes dele lhes deu. Se não tivesse esta ousadia, segundo ele, ainda hoje a verdade estaria sem nome. Por isso, nada impede que outro qualquer, ao tratar deste assunto, use estes nomes: Existe certo Pró-princípio soberano pró-esvaziado-de-inteligibilidade, pró-esvaziado-de-substância e Potência pró-pró-dotada-de-esfericidade, que chamo Abóbora. Junto com esta Abóbora coexiste uma Potência que chamo Super-vacuidade. A Abóbora e a Super-Vacuidade, sendo um só, emitiram sem emitir um Fruto visível de qualquer lugar, comestível e saboroso, ao qual dou o nome de Pepino. Junto com este Pepino existe uma Potência da mesma substância, que chamo Melão. Estas Potências, isto é, Abóbora e Super-vacuidade, Pepino e Melão emitiram a multidão restante dos Melões delirantes de Valentim. Com efeito, se é necessário ajustar a fala comum à primeira Tétrada e se cada um escolhe os nomes que quer, o que impede usar estes nomes muito mais inteligíveis, usuais e conhecidos de todos?
[Santo Ireneu, Contra as Heresias, Livro I, Parte II, 11,1-11,4]

Ora, se os santos – que nos são propostos pela Igreja como modelos de virtude – souberam atacar virulentamente os inimigos da Igreja, como poderemos sustentar que a ironia seja algo de mau em si? Como pode a ironia ser contra a caridade, se tantas pessoas piedosas e tementes a Deus souberam utilizá-la tão bem? Na verdade, o bom católico não tem o sentimentalismo piegas que parece ser característica dos nossos dias. O verdadeiro católico é um soldado de Cristo, é uma alma corajosa, dotada de fibra e de zelo na defesa da Fé e na exaltação da Igreja de Nosso Senhor. O bom católico sabe – à imitação dos santos – agir com dureza quando estão em jogo coisas importantes. O bom católico, como no lema de São Bento, ora et labora: reza, como na Ladainha de todos os Santos, a fim de que os inimigos da Igreja sejam humilhados (ut inimicos Sanctae Ecclesiae humiliare digneris – Te rogamus, audi nos!) e trabalha, com afinco, para que a Verdade triunfe sobre os erros e sejam desmascarados os inimigos de Deus. Inclusive utilizando-se da ironia, se necessário for, ad Majorem Dei Gloriam. Note-se que ninguém está obrigado a ser irônico; mas aqueles que souberem, quiserem e puderem sê-lo, não precisam ficar com escrúpulos de consciência. A ironia não é condenável em si mesma.

Obviamente, é necessário haver parcimônia; claro que a ironia pode por vezes degenerar em deboche grosseiro, em agressão gratuita, e pode se transformar sim em falta de caridade. Além do mais, o tom irônico não dispensa os argumentos, como é óbvio, sob a gravíssima pena de ser contraproducente. Mas – e isso é o mais importante aqui – nem toda ironia é falta de caridade, e é lícito empregá-la na defesa de Nosso Senhor. Que a Virgem Santíssima nos faça católicos de fibra; e que os santos nos ensinem a fugir do “politicamente correto”, sabendo reconhecer o valor e a importância de dedicar-se com zelo ao Bom Combate que todos nós somos chamados a travar.

Doutrina Católica Básica

Segue abaixo um pequeno conjunto de perguntas sobre Doutrina Católica básica, a fim de que o ensinamento da Igreja seja melhor conhecido nos dias de hoje, nos quais tantas pessoas se dizem católicas sem fazerem idéia do que isso significa realmente. As respostas católicas vão entre colchetes.

Sobre Deus: Deus existe? [sim] A existência de Deus pode ser conhecida naturalmente, ou exige a Fé? [pode ser conhecida naturalmente] Há um só Deus, ou há vários deuses? [há um só Deus] O Deus que existe é ao mesmo tempo Uno e Trino? [sim] Deus é Criador de todas as coisas que existem? [sim] De todos os homens também? [também] Deus é Deus de todos os povos? [sim] Existe “um deus para cada religião” (Allah para os muçulmanos, Krishna para os hindus, Tupã para os índios, etc), ou Deus é o Deus de todos? [Deus é o Deus de todos]

Sobre Jesus Cristo: Jesus Cristo é verdadeiro Deus? [sim] E Homem verdadeiro? [também] Jesus Cristo veio realmente a esta terra? [veio] Os Evangelhos são livros históricos ou dependem da “fé” de quem lê? [são livros históricos] Jesus Cristo fundou uma Igreja? [sim, fundou uma Igreja]

Sobre a Igreja: Jesus Cristo fundou uma única Igreja, ou várias? [uma única Igreja] Jesus Cristo é o Esposo Fiel que tem uma Única Igreja por Esposa, ou é um adúltero que tem “várias igrejas” – ou (pior ainda) várias religiões – por concubinas? [é o Esposo que tem uma Única Igreja por Esposa] A Igreja é infalível quando ensina sobre Fé e Moral? [é infalível] Todos fazem parte da Igreja, ou entra-se n’Ela pelo Batismo? [entra-se n’Ela pelo Batismo] Existe salvação fora da Igreja? [não] Fora das estruturas visíveis da Igreja, é possível pertencer “à alma” d’Ela e ser salvo?  [sim] Todos pertencem “à alma” da Igreja, ou é necessário para isso estar em Ignorância Invencível e ter ao menos implícito o Batismo de Desejo? [é necessário estar em Ignorância Invencível e ter ao menos implícito o Batismo de Desejo] Os não-católicos, portanto, salvam-se caso não estejam em Ignorância Invencível, ou caso não tenham pelo menos implicitamente o Batismo de Desejo? [não, os não-católicos não se salvam se não estiverem em Ignorância Invencível e não tiverem pelo menos implícito o Batismo de Desejo] Todas as pessoas, portanto, precisam conhecer a Igreja e segui-lA? [sim]

Sobre a Missa: a Missa é o Sacrifício de Cristo tornado presente em nossos altares, ou é uma reunião do povo de Deus, uma confraternização dos irmãos na Fé, uma festa para que os católicos se encontrem e vivam em comunidade, ou alguma outra coisa parecida? [é o Sacrifício de Cristo tornado presente em nossos altares] Na Eucaristia, Jesus Cristo está verdadeiramente presente em Corpo, Sangue, Alma e Divindade? [sim] Isso depende da Fé de quem celebra, da Fé de quem comunga, ou é assim em virtude do sacramento? [é assim em virtude do Sacramento] Os não-católicos podem comungar? [não] Quem está em pecado mortal pode comungar? [não] A missa é celebrada para o povo, ou para Deus em favor do povo? [para Deus em favor do povo] Existe Missa com o povo reunido, sem o padre? [não] Existe Missa só com o padre, sem o povo reunido? [sim]

Sobre assuntos diversos: é pecado mortal ter relações sexuais fora do casamento? [é] É pecado mortal usar métodos artificiais de controle de natalidade? [é] É pecado mortal abortar? [é] É pecado mortal deixar de assistir missa nos domingos sem que haja motivo grave? [é] A sodomia é pecado mortal e, ainda, um pecado contra a natureza? [sim] Católico pode defender o aborto? [não] Católico pode ser socialista? [não] Existe Purgatório? [sim] Existe inferno? [sim] O inferno é para sempre? [sim] Existe Satanás? [sim] As pessoas que morrem em pecado mortal sem arrependimento vão para o inferno? [vão] É necessário buscar o Sacramento da Confissão com um padre quando se comete um pecado mortal? [sim] Nossa Senhora é Mãe de Deus? [é] Nossa Senhora foi e é Virgem antes, durante e depois do parto? [sim, Ela foi e é Virgem antes, durante e depois do parto] Nossa Senhora nasceu com o Pecado Original? [não] Nossa Senhora foi assunta aos Céus em Corpo e Alma? [sim]

Há muitas outras perguntas que poderiam ser feitas, mas estas bastam por enquanto. Que possamos nos esforçar para sermos em tudo servos fiéis da Igreja, repetindo todos os dias com alegria: esta é a nossa Fé, que da Igreja recebemos, e sinceramente professamos!

In Dominico Agro

ENCÍCLICA
“IN DOMINICO AGRO”
DE CLEMENTE XIII

O PAPA CLEMENTE XIII

a seus Venerandos Irmãos, Patriarcas,
Primazes, Arcebispos e Bispos

Veneráveis Irmãos, saudação e bênção apostólica.

[I. O múnus pastoral exige, do Papa, vigilância…]

No campo do Senhor, cuja cultura nos cabe dirigir, pelo agrado da Divina Providência, nada requer tão atenta vigilância, nem tão zelosa perseverança, como a guarda da boa semente nele lançada; noutros termos, a guarda da doutrina católica que Jesus Cristo e os Apóstolos legaram e confiaram ao Nosso ministério.

Se por preguiça e incúria [Nossa], a sementeira ficasse abandonada, o inimigo do gênero humano poderia espalhar cizânia de permeio, enquanto os obreiros dormissem a bom dormir (Mt 13, 25). Por conseguinte, no dia da ceifa, mais erva haveria para queimar ao fogo, do que trigo para recolher nos celeiros.

Na verdade, o bem-aventurado Apóstolo Paulo exorta-nos, com instância, a guardarmos a fé que, uma vez por todas, foi confiada aos Santos (Iud 3). Escreve, pois, a Timóteo que guarde o bom depósito (2Tm 1, 14), porque instariam tempos perigosos (2Tm 3, 1ss), durante os quais haviam de erguer-se, na Igreja de Deus, homens maus e sedutores (2Tm 3, 1ss). Valendo-se de tal cooperação, o ardiloso tentador tudo faria por induzir os ânimos incautos em erros contrários à Verdade do Evangelho.

[e prudência]

Como muitas vezes acontece, na Igreja de Deus surgem perniciosas opiniões que, apesar de contrárias entre si, são concordes na tendência de abalar, de qualquer maneira, a pureza da fé.

Muito difícil será, então, brandir a palavra de tal forma, por entre um e outro adversário, que a nenhum deles pareça termos voltado as costas, mas antes repelido e condenado, da mesma maneira, ambos os grupos inimigos de Cristo.

Sucede também, algumas vezes, que a ilusão diabólica facilmente se oculta em erros disfarçados pelas aparências de verdade; como também um leve acréscimo ou troca de palavras corrompem o sentido da verdadeira doutrina. Assim é que a profissão de fé, em lugar de produzir a salvação, leva por vezes o homem à morte, em virtude de alguma alteração, que sutilmente lhe tenha sido feita.

[II. Finalidade do Catecismo Romano:]

Devemos, pois, afastar os fiéis, mormente os que forem de engenho mais rude ou simples, destes escabrosos e apertados atalhos, por onde mal se pode firmar em pé, nem andar sem perigo de queda.

Não devem as ovelhas ser levadas às pastagens por caminhos não trilhados. Por isso, não devemos expor-lhes opiniões singulares de doutores embora católicos, mas unicamente aquilo que tenha o sinal inequívoco, e certo de verdadeira doutrina católica, a saber: universalidade, antigüidade, consenso doutrinário.

[Expôr com sobriedade…]

Além do mais, como não pode o vulgo subir ao monte, do qual desce a glória do Senhor (Ex 19, 12), como vem a perecer, se para a ver ultrapassa certos limites – devem os guias e mestres marcar ao povo balizas para todos os lados, de sorte que a exposição da doutrina não vá além do que é necessário, ou sumamente útil para a salvação. Assim, os fiéis também obedecerão ao preceito do Apóstolo: “Não saibam mais do que convém saber, e sabê-lo com moderação” (Rm 12, 3).

[doutrinas seguras e práticas…]

Possuídos desta convicção, os Pontífices  Romanos, Nossos Predecessores, empregaram toda a energia não só para cortar, com o gládio da excomunhão, os venenosos germes do erro que às ocultas iam vingando; mas também para cercear a expansão de algumas opiniões que, pela sua redundância, impediam o povo cristão de tirar da fé frutos mais copiosos; ou que, pela parentela com o erro, podiam ser nocivas às almas dos fiéis.

Depois de condenar, por conseguinte, as heresias que, naquela época, tentavam ofuscar a luz da Igreja; depois de assim dispersar as nuvens dos erros, o Concílio Tridentino fez rebrilhar, com mais fulgor, a verdade católica.

Como julgassem que aquela Santa Assembléia da Igreja Universal usara de tanta prudência e moderação, abstendo-se até de reprovar opiniões, que por si tivessem a autoridade de doutores eclesiásticos, quiseram os Nossos mesmos Predecessores que outra obra fosse feita, segundo a mente do mesmo Sagrado Concílio, abrangendo toda a doutrina necessária à instrução dos fiéis, mas de maneira absolutamente livre de qualquer erro.

Eis o motivo de terem publicado o presente livro, com o título de “C a t e c i s m o   R o m a n o”. Empresa que acarreta louvor, sob dois pontos de vista.

Por um lado, reuniram no Catecismo a doutrina, que é comum na Igreja, e isenta de qualquer perigo de erro. Por outro, determinaram expressamente que esta mesma doutrina serviria para a instrução pública do povo. Obedeciam ao preceito de Cristo Nosso Senhor, que aos Apóstolos mandou “dissessem às claras o que Ele próprio lhes dissera nas trevas; e dos telhados apregoassem o que ao ouvido tinham escutado” (Mt 10, 27).

Obedeceram, também, à vontade de sua esposa a Igreja que clama: “Mostra-me, onde descansas ao meio-dia” (Ct 1, 6). Onde não for meio-dia, e não houver luz tão clara, que se distinga perfeitamente a verdade, fácil será que por ela se tome uma falsa doutrina, na aparência de verdadeira. Na obscuridade, dificilmente se logra distinguir uma da outra.

Sabiam, pois, Nossos Predecessores que já houve, e futuramente sempre haveria homens, que procuram atrair a si as ovelhas, e lhes prometem pastagens mais ricas de sabedoria e ciência; e que muitos haveriam de segui-los, porquanto as águas furtivas são mais doces, e o pão escondido mais suava (Pr 9, 17).

[Limitadas aos pontos essenciais]

Assim, para evitar que a Igreja, vítima de tal sedução, fosse em pós os rebanhos de companheiros (Ct 1, 6) igualmente desnorteados, que não se apóiam em nenhuma certeza da verdade, que “sempre aprendem, sem nunca chegarem ao conhecimento da verdade” (2Tm 3, 7), os Papas mandaram expor no Catecismo Romano, de maneira clara e luminosa, somente as verdades necessárias, ou as mais proveitosas para a salvação, as que devem ser explicadas à Cristandade.

[III. Nova edição:
1. Ensejo]

Este livro, porém, feito com muito esforço e trabalho, aprovado por consenso geral, acolhido com os maiores aplausos, caiu por assim dizer das mãos dos pastores, graças ao amor de inovações que, em nossos dias, enaltece vários e diversos Catecismos, que de modo algum podem comparar-se com o Romano.

Desse fato resultaram dois males. O primeiro foi de quase se destruir a uniformidade no modo de ensinar. Isto causou certo escândalo aos espíritos fracos, que já não pareciam viver em país de uma só boca (Gn 11, 1), ou da mesma linguagem.

Da divergência, que há nos métodos, de expor a doutrina católica, nasceu o segundo mal, que são as contendas. E da porfia com que um se desvanece de seguir a Apolo, outro a Cefas, aquele outro a Paulo (1Cor 1, 12), surgiram separações de ânimos e grandes discórdias. A nosso entender, a crueza de tais lutas é o que há de pior, para atalhar a glória de Deus, o que há de mais fulminante, para destruir os frutos, que os fiéis deveriam tirar da disciplina cristã.

[2. Finalidade]

No intento de remover, finalmente, estes dois males da Igreja, julgamos, pois, necessário que se tornasse à fonte, da qual apartaram, desde muito, o povo fiel; uns por falta de prudência, outros por soberba, a fim de se vangloriarem de maior sabedoria, no seio da Igreja.

Portanto, houvemos por bem entregar outra vez aos pastores das almas o mesmo Catecismo Romano, pelo qual a fé católica tomara nova vida anteriormente, e os corações dos fiéis se consolidaram nos ensinamentos da Igreja, coluna e firmeza da verdade (1Tm 3, 15). Da mesma maneira, sejam agora os fiéis preservados, o mais possível, de novas opiniões, não abonadas pelo consenso comum, nem pela antigüidade.

Para facilitar a aquisição deste livro, e para emendá-lo dos erros, que se haviam introduzido por descuido dos tipógrafos, mandamos fazer em Roma esmerada reimpressão, conforme o exemplar da edição que Pio V, Nosso Predecessor, promulgara em virtude do decreto baixado pelo Concílio Tridentino. A tradução em língua vulgar, feita e editada por ordem do mesmo São Pio, será agora reimpressa e lançada à publicidade, por iniciativa Nossa (nota: É a tradução autêntica de Figliucci).

[3. Exortação aos bispos]

Nestes tempos tão difíceis para a cristandade, nós oferecemos assim, com toda a solicitude, um meio eficacíssimo de remover os enganos de falsas opiniões, de propagar e consolidar a doutrina sã e verdadeira. A vós pertence agora, veneráveis Irmãos, fazer que o livro tenha boa acolhida entre os fiéis. Quiseram os Pontífices Romanos fosse ele proposto aos párocos, a fim de se manter uma unidade geral no método de ensinar.

Portanto, muito vos recomendamos, veneráveis Irmãos, e encarecidamente vos exortamos no Senhor a que mandeis usá-lo, na explicação da doutrina católica, todos os que se ocupam com o ministério das almas, a fim de conservarem não só a unidade de método, como também o amor e a concórdia nos corações. Sendo estas afinal as suas atribuições, deve o Bispo, por isso mesmo, tomar tento que se não ensoberbeça de suas honras, e venha a provocar cismas, e a romper os vínculos da unidade.

[IV. Condições para o uso salutar:
1. Ciência e humildade]

Nenhum, todavia, ou minguado proveito traria este livro, se menos hábeis fossem para ensinar, os que devem propô-lo e explicá-lo.

Muito vai, portanto, que para o cargo de ensinar escolhais homens, não só instruídos nas ciências sagradas, mas sobretudo humildes, e ardentes de zeloso amor pela santificação das almas.

Não é, pois, em catadupas de palavras, nem na agudeza de controvérsias, nem na ambição de louvor e glória, que consiste toda a ciência cristã, mas em verdadeira e voluntária humildade (Leo M. sermo 37 in Epiph. c 3.).

[2. caridade]

Existem pessoas a quem uma ciência mais profunda engrandece, ao mesmo tempo que as separa do convívio dos outros. Tanto mais sabem, tanto mais ignoram tais pessoas a virtude da concórdia. Cabe-lhes, pois, a admoestação da própria Sabedoria Divina: “Tende sal em vós, e entre vós conservai a paz!” (Mc 9, 49) Devemos possuir o sal da sabedoria, de maneira que sua força nos faça guardar o amor ao próximo e suportar-lhe (nota: Em latim é mais expressivo: infirmitates condiantur) as fraquezas.

[3. espírito de concórdia]

Se largarem, porém, o desejo de sabedoria e edificação do próximo, e passarem a promover discórdias, essas pessoas terão sal sem paz. Nisso não vai dom de virtude, mas um sinal de condenação.

Quanto mais instruídas forem, tanto maior será também o seu pecado. Certamente que as condena esta palavra de São Tiago: “Se, todavia, abrigais no coração um ciúme desabrido e o espírito de contenda, não vos glorieis nem mintais, em contradição com a verdade. Não é, pois, esta a sabedoria que desce do céu, mas é terrena, sensual, diabólica. Pois onde reina ciúme e discórdia, aí há desordem e toda sorte de maldade. No entanto, a sabedoria que vem do céu, é em primeiro lugar pudica, depois pacífica, modesta, dócil, acessível ao bem, cheia de compaixão e de bons frutos, não faz juízos, não é invejosa” (Tg 3, 14).

[V. Súplica e bênção do Papa]

Rogamos a Deus, na humildade de Nosso coração e na angústia de Nosso espírito, que aos esforços de Nosso zelo e diligência advenha a largueza de Sua graça e misericórdia, a fim de que não surja nenhuma desavença a perturbar o povo cristão, mas que antes, em vínculo de paz e em espírito de caridade, todos nós unicamente conheçamos, unicamente louvemos e glorifiquemos a Jesus Cristo, nosso Deus e Senhor. Com este desejo é que vos saudamos num ósculo santo, veneráveis Irmãos, e com a maior afeição vos concedemos a Bênção Apostólica, a vós e a todos os fiéis de vossas igrejas.

Dado e passado no Castelo Gandolfo, aos 14 de junho de 1761, no terceiro ano de Nosso Pontificado.

[Clemente XIII,
in “Catecismo Romano”,
“Nova Versão Portuguesa baseada na edição autêntica de 1566”
Aliança Missionária Eucarística Mariana
]