O que existe de «comunismo» no Ocidente contemporâneo

Impressiona, por vezes, a dificuldade que têm as pessoas – mesmo as bem-intencionadas… – em entender o porquê de ser o comunismo uma doutrina condenada pela Igreja ou mesmo de identificar traços comunistas na sociedade em que hoje vivemos. São dois problemas: por um lado, muitos parecem incapazes de reconhecer o comunismo que se lhes antolha; por outro lado, do comunismo sobre o qual ouvem falar como de a uma coisa distante, muitos não conseguem emitir um juízo de reprovação.

Penso que os dois problemas estão intimamente relacionados: é porque pintam com cores muito carregadas o comunismo, a fim de incutir horror a respeito dele, que as pessoas não o conseguem enxergar na política contemporânea; e é porque mitigam-lhe o alcance em um sem-número de aspectos, a fim de o adequar à realidade contemporânea, que as pessoas não conseguem emitir sobre ele o juízo de reprovação que seria esperado…

Parece fundamental esclarecer algumas coisas. E a primeira coisa que precisa ficar clara parece ser a seguinte: o comunismo contemporâneo, de matriz gramsciana, não é imediatamente identificável com a doutrina fulminada pela Quadragesimo Anno. Isso – atenção! – não implica em dizer que o atual estado de coisas é catolicamente aceitável; mas, até mesmo para que consigamos conversar com os nossos interlocutores, é necessário reconhecer que há diferenças – e diferenças à primeira vista deveras relevantes – entre o passado e o presente.

Em 1931, Pio XI dedicou alguns parágrafos da sua encíclica para falar sobre a «evolução do socialismo». O horizonte histórico do Soberano Pontífice, naturalmente, abrangia o intervalo de tempo compreendido entre a publicação da Rerum Novarum – 1891 – e a data em que ele escrevia a Quadragesimo Anno. E, já então, o Papa se sentia autorizado a dizer que «[g]randes foram as transformações, que desde os tempos de Leão XIII sofreram tanto a economia, como o socialismo»…! Que se dirá, então, das transformações ocorridas nesses mais de oitenta anos que nos separam do Magistério de Pio XI? Ora, se num tempo em que as mudanças ocorriam com relativa lentidão um Papa julgou oportuno assinalar as «grandes (…) transformações» sofridas pelo socialismo, que metamorfoses não precisaríamos apontar, hoje, em pleno século XXI, quando tudo parece transmudar-se tão vertiginosamente que não se consegue sequer acompanhar?

O mesmo trabalho sistematizador de Pio XI, no entanto, o seu sucessor não julgou oportuno realizar. Na Centesimus Annus, escrita seis décadas depois, S. João Paulo II não traçou a evolução do socialismo até os seus dias. Ao invés de julgar o acerto ou o equívoco dessa escolha, contudo, parece (muito!) mais relevante atentar para aquilo que o documento traz de propositivo. E penso que um dos seus pontos-chaves encontra-se no número 13, quando o Papa vai falar do erro fundamental do socialismo, de onde peço licença para uma citação um pouco longa:

[O] erro fundamental do socialismo é de carácter antropológico. De facto, ele considera cada homem simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente subordinado ao funcionamento do mecanismo económico-social, enquanto, por outro lado, defende que esse mesmo bem se pode realizar prescindindo da livre opção, da sua única e exclusiva decisão responsável em face do bem ou do mal. O homem é reduzido a uma série de relações sociais, e desaparece o conceito de pessoa como sujeito autónomo de decisão moral, que constrói, através dessa decisão, o ordenamento social. Desta errada concepção da pessoa, deriva a distorção do direito, que define o âmbito do exercício da liberdade, bem como a oposição à propriedade privada. O homem, de facto, privado de algo que possa «dizer seu» e da possibilidade de ganhar com que viver por sua iniciativa, acaba por depender da máquina social e daqueles que a controlam, o que lhe torna muito mais difícil reconhecer a sua dignidade de pessoa e impede o caminho para a constituição de uma autêntica comunidade humana.

Pelo contrário, da concepção cristã da pessoa segue-se necessariamente uma justa visão da sociedade. Segundo a Rerum novarum e toda a doutrina social da Igreja, a sociabilidade do homem não se esgota no Estado, mas realiza-se em diversos aglomerados intermédios, desde a família até aos grupos económicos, sociais, políticos e culturais, os quais, provenientes da própria natureza humana, estão dotados — subordinando-se sempre ao bem comum — da sua própria autonomia. É o que designei de «subjectividade» da sociedade, que foi anulada pelo «socialismo real».

Ao invés de assinalar o «socialismo» historicamente existente, o Papa vai mais fundo e oferece uma definição do que existe de condenável no socialismo. A mudança de abordagem é notória. E ela nos autoriza algumas conclusões:

1. O fenômeno histórico «socialismo» é susceptível de profundas transformações no decurso da história, tendo se apresentado, ao longo do tempo, sob roupagens as mais diversas.

2. O seu «erro fundamental», no entanto, é de caráter antropológico. Significa que o que existe de comum entre os diversos “socialismos” historicamente existentes – e poderíamos até mesmo dizer, por que não?, teoricamente possíveis – é uma determinada concepção a respeito do homem: a de que ele não passa de uma «molécula do organismo social», a ele subordinada, somente em referência ao qual o homem pode se afirmar.

3. Isso significa também – é o mais importante! – que a identidade diacrônica do socialismo não advém de uma unidade política, de um concurso de atores, de uma continuidade de escola de pensamento à qual explicitamente se vinculam acadêmicos, nem nada do tipo. O que faz o socialismo ser socialismo é um determinado erro antropológico. Portanto, ainda na hipótese de que pessoas distintas, separadas no tempo e no espaço, chegassem, por meio distintos e totalmente independentes entre si, a conclusões antropológicas redutíveis àquela visão do homem enquanto “molécula do organismo social”, então a mesma censura que se aplica ao «socialismo» seria aplicável, igualmente, a todas essas pessoas, por mais que elas aparentemente nada tenham que ver umas com as outras.

Ora, é muito difícil demonstrar (v.g.) que o lulo-petismo obedece a instruções de Moscou, que Barack Obama é subserviente aos interesses da KGB ou que o neoconstitucionalismo latino-americano é controlado diretamente de Havana pelos herdeiros da família Castro. Tais elucubrações, no entanto, são totalmente desnecessárias para que se reconheça um determinado traço comum a todos esses fenômenos, que não é de ordem política e nem estratégica mas sim conceitual; e para que se possa, a partir dessa identificação, rejeitar essas concepções políticas como equivocadas e incompatíveis com a visão de «homem» esposada pelo Catolicismo. Nem todo erro exige uma enorme conspiração por trás. E não é por não haver conspiração que o erro fica afastado.

O que torna o comunismo condenável não é apenas a sua insistência em perpetrar genocídios, mas sim a sua visão utópica quer do homem, quer da realidade social. E o que existe de socialista nos regimes políticos latino-americanos hodiernos não é meramente uma gradativa concentração de poderes e correspondente cerceamento de liberdades individuais, mas sim certa concepção de «sociedade» somente em função da qual deve ser dado espaço ao homem para existir. Vistas as coisas dessa maneira, talvez nos seja possível, afinal!, contornar as dificuldades apresentadas no início deste texto. E se, retratada agora com estas características, talvez haja discordâncias a respeito da valoração que merece tal visão de mundo, quiçá consigamos nos pôr de acordo ao menos quanto à situação de fato da existência e predominância desta concepção social. Já será um grande avanço.