A história ainda não terminou (RIP Norma McCorvey)

Não encontrei quase nenhuma repercussão na mídia nacional (em G1 há uma lacônica nota), mas faleceu no último sábado a americana Norma McCorvey, mais conhecida como Jane Roe — sim, a Roe de “Roe v. Wade”. Tinha 69 anos e foi vítima de insuficiência cardíaca (The Washington Post, BBC).

Roe v. Wade é provavelmente a maior fraude jurídica jamais realizada: em 22 de janeiro de 1973 a Suprema Corte americana legalizou o aborto nos Estados Unidos com base em uma mentira. Poucos anos antes, “Jane Roe” — que estava grávida — declarou ter sido estuprada e reclamou na Justiça o direito de abortar a criança; a decisão só veio em 73 (e Roe teve a sua filha e a entregou para adoção), mas terminou por conferir às mulheres um vergonhoso e infame «direito absoluto ao aborto» que, conquanto fosse inicialmente circunscrito ao primeiro trimestre, historicamente justificou até mesmo os partial-birth abortions que ainda hoje mancham o solo americano.

Posteriormente a própria Norma McCorvey denunciou a farsa. Em 1998 ela se converteu ao Catolicismo e, desde então, dedicou a sua vida à causa antiaborto. Ela escreveu uma autobiografia (Won by love, em ebook ou em formato impresso) que eu tenho muita vontade de ler — está na minha lista. Mas de todo modo o ponto central da celeuma é amplamente conhecido: há quarenta anos, duas advogadas feministas se aproveitaram de uma jovem confusa que, mediante uma falsa alegação de estupro, terminou sendo responsável pela legalização do aborto nos Estados Unidos. Ou seja, não apenas a decisão judicial extrapolou — em muito! — os contornos do drama de Jane Roe como a própria violência então alegada era uma mentira.

«Vou carregar este fardo para o meu túmulo», disse Norma em 2012. Infelizmente ela não conseguiu ver em vida a revogação do precedente que, de certa forma, carrega o seu nome: a infame decisão judicial continua em vigor, ceifando a cada ano centenas de milhares de vidas de crianças inocentes só nos Estados Unidos. Não foram «milhares de abortos (…) feitos legalmente no país» desde Roe v. Wade, como G1 reproduziu; na verdade o número já chega perto dos 60 milhões. É o maior assassinato em massa de que se tem notícia, ocorrendo sob o olhar indiferente de duas gerações. É um morticínio ao qual urge pôr fim.

As taxas de aborto nos Estados Unidos são, nos últimos anos, cada vez menores — porque a absurda propaganda pró-aborto é cada vez mais ineficiente em um mundo onde o acesso à informação é cada vez maior. As pessoas têm cada vez mais consciência de que a criança não-nascida é um ser humano como elas próprias e que, portanto, o seu direito à vida não pode ser relativizado em favor da “liberdade de escolha” da mulher. Fala-se que nenhuma mulher pode ser obrigada a ser mãe, coisa com a qual todo mundo está de acordo; mas acontece que  a mulher grávida já é mãe e o que se discute é se ela tem ou não direito de vida e morte sobre o filho que carrega no ventre. É estarrecedor que, vinte séculos depois, o nefasto vitae necisque potestas que o paterfamilias romano detinha sobre os seus filhos seja ressuscitado sob a égide do barbarismo feminista. Há certas idéias que não merecem cidadania em uma sociedade civilizada; ninguém deveria aceitar discutir, por exemplo, se os negros podem ou não ser escravizados, ou se os ordenamentos jurídicos nacionais deveriam ou não proteger minorias étnicas do genocídio em seu território. Se isso é assim — e é bom que seja assim –, por que misteriosa razão deveríamos conceder aos propugnadores do crime horrendo do aborto a deferência que com toda a justiça negamos a outros tipos de assassinos?

A mera objeção de consciência não é suficiente; diante de uma injustiça clamorosa — lembremo-nos, o homicídio voluntário é pecado que clama aos Céus vingança — não é suficiente abstermo-nos de a realizar. É necessário combater incansavelmente para que o mal seja erradicado, se não do mundo dos fatos, ao menos do horizonte moral da sociedade: é impossível fazer com que os crimes deixem de ser cometidos, mas é possível e necessário batalhar para que, diante de qualquer crime, a reação pública do corpo social seja da mais taxativa reprovação. A sociedade mais avançada não é aquela onde ocorrem menos crimes, mas sim aquela onde os crimes são mais veementemente reprovados. Somente os juristas modernos são incapazes de entender isso.

No final do ano passado um comentarista político da Fox News surpreendeu ao afirmar que os Estados Unidos ainda agradeceriam à Igreja por sua posição contrária ao aborto. «A Igreja foi a única instituição que não recuou, apesar de ser ridicularizada, apesar das zombarias e dos ataques que sofreu». Contemplando ainda que com resistência o horror ao qual a depravação abortista já conduziu o mundo, Charles Krauthammer vaticinou que, um dia, «nós vamos agradecer à Igreja por ter reduzido os danos e impedido uma espécie de legalização radical, de recurso generalizado e radical ao aborto».

Norma McCorvey graças a Deus percebeu ainda em vida o mal que provocou na juventude; e a nós, os herdeiros da sua luta, cumpre não descansar enquanto o sonho dela não for realizado. Jane Roe, a militante pró-vida, partiu enquanto a Roe v. Wade ainda permanece neste mundo — e isso não deixa de nos provocar uma incômoda sensação de incompletude, como se a história tivesse terminado de forma trágica. Mas na verdade a história ainda não terminou. Que Nosso Senhor possa ter misericórdia de Norma e levar em consideração mais as suas lágrimas de penitência que o sangue das crianças mortas sob o nome dela; que a sua militância pró-vida dos últimos anos possa lhe valer o perdão dos pecados e o seu ingresso — o quanto antes! — no Reino dos Céus. E que, de lá, quando puder mais junto a Deus, ela enfim nos alcance o fim desta vergonha pelo qual batalhou até o último suspiro.

Requiem aeternam dona ea, Domine;
Et lux perpetua luceat ea.

Requiscat in pace.
Amen.