A entrevista do Superior Geral dos jesuítas: «reinterpretar» as palavras de Cristo?

A entrevista do novo superior geral dos jesuítas provocou estupor pela afirmação de que, no tocante ao acesso aos sacramentos dos divorciados recasados, seria necessário «reinterpretar Jesus». As perguntas do entrevistador são muito bem feitas e, as respostas, um verdadeiro show de horrores.

Primeiro o padre Arturo Sosa Abascal põe em dúvida a autoridade das Escrituras Sagradas ao afirmar que na época de Cristo “ninguém tinha um gravador” (!) para registrar o que Ele teria dito ou deixado de dizer. A afirmação é de uma grosseria sem tamanhos e esconde o pressuposto elíptico de que uma gravação poderia ser mais fidedigna que a infalível palavra de Deus, escrita pelos santos, reconhecida pelos doutores e chancelada pela Igreja ao longo dos séculos.

Que não existissem gravadores na Palestina da época de Cristo é de uma irrelevância sem tamanho e, a menção ao fato, de um materialismo que chega a assustar. A autoridade dos Evangelhos não repousa sobre o grau de confiabilidade do meio de registro (de modo que a gravação mediante um aparelho é sob certo aspecto mais exata que o relato feito de memória), mas sobre a chancela da Igreja de Cristo que é «coluna e sustentáculo da Verdade» (1Tm 3, 15). Nós não sabemos, é verdade, todas as palavras que foram proferidas por Nosso Senhor nesta terra; no entanto, as palavras que foram consignadas por escrito pelos Evangelistas, estas nós temos sim a certeza de que foram ditas — e uma certeza mais firme do que poderia ser proporcionada por qualquer extemporâneo meio de registro eletrônico.

Não existe esta divisão — de sabor kantiano — entre a palavra de Jesus e a interpretação da palavra de Jesus. Do jeito que o pe. Arturo fala, fica parecendo um formalismo inútil: é verdade que o que Jesus disse é verdadeiro, mas o que nós sabemos sobre o que Jesus disse pode estar errado… Ora, se não fosse possível a certeza a respeito da interpretação das palavras de Cristo então o Evangelho seria de todo inútil.

A Igreja existe precisamente para dizer qual a interpretação verdadeira das palavras de Cristo. É esta a Sua função precípua e espanta que um sacerdote — o superior de uma importantíssima ordem religiosa! — o pareça ignorar. É sem dúvidas necessário saber quais foram as palavras de Cristo, mas nós as sabemos e, além disso, sabemos qual a sua correta interpretação!

As palavras de Cristo são as que estão registradas na Vulgata: quod ergo Deus coniunxit homo non separet — o que Deus uniu, portanto, não separe o homem (Mt XIX, 6).

E a interpretação dessas palavras é a que está consignada, por exemplo, na XXIV sessão do Concílio de Trento:

977. Cân. 7. Se alguém disser que a Igreja erra quando ensinou e ensina que, segundo a doutrina evangélica e apostólica (Mc 10; l Cor 7), o vínculo do matrimonio não pode ser dissolvido pelo adultério dum dos cônjuges e que nenhum dos dois, nem mesmo o inocente que não deu motivo ao adultério, pode contrair outro matrimonio em vida do outro cônjuge, e que comete adultério tanto aquele que, repudiada a adúltera, casa com outra, como aquela que, abandonado o marido, casa com outro — seja excomungado.

Sim, o pe. Arturo tem total razão ao dizer que é preciso saber exatamente quais são as palavras de Cristo (que ninguém pode mudar), bem como o quê exatamente estas palavras significam. Isto é sem dúvidas muito necessário, e um sem-número de erros absurdos — como os que o próprio pe. Arturo insinua na sua entrevista — seriam evitados se se soubessem, com certeza, as palavras de Cristo e o que elas significam.

E a correta interpretação sobre qualquer ponto da Doutrina Católica — sobre as palavras do Evangelho inclusive — só a dá o Magistério da Igreja. E se é verdade que ninguém pode mudar a palavra de Cristo, é igualmente verdade, e pela mesma razão, que ninguém pode mudar o ensino do Magistérioqui vos audit me audit (Lc X, 16). «Quem vos ouve, a mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita; e quem me rejeita, rejeita aquele que me enviou». Absolutamente nada pode ser «reinterpretado» de modo a fugir disso.

A entrevista primeiro tentou lançar dúvidas sobre o registro escriturístico das palavras de Cristo; depois, procurou introduzir uma distinção entre as palavras de Cristo e a interpretação das palavras de Cristo. Tudo vão: nada disso tem lógica dentro do Catolicismo, porque i) a infalibilidade das Escrituras Sagradas nos garante que sabemos, sim, com certeza, o conteúdo do que Cristo disse e ii) a infalibilidade do Sagrado Magistério garante-nos saber, sem possibilidade de erro, o sentido do que Cristo quis dizer.

Resta, por fim, a questão do «discernimento». Acerta o sacerdote ao dizer — e ainda bem que o disse! — que «um verdadeiro discernimento não pode prescindir da doutrina». Repita-se isso quantas vezes forem necessárias: nenhum discernimento pode prescindir da doutrina da Igreja Católica e Apostólica: se o fizer será um falso discernimento! No entanto, ao final, o superior dos jesuítas afirma que o discernimento «pode chegar a conclusões distintas [das] da doutrina». Aqui é preciso ir com calma.

Pode, de ser metafisicamente possível, é claro que pode, porque o discernimento — como uma operação da razão prática — está sujeito ao erro. Agora, pode, de ser moralmente lícito, aí não, não pode, porque o verdadeiro discernimento é aquele que consiste em fazer a vontade de Deus. E a vontade de Deus não pode ser «distinta» do que está expresso na Doutrina que Ele próprio nos transmitiu, é evidente. A doutrina não é um substituto do discernimento como o bem moral não é sucedâneo do livre-arbítrio, mas da mesma forma que o livre-arbítrio só se exerce verdadeiramente na prática do bem, o discernimento só é legítimo estritamente dentro do espaço delimitado pela doutrina. Pecar não é exercitar a liberdade e, do mesmo modo, contrariar os ensinamentos de Deus não é discernir senão confundir.

Não faltou quem quisesse utilizar a entrevista do pe. Arturo Abascal como um subsídio para a interpretação da Amoris Laetitia — como se a Exortação Apostólica não dissesse, logo na primeira linha do célebre capítulo VIII, exatamente o contrário do que defende o pe. Abascal: «toda a ruptura do vínculo matrimonial «é contra a vontade de Deus (…)»» (AL 291)! Não há aqui nada que se «reinterpretar». Permanece válido — e não poderia ser diferente — o ensino católico em todo o seu fulgor: a homem algum é lícito tomar outra esposa, e a mulher nenhuma tomar outro marido, durante a vida do cônjuge verdadeiro. Qualquer «discernimento» possível de ser feito precisa levar isso em consideração, e ignorar esta verdade — sob o argumento de não se saber exatamente as palavras de Cristo, ou de haver dúvidas sobre o seu significado, ou ainda de que não se pode fazer a doutrina substituir a consciência moral, ou de qualquer outro — é servir ao Demônio e não a Deus.

Se não acreditamos nisso é porque não cremos na justificação

É falsa a oposição — hoje tão disseminada — entre verdade e caridade, ou entre doutrina e pastoral, que no fim das contas não passa de uma reedição da falsa dicotomia entre Fé e obras. O problema já fora resolvido há muito tempo, pelo menos desde o Concílio de Trento; mas o enxame de satanases, demônios e lucíferes do qual o nosso século está particularmente infestado sempre consegue semear a confusão e, por vias tortuosas, lograr que a dúvida espraie suas sombras por sobre o campo outrora plenamente iluminado pelas luzes do sol da verdade. Seria frustrante se não fosse este o lavor cristão quotidiano: repisar a cabeça da velha serpente sempre ávida por se levantar, combater os mesmos combates já vencidos pelos nossos antepassados. É assim que aprouve a Deus que nos santifiquemos, no fim das contas: cada geração precisa exorcizar — de novo e mais uma vez — os mesmos demônios que, no passado, os que nos precederam já precipitaram no Inferno. Satanás quer sempre ganhar o mundo e, nesta intenção, não cessa jamais de fazer as suas investidas: mas são sempre as mesmas, com os mesmos erros e as mesmas tentações, sempre e sem jamais mudar. Somente Nosso Senhor é Aquele que faz novas todas as coisas (Ap 21, 5); o Demônio está condenado a sempre insistir nas mesmas velharias já mil vezes vencidas.

Mas voltemos à verdade e à caridade. Todo o problema está exposto e resolvido na seção VI do Concílio de Trento, de janeiro de 1547: «na justificação é infundido no homem por Jesus Cristo, a quem está unido, ao mesmo tempo, tudo isto: fé, esperança e caridade» E isso é assim porque nem «a fé nem une perfeitamente com Cristo, nem faz membro vivo de seu corpo, se não se lhe ajuntarem a esperança e a caridade».

Não existe portanto «verdade» demais, ou «doutrina» demais, ou «Fé» demais. Não existe nada disso porque uma «verdade» que não conduza à prática da caridade é antes um engodo que uma verdade, e uma «doutrina» que afaste a prática do Cristianismo é no fundo uma falsa doutrina, e uma «Fé» à qual não se lhe sigam as boas obras do homem regenerado não é Fé verdadeira. Não existem essas oposições e elas não podem existir simplesmente porque é um só e o mesmo Deus o autor de ambas, da verdade como da caridade, da Fé como das obras. Não existem essas oposições porque, em suma, como diz o Concílio, a justificação faz infundir no homem «ao mesmo tempo tudo isso: fé, esperança e caridade».

E se não acreditamos nisso é porque não cremos na justificação. E se nela não cremos — se achamos realmente que a verdade pode ser um empecilho à caridade, que a doutrina pode afastar da prática dos ensinamentos de Cristo, que a Fé pode elidir a prática das boas obras –, se não cremos na justificação, eu dizia, então católicos não somos, então não precisamos (e aliás não podemos) nos dizer cristãos. Se nós achamos a sério que a caridade pode ser estimulada em oposição à verdade, ou que a pastoral pode ser vivida sem o supedâneo da doutrina, ou que as boas obras podem ser praticadas prescindindo da Fé Católica e Apostólica, então nós não somos católicos e sim naturalistas que não têm Fé, não guardam a Doutrina e estão distantes da Verdade. Se achamos isso então a nossa caridade não é sobrenatural, a nossa pastoral não é cristã e as nossas obras não são meritórias. E se é assim, então ai de nós.

É evidente que há católicos que não praticam a caridade com todas as suas exigências; mas tal se dá justamente porque eles não estão suficientemente convencidos da verdade de que há um mandamento da caridade a cujo cumprimento os cristãos não se podem furtar. Salta aos olhos que as nossas paróquias apresentam muitas vezes abordagens pastorais inadequadas; isso, contudo, acontece precisamente porque lhes falta a Doutrina de que o Evangelho precisa ser anunciado a toda criatura. Ninguém nega que o mundo esteja carente de boas obras cristãs; isso no entanto só acontece porque a Fé Cristã não é acreditada e vivida em toda a sua radicalidade. Em resumo, há problemas pastorais, há falta de caridade e há escassez de boas obras, claro que os há: mas tudo isso é fruto precisamente da má Doutrina, da falta de Fé e do afastamento da Verdade.

Se cremos na justificação, sabemos que as obras são fruto da Fé Católica, que a caridade constrange mediante a Verdade que é Cristo, que o anúncio do Evangelho é ponto central da Doutrina Cristã. E se é assim não podemos jamais pretender fomentar a caridade escondendo a verdade, multiplicar as obras ocultando a Fé, viver o Cristianismo prescindindo da doutrina — tudo isso é engodo e ilusão. As nossas obras não frutificam como as dos primeiros cristãos porque a nossa Fé já não reluz como a deles; a Igreja não cresce mais como nos tempos áureos da Igreja porque a nossa Doutrina não é mais tão límpida como já foi no passado; e a caridade já não transforma o mundo como antigamente porque, hoje, a Verdade não detém o mesmo lugar de honra que lhe reservavam os que nos precederam. O problema não é excesso senão falta de Fé; não é insistência na Verdade mas sim descaso para com ela; não é Doutrina demais, senão Doutrina de menos!

É preciso, portanto, coroar a Verdade para que a caridade reine no mundo. É preciso aumentar a Fé do povo cristão para que as boas obras espalhem o doce odor de Cristo pelo mundo. E é preciso que a Doutrina seja conhecida e mantida em toda a sua integridade a fim de que a Igreja expanda o Reino de Cristo até os confins da terra. Qualquer estratégia diferente dessa é loucura e desvario; qualquer abordagem que não leve em consideração os liames íntimos entre o que se crê e o que se vive não levará senão ao fracasso do apostolado e ao descrédito do Cristianismo.

O Papa Francisco e as diaconisas da Igreja

“O Papa se disse inclinado à possibilidade de promover pequenas mudanças na lei da Igreja, desde que – fez questão de afirmar – isso seja sempre o resultado de um discernimento profundo por parte das autoridades competentes.”

http://br.radiovaticana.va/news/2016/05/12/papa_n%C3%A3o_descarta_comiss%C3%A3o_para_estudar_diaconato_feminino/1229402

Gostaria que o teologozinho recifense explicasse isso.

Com muito gosto.

Historicamente já houve diaconisas na Igreja Católica. Este estudo da Comissão Teológica Internacional coloca-as, pujantes, no Oriente, até ao século VIII! No Ocidente, já em pleno século XIII, as abadessas são ainda chamadas diaconisas. O costume antigo é incontestável. No que, contudo, ele consistia exatamente?

É o próprio Papa Francisco quem o responde. Ao ser perguntado recentemente sobre o assunto, Sua Santidade disse se lembrar de que o papel das chamadas “diaconisas”, na Igreja Primitiva, era ajudar no batismo das mulheres: por uma questão de pudor, eram as diaconisas que faziam a imersão das mulheres durante o batismo, ou a unção de corpo inteiro que fazia parte do mesmo Sacramento. E ainda: quando uma mulher dizia ser espancada pelo marido, era uma diaconisa quem se encarregava de verificar-lhe os hematomas para relatar ao bispo.

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O que eram, portanto, essas “diaconisas”? O mais provável é que se tratasse de mulheres que pertenciam a uma espécie de ordem religiosa primitiva, especificamente voltada à prática de serviços litúrgicos auxiliares, que o pudor mandava não serem feitos por homens — como o ungir o corpo das catecúmenas ou segurar-lhes (e às suas vestes) durante a imersão do Batismo. Isso tanto é verdade que as diaconisas vão desaparecendo ao mesmo tempo em que desaparecem esses ritos: no segundo milênio, o título de “diaconisa” ainda conferido às abadessas é claramente um resquício de algo que já deixou de existir — e persiste então meramente como referência honorífica e analógica.

Foi isso que o Papa falou, e a leitura da história completa é muito útil para se prevenir contra os semeadores da confusão — que usam manchetes reducionistas para espalhar o escândalo entre o povo católico fiel. O Papa não está pensando em promover “pequenas mudanças na lei da Igreja” para reinstituir diaconisas (a frase entre aspas está em um outro momento da sua fala, que nada tem a ver com a questão histórica do diaconato das mulheres!), apenas se referiu ao assunto quando foi perguntado. Registre-se, aliás, que ele respondeu com um rigor e uma precisão muito maiores dos que os que costuma empregar em suas respostas improvisadas. Sob esse ponto de vista, portanto, não há nada que retocar aqui.

Aproveitemos, no entanto, a oportunidade para aprofundar um pouco mais o assunto, e façamos a pergunta que o Papa não fez, mas parece que o mundo está fazendo: será possível ordenar diaconisas?

Que não se possa ordenar mulheres para o presbiterato é já ponto pacífico, definido infalivelmente por São João Paulo II:

Portanto, para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (cfr Lc 22,32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja. (Ordinatio Sacerdotalis, 4).

Toda declaração dogmática precisa ser lida no interior dos seus limites. À primeira vista, portanto, a faculdade que a Igreja não tem, conforme S. João Paulo II, é a de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres (ordinationem sacerdotalem mulieribus conferendi), e não “qualquer” ordenação. Ou seja, a seguinte pergunta talvez se pudesse colocar: tudo bem que a Igreja não tenha a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres; mas e quanto aos diáconos, que, segundo a Lumen Gentium, recebem o sacramento «não em ordem ao sacerdócio mas ao ministério» (LG 29)? Também o serviço destes não se poderia conferir às mulheres? Tudo bem que não se lhes possa conferir ordenação sacerdotal; poder-se-ia, no entanto, conferir-lhes esta ordenação ministerial que é própria da diaconia?

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É engraçado como a questão, nestes termos, parece não ter sido anteriormente posta. A (já citada) Ordinatio Sacerdotalis versa sobre “a ordenação sacerdotal reservada somente aos homens”; a Inter Insigniores, da década de 70, igualmente apenas aborda “a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial”. Ora, é amplamente aceito que diácono não é sacerdote. Há, portanto, razão doutrinária para que não haja diaconisas?

O prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé entende que sim. Em entrevista publicada em 2002, Sua Eminência o Card. Müller disse o seguinte:

Q: É possível separar o diaconato de mulheres do sacerdócio das mulheres?

Müller: Não,  por causa da unidade do sacramento da Ordem, que foi sublinhada nas deliberações da Comissão Teológica; ela não pode ser medida com um critério diferente. Assim, seria uma discriminação real da mulher se ela fosse considerada como apta para o diaconato, mas não para o presbiterato ou episcopado.

A unidade do sacramento seria rasgada em sua raiz se o diaconato como ministério de serviço fosse contraposto ao presbiterato como ministério de governo, daí poderia se deduzir que a mulher, ao contrário do homem, tem uma maior afinidade para servir e por isso estaria apta para o diaconato, mas não para o presbiterato.

No entanto, o ministério apostólico é conjuntamente um ministério de serviço nos três graus em que ele é exercido.

Não vou me aprofundar nessa dicotomia entre serviço e governo (que, seguida, penso que poderia perfeitamente justificar o acesso das mulheres ao diaconato mas não ao presbiterato, em perfeita harmonia com a antropologia católica); em vez disso, penso que a referência à “unidade do sacramento da Ordem” é mais relevante aqui. Se existe um óbice doutrinário à ordenação de diaconisas, é na relação entre os três graus do Sacramento da Ordem que ele deve ser encontrado.

O diaconato é o primeiro grau do Sacramento da Ordem (cf. Lumen Gentium, 29, onde é dito que os diáconos são “fortalecidos com a graça sacramental”) e, embora exista como “degrau” autônomo desde o Vaticano II (que restabeleceu o diaconato permanente), consiste ainda assim em um caráter impresso vere et proprie pelo único Sacramento da Ordem que existe. O já referido estudo da Comissão Teológica Internacional conclui exatamente que a unidade deste Sacramento é um importante indicativo de que não se lhe possa conferir às mulheres nem mesmo sob o grau do diaconato; some-se a isso o fato de que as chamadas “diaconisas” na história da Igreja não guardavam paralelismo estrito com os diáconos, quer permanentes, quer transitórios, mas exerciam um serviço específico — oriundo de uma específica necessidade de ordem prática — que foi paulatinamente caindo em desuso e, hoje, não tem mais razão de ser.

Uma coisa, no entanto, é bastante curiosa aqui: se o diaconato não fosse um grau do Sacramento da Ordem, se fosse meramente uma função laical subalterna ao sacerdócio — como o acolitato e o leitorato –, então certamente não haveria nenhum problema (ao menos não de ordem doutrinária) para que fosse exercido por mulheres. Afinal, existem hoje, nas nossas missas, garotas no papel de coroinhas ou mulheres lendo as Epístolas; e isso, que se pode até chamar de altamente inconveniente, não recebe a pecha de herético nem mesmo pelos mais ferrenhos críticos das reformas pós-conciliares.

Se o diaconato não fosse um grau do Sacramento da Ordem, portanto, seria possível reinstituir o primitivo ministério das diaconisas como um serviço laical ao lado de tantos outros. Seria, aliás, até mais fácil explicar o fenômeno histórico: aquelas mulheres não foram nunca “ordenadas” e nem existe razão para se ter semelhante dúvida, porque o diaconato não importa ordenação. Resplandeceria com clareza a tradicional divisão católica entre o sacerdócio reservado aos homens e os serviços auxiliares do sacerdócio — entre os quais a diaconia — exercidos pelos cristãos leigos, quer homens, quer mulheres.

Mas o diaconato é um grau do Sacramento da Ordem… não é?

Quem disse? O Concílio de Trento não fechou a questão. Fala que a “hierarquia eclesiástica estabelecida por ordem de Deus (…) se compõe de bispos, presbíteros e ministros” (TrentoSessão XXIII (15-7-1563), 966 (Cân. 3)), mas inclui entre os ministros também o subdiácono, o acólito, o exorcista e o ostiário (id. ibid., 958 (Cap. 2)) — as chamadas ordens menores, as quais hoje ninguém considera como propriamente sacramentais. No séc. XVI S. Roberto Belarmino nos expõe o seguinte panorama:

R. Bellarmino ( 1621) descreve bem qual o status quaestionis nessa altura. Estabelece a sacramentalidade da ordem (vere ac proprie sacramentum novae legis) como princípio fundamental, admitido por todos os teólogos católicos e negado pelos heréticos (protestantes). Mais, no que respeita à sacramentalidade de cada uma das ordens, julga necessário fazer uma distinção, pois que, se há unanimidade quanto à sacramentalidade do presbiterado, ela não existe no respeitante ao conjunto das outras ordens.

Bellarmino declara-se claramente a favor da sacramentalidade do episcopado (ordinatio episcopalis sacramentum est vere ac proprie dictum), estando em desacordo com os antigos escolásticos que a negavam; e considera a sua afirmação uma assertio certissima, fundada na Escritura e na Tradição. Além disso, fala de um carácter episcopal distinto e superior ao carácter presbiteral.

Quanto à doutrina da sacramentalidade do diaconado, Bellarmino fê-la sua considerando-a muito provável; contudo, não a toma como uma certeza ex fide, pois não é possível deduzi-la com evidência nem da Escritura nem da Tradição nem de qualquer determinação explícita por parte da Igreja. (Comissão Teológica Internacional. “Diaconado – Evolução e perspectivas”. Cap. IV, III.)

Que o diaconato seja um Sacramento — i.e., seja realmente um grau da Ordem — não é possível, segundo S. Roberto Belarmino, deduzir “com evidência nem da Escritura nem da Tradição nem de qualquer determinação explícita por parte da Igreja”. Se hoje se afirma aberta e incontestavelmente que ele é, sim, um dos graus do Sacramento da Ordem, é majoritariamente por conta do Concílio Vaticano II, em cujos textos «(SC 86; LG 20, 28, 29, 41; OE 17; CD 15; DV 25; AG 15, 16) pressupõe-se a sacramentalidade das suas duas modalidades (permanente e transitório)» (CTI, op. cit., Cap. IV, IV.). Não deixa de ser irônico, portanto, que o maior obstáculo à ordenação de diaconisas seja precisamente… a teologia pós-conciliar.

Em resumo, assim,

  • o Papa Francisco, respondendo a uma pergunta, apresentou um escorço histórico bastante abrangente e fiel sobre a presença de “diaconisas” na Igreja Primitiva;
  • só é possível “ordenar” diaconisas: i) se o diaconato não pertencer ao Sacramento da Ordem ou ii) se se estiver falando em “ordenação” de maneira analógica e imprópria (esta é a explicação mais aceita para as “diaconisas” da Igreja primitiva);
  • se o diaconato for mesmo o primeiro grau do Sacramento da Ordem e se houver uma unidade intrínseca neste Sacramento — «[o] Catecismo de 1983, nos cânones 1008/9, integra os diáconos nos sacri ministri, os quais são habilitados pela sua consagração a apascentar o povo de Deus e a executar pro suo quisque gradu as funções de ensinar, santificar e governar in persona Christi Capitis» (CTI, op. cit., Cap. VII, III, 3) –, então a vedação da Ordinatio Sacerdotalis à ordenação feminina se aplica também ao diaconato;
  • esse aprofundamento do diaconato como grau sacramental é majoritariamente pós-conciliar; e
  • já houve uma “Comissão” que estudou detalhadamente o assunto: foi a CTI em 2002, no relatório citado, que a meu ver já atende aos anseios expressos por Sua Santidade quando abordou o tema.

É o que cabe falar sobre o assunto.

Mais sobre a comunhão na boca

Sempre foi prática na Igreja que os fiéis recebessem a Sagrada Comunhão do sacerdote, e diretamente na boca. Por exemplo, o Concílio de Trento disse que “sempre foi costume na Igreja de Deus receberem os leigos a comunhão das mãos do sacerdote”, e que “se deve conservar este costume como proveniente da Tradição apostólica” (Trento, Seção XIII, Cap. 8). E Santo Tomás de Aquino chega a dizer que nada que não seja consagrado pode tocar na Santíssima Eucaristia, e é por isso que os vasos sagrados são consagrados, como consagradas são as mãos do Sacerdote (cf. Summa, IIIa, q. 82, a. 3).

A comunhão de joelhos e na boca tem um riquíssimo significado catequético: os leigos recebem dos Sacerdotes o Corpo de Deus, i.e., recebem-No da Igreja, e não O pegam por si próprios; recebem-No de joelhos, na adoração que é devida ao Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor. Há um bom artigo sobre isto no site do Reino da Virgem.

A história  da mudança deste costume chega a ser surreal e seria tomada por inverossímil caso não tivesse acontecido. A Memoriale Domini, a instrução da Sagrada Congregação para o Culto Divino que permite a comunhão na mão, faz uma belíssima defesa da comunhão na boca e de joelhos. Entre outras passagens, pode-se citar:

Esse método de distribuição da Santa Comunhão [de joelhos, na boca] deve ser conservado, levando-se em consideração a situação atual da Igreja em todo o mundo, não apenas porque possui por trás de si muitos séculos de tradição, mas especialmente porque expressa a reverência do fiel pela Eucaristia.

[A] prática que deve ser considerada a tradicional assegura, mais efetivamente, que a Santa Comunhão seja distribuída com o devido respeito, decoro e dignidade.

Este documento traz uma coisa curiosíssima: foi feita uma consulta “a todos os Bispos da Igreja Latina [sobre] se era oportuno introduzir esse ritual [da comunhão na mão]”. O resultado?

Sim: 597
Não: 1.233
Sim, mas com reservas: 315
Votos inválidos: 20

A partir daqui, as coisas ficam surreais: após a consulta – diz o documento -, “fica claro que a vasta maioria dos Bispos crê que a disciplina atual não deve ser modificada, e caso viesse, que a mudança seria ofensiva aos sentimentos e à cultura espiritual desses Bispos e de muitos dos fiéis”. E então “o Santo Padre decidiu não modificar a maneira existente de administrar a Santa Comunhão aos fiéis”.

No entanto, após tudo isso, numa conclusão que sinceramente vai de encontro a tudo que tinha sido dito até então, termina a Memoriale Domini: “Onde um uso contrário, o de colocar a Santa Comunhão nas mãos, prevalecer, a Santa Sé – desejando ajudá-las a cumprir sua tarefa, muitas vezes árdua, como nos dias atuais – deixa às Conferências a tarefa de avaliar cuidadosamente qualquer circunstância especial que possa existir, tomando o cuidado de evitar todo risco de falta de respeito ou de falsa opinião com relação à Sagrada Comunhão, e de evitar quaisquer outros efeitos maléficos que possam se seguir”.

E a decisão foi entregue às Conferências Episcopais. E elas conseguiram sufocar a clara voz dos bispos que se tinham levantado contra a introdução deste costume. E a comunhão na mão foi universalizada, minando a piedade eucarística das almas dos fiéis, fazendo com que se concretizassem os temores dos bispos que foram consultados no final da década de 60. E a fumaça de Satanás entrou na Igreja. E o Demônio riu-se no Inferno.

Antes que me entendam mal: faz já quarenta anos, o estrago já foi feito, os católicos mudaram muito desde então, as normas atuais da Igreja permitem que se receba a Comunhão Eucarística nas mãos e, portanto, é perfeitamente lícito ao fiel comungar na mão; ele não comete nenhuma blasfêmia ou sacrilégio se o fizer. Não é esse o ponto; não se trata de dizer às pessoas que elas não podem comungar na mão, porque podem, é a Igreja que o autoriza. É uma questão de defender e promover a forma tradicional de se receber a Eucaristia na Santa Missa. Porque, sinceramente, olhando para o passado e para os dias de hoje, não posso deixar de considerar a urgência de se resgatar o costume tradicional de se receber a comunhão eucarística.