Orígenes, a reencarnação e a Igreja Primitiva

Foi recentemente comentada aqui no Deus lo Vult! uma suposta aprovação do Cristianismo nascente à falsa teoria da Reencarnação nos moldes em que é apregoada pelo espiritismo dos nossos dias. Como já tive a oportunidade de me deparar anteriormente com a afirmação descabida, gostaria de esclarecer quanto segue:

1. O Concílio ao qual se deseja fazer referência é o Segundo Concílio de Constantinopla, ocorrido em 553.

2. Mais especificamente, o cânon sobre o qual se está falando é o 11, que diz [apud “Documentos dos primeiros oito concílios ecumênicos – Tradução de Mons. Otto Skrzypczak”, p. 78; EDIPUCRS, Porto Alegre, 2000] o seguinte:

Cân. 11: Se alguém não declarar anátema a Ário, Eunômio, Macedônio, Apolinário, Nestório, Êutiques e Orígenes com seus ímpios escritos, bem como os demais hereges, que foram condenados e declarados anátemas pela Santa Igreja Católica e Apostólica e pelos quatro sagrados concílios citados anteriormente e outrossim os que professaram ou professam opiniões semelhantes às dos mencionados hereges e persistiram em sua impiedade até o fim, – um tal seja anátema.

3. O texto de Orígenes ao qual os espíritas gostam de fazer referência é o De Principiis [mais especificamente, o livro III, Cap. III, 5], que traduzo:

Em todo caso, aqueles que sustentam que tudo no mundo está sob a administração da Divina Providência (como também nós acreditamos) não pode, ao que me parece, dar nenhuma outra resposta que não esta: não há sombra de injustiça no governo divino, e isto porque há certas causas que provêm de [uma] existência prévia [da alma], em conseqüência das quais as almas, antes de nascerem nos corpos, contraem uma certa quantidade de culpa em sua natureza sensitiva, ou em seus movimentos, em razão das quais são julgadas merecedoras, pela Divina Providência, de serem colocadas em tais condições.

4. Convém notar que Orígenes não defende a “reencarnação”, e sim a pré-existência da alma (que são duas coisas distintas – ambas erradas, mas distintas). Sobre isto vale a pena ler este texto ou este outro (que traz inclusive algumas interessantes citações patrísticas contra a falsa doutrina da reencarnação).

5. Orígenes, ao contrário, negou peremptoriamente a espúria doutrina reencarnacionista. Isto está fora de qualquer discussão, uma vez que há um capítulo do seu “Comentários sobre Mateus” [Livro XIII, cap. 1] no qual ele analisa a doutrina da “transmigração” [a reencarnação espírita] aplicada ao caso de São João Batista e Elias [clássico “exemplo” de reencarnação que os espíritas gostam de inventar nos Evangelhos] e a rechaça absolutamente. Traduzo um trecho do comecinho:

Mas agora, de acordo com as nossas habilidades, vamos investigar também as coisas que estão contidas aqui [na passagem onde Nosso Senhor fala que São João Batista é o Elias que há de vir – Mt 17,10]. Aqui não me parece que, por “Elias”, se esteja falando da alma dele, uma vez que isto seria cair no dogma da transmigração, que é estranho à Igreja de Deus, jamais ensinado pelos Apóstolos e nunca encontrado em lugar nenhum das Escrituras.

6. De toda a patrística, a passagem do De Principiis de Orígenes é a única que se pode dizer possuir remotamente algum resquício de similaridade com a falsa teoria espírita da reencarnação. Isto, ao contrário do que pretendem os espíritas modernos, significa exatamente que tal doutrina era completamente estranha aos primeiros cristãos – tanto que eles nunca falam dela.

7. Ainda que Orígenes tivesse defendido a falsa doutrina da reencarnação, isto não significaria nada: seria apenas uma voz isolada defendendo uma doutrina espúria que, posteriormente, seria condenada pela Igreja (como já aconteceu incontáveis vezes). No entanto, nem isso os espíritas têm, uma vez que o próprio Orígenes rejeita taxativamente, em outro de seus escritos, a doutrina da transmigração das almas.

8. Desmascarada esta falsificação histórica, resplandece com clareza – uma vez mais – o fato de que as teses reencarnacionistas do espiritismo são estranhas à Doutrina Católica ensinada por Nosso Senhor – e que, portanto, há total incompatibilidade entre a Fé Cristã e as fábulas espíritas, como aliás a Igreja sempre afirmou.

Hereges, Cismáticos e Concílios Ecumênicos

Motivado por alguns comentários surgidos em outro post no qual eu falava sobre um convite feito a uma cantora protestante, por um grupo carismático [que, repito, não tenho certeza se se trata de um grupo da Renovação Carismática Católica],  para que participasse de um “culto de louvor e adoração” , trago aqui algumas considerações sobre a presença de não-católicos nos Concílios Ecumênicos ao longo da história da Igreja. Vou fazer algumas citações do livro do pe. Ralph Wiltgen, “O Reno se lança no Tibre”, disponível em língua portuguesa pela Permanência.

Os Concílios Ecumênicos sempre foram vistos como oportunidades de fazer com que os cristãos que se houvessem desviado da Fé retornassem ao seio da Igreja. Por isso, a presença de não-católicos às sessões conciliares sempre foi (ao menos) desejada por todos os Papas e Padres Conciliares, inclusive com o envio de convites expressos às igrejas separadas para que mandassem delegações aos Concílios. No Concílio de Trento, por exemplo, a Enciclopédia Católica nos diz que foram emitidos até mesmo salvo-condutos para garantir a segurança dos protestantes que desejassem participar do Concílio. Uma tradução de um decreto neste sentido está disponível no Veritatis (não vou citar na íntegra, mas recomendo vivamente a leitura):

O Sacrossanto, Ecumênico e Geral Concílio de Trento, reunido legitimamente no Espírito Santo, e presidido pelos mesmos Legados e Núncios da Santa Sé Apostólica, insistindo no salvo-conduto concedido na penúltima Sessão, amplia suas prerrogativas nos termos que se seguem:

A todos em geral faz fé que pelo teor das presentes cláusulas, dá e concede plenamente a todos e a cada um dos Sacerdotes, Eleitores, Príncipes, Duques, Marqueses, Condes, Barões, Nobres, Militares, Cidadãos e a quaisquer outras pessoas de qualquer estado, condição ou qualidade, que sejam da Nação e Província da Alemanha e das cidades e outros lugares da mesma, assim como a todas as demais pessoas eclesiásticas e seculares em especial da revelação de augusta, os que, ou as que viriam com eles a este Concílio Geral de Trento, ou serão enviados ou se colocarão a caminho, ou que até o presente tenham vindo sob qualquer nome que lhes sejam dados, ou lhes sejam especificados, fé pública e plena e verdadeira segurança que chamam salvo-conduto, para vir livremente a esta cidade de Trento e permanecer nela, ficar, habitar, propor e falar de comum acordo com o mesmo Concílio, tratar de quaisquer negócios, examinar, discutir e representar sem nenhuma punição tudo o que quiserem e quaisquer dos artigos, tanto por escrito como por palavra, divulgá-los, e em caso necessário, declará-los, confirmá-los e compará-los com a Sagrada Escritura, com as palavras dos santos Padres e com sentenças e razões, e de responder também, se for necessário, as objeções do Concílio Geral e disputar cristãmente com as pessoas que o concílio indique ou conferenciar caritativamente sem nenhum obstáculo (…).

[…]

E este mesmo salvo-conduto e seguros devem durar e subsistir desde o início e por todo o tempo que o Concílio e seus componentes os recebam sob seu amparo e defesa, e até que sejam conduzidos a Trento e por todo o tempo que se mantenham nesta cidade, e também, depois de ter passado vinte dias desde que tenham suficiente audiência, quando eles pretendam retirar-se, ou o Concílio, depois de os ter escutado, os intime para que se retirem, os fará conduzir com o favor de Deus, longe de toda a fraude e dolo, até que o lugar que cada um escolha e tenha por seguro.

Aliás, é bom frisar que a publicação de alguns decretos que estava marcada para esta sessão foi adiada em atenção ao pedido dos protestantes que ainda não haviam chegado:

[T]endo além disso acreditado que viriam a este Sacrossanto Concílio os que se chamam Protestantes, (…) e como no entanto, não chegaram até o presente momento, e como tenham suplicado em seu nome, a este Santo Concílio que se espere até a próxima Sessão a publicação que deveria ser feita hoje, confirmando que certamente viriam sem falta, (…) transferiu à Sessão seguinte, para trazer à luz e publicar os pontos acima mencionados, no dia da festa de São José, que será em 19 de março, com aqueles que não somente tenham tempo e lugar bastante para vir, mas também para trazer propostas antes do dia marcado.

Pois bem. O pe. Ralph, no livro citado acima, diz o seguinte no capítulo sobre os observadores-delegados e convidados ao Concílio Vaticano II:

Em 8 de setembro de 1868, quinze meses antes da abertura do primeiro Concílio do Vaticano, Pio IX dirigiu a todos os patriarcas e bispos da Igreja Ortodoxa uma Carta Apostólica convidando-os a pôr fim ao estado de separação. Se o aceitassem, teriam no Concílio os mesmos direitos de todos os outros bispos, uma vez que a Igreja Católica considera válida sua sagração. Se não, eles teriam, como no Concílio de Florença em 1439, a possibilidade de tomar parte nas Comissões conciliares compostas de bispos e teólogos católicos, para discutir os assuntos do Concílio. Mas o texto da carta foi considerado ofensivo pelos patriarcas e bispos.

[Wiltgen, Ralph M., “O Reno se lança no Tibre: o Concílio Desconhecido”, p. 124. Ed. Permanência, Niterói, RJ, 2007]

Recapitulando: o Concílio de Trento convidou protestantes, e ainda lhes concedeu um salvo-conduto para que transitassem com segurança por terras católicas. O Papa Pio IX convidou ortodoxos para o Concílio Vaticano I, garantindo-lhes a possibilidade de tomar parte nas Comissões conciliares e discutir os assuntos do Concílio. O mesmo aconteceu no Concílio de Florença. Portanto, a presença de hereges e cismáticos nos Concílios Ecumênicos – ou, ao menos, o convite feito por Roma, dado que eles nem sempre aceitaram – sempre existiu na história da Igreja.

Com qual objetivo? O de convertê-los a Fé Verdadeira, é óbvio. O de discutir francamente com eles, mostrando-lhes a Verdade Católica e o erro no qual eles incorrem ao se separarem da Igreja de Jesus Cristo. O de permiti-los acompanhar de perto os trabalhos conciliares, a fim de que se impregnem da Doutrina Católica e possam, quiçá, ser tocados pela graça de Deus e abjurarem os seus erros. A presença de hereges e cismáticos, portanto, em Concílios Ecumênicos, não deveria escandalizar ninguém.

No Concílio Vaticano II foi feito o mesmo convite. Hereges e cismáticos participaram das sessões conciliares. Participaram, no entanto, como hereges e cismáticos – ou como “irmãos separados”, na linguagem conciliar -, podendo assistir às sessões, podendo (talvez) discutir nas comissões (como no Vaticano I e no Concílio de Florença), mas sem direito a voto, óbvio, porque não fazem parte da Igreja. Aliás, não sei nem mesmo se eles tinham direito a fazer intervenções nas Aulas Conciliares.

Ao Vaticano II fizeram-se presente diversas delegações de não-católicos. Para que isso fosse possível, ajudou o clima mundial à época da convocação do Concílio Ecumênico; permito-me citar de novo o pe. Ralph, porque ele traz uma informação muito interessante sobre este assunto (grifos meus):

O clima religioso do mundo na época de João XXIII era bem diferente do clima dos tempos de Pio IX. Desde então, o movimento ecumênico em favor da unidade dos cristãos tinha se implantado solidamente em todas as comunidades cristãs.

Numerosos fatores haviam contribuído para a expansão deste movimento verdadeiramente providencial. O primeiro era a investigação bíblica que tinha aproximado eruditos católicos, protestantes, anglicanos e ortodoxos. O segundo era a existência do Conselho Ecumênico das Igrejas, fundado precisamente para promover a união dos cristãos em todos os domínios possíveis, e que em menos de trinta anos tinha visto sua composição ultrapassar 214 igrejas-membros de pleno direito e 8 membros associados – igrejas protestantes, anglicanas, ortodoxas e velho-católicas. Enfim, a ameaça neo-pagã do nazismo na Europa durante a II Guerra Mundial tinha unido, na defesa da religião, católicos e cristãos de todas as denominações, o que explica que o movimento ecumênico tenha primeiro se manifestado na Alemanha, na França e nos Países Baixos. Entre os chefes mais ativos do ecumenismo católico figuravam jesuítas e dominicanos.

Os primeiros sucessos alcançados nesses três países receberam novo alento quando o Santo Ofício publicou, em 20 de dezembro de 1949, sua longa “Instrução sobre o movimento ecumênico”. Esta “instrução” convidava insistentemente os bispos do mundo inteiro “não somente a vigiar com cuidado e diligência todas as atividades deste movimento, mas também promovê-las e dirigi-las prudentemente, para que aqueles que estão em busca da verdade e da verdadeira Igreja possam ser ajudados, e para que os fiéis fossem prevenidos contra os perigos que corriam tão facilmente ao promoverem tais atividades”.

[op. cit., pp 124-125]

Havia, portanto, uma instrução do Santo Ofício, pré-conciliar (de 1949, 13 anos antes de se iniciar o Vaticano II), convidando os bispos a promover e dirigir as atividades ecumênicas. Com qual objetivo? Obviamente, com o objetivo de fazer com que o movimento desse frutos verdadeiros e, ao invés de proporcionar um falso irenismo, fosse um instrumento eficaz para ajudar os hereges e cismáticos a encontrarem na única Igreja de Nosso Senhor a unidade que eles estavam buscando. Não vejo, portanto, justificativas para que o Vaticano II seja condenado por coisas que, antes dele, já faziam parte da Igreja, como o convite a hereges e cismáticos para que aprendam a Doutrina Católica nos Concílios Ecumênicos ou a promoção do ecumenismo para que ele sirva como meio de regresso dos sarmentos secos à Igreja de Nosso Senhor. Aos que diferenciam o “ecumenismo conciliar” do ecumenismo do Santo Ofício em 1949, precisariam provar as suas acusações de modo inequívoco. O mesmo vale aos que diferenciam a participação de protestantes e ortodoxos no Vaticano II daquela à qual hereges e cismáticos sempre foram convidados ao longo da história da Igreja.

Concluamos: os membros de outras religiões não estiveram no Concílio Vaticano II como “palpiteiros” para dizer como “deveria” ser a Doutrina Católica, pois esta é imutável e a Igreja o sabe muito bem. Foram, repito, os prelados católicos que votaram os documentos, não os observadores ortodoxos e protestantes. Estes, aliás, se é que chegaram a discutir nas comissões os assuntos do Concílio – coisa que eu não sei se aconteceu -, não fizeram nada diferente daquilo que Pio IX já havia proposto e, antes dele, o Concílio de Florença. Não existe nenhum motivo para se rasgar as vestes quanto a isso.

Não estou dizendo com isso que tudo está muito lindo e perfeito, e que os católicos hoje em dia vivem, via de regra, a mais pura expressão da Doutrina Católica, porque é claro que não vivem. É preciso fazer muita coisa, tanto para tentar descobrir o porquê do Concílio ter sido tão tremendamente distorcido, quanto para tentar propôr caminhos a serem seguidos pelos católicos; mas esse artigo já vai muito longo e eu vou deixar isso para uma outra oportunidade. Acredito que valha a pena, para finalizar, citar a intervenção feita às vésperas do fechamento do Concílio pelo chefe da delegação anglicana numa cerimônia realizada na Basílica de São Paulo Fora dos Muros para promover a unidade dos cristãos:

O Rev. Moorman, chefe da delegação anglicana, dirigiu-se ao Papa em nome dos observadores-delegados e dos convidados, cujo número atingira 103 componentes durante a quarta sessão. “Nenhuma vez sequer durante estes quatro anos”, disse, “sentimos que nossa presença incomodasse fosse a quem fosse. Ao contrário, sempre nos pareceu que ela havia contribuído, em vários aspectos, para o êxito do Concílio e da grande tarefa de reforma que ele empreendeu”. E acrescentou: “Nós acreditamos que passou o tempo do medo recíproco, do exclusivismo rígido, da suficiência arrogante. A estrada da unidade por certo será longa e difícil, mas Vossa Santidade sentirá talvez o conforto de saber que, pelo fato de nossa presença aqui na qualidade de observadores, terá a companhia de uma centena de homens (…) [reticências no original], que pelo mundo afora se esforçarão por levar às Igrejas alguma coisa do espírito de amizade e tolerância de que foram testemunhas em São Pedro. Nossa missão de observadores não terminou. Eu me refiro, caríssimo e santíssimo Padre, ao que vós pensais de nós, como amigos – como mensageiros – agora que cada um de nós retoma a própria estrada.

[op. cit., p. 285]

As besteiras teológicas proferidas pelo reverendo Moorman diante do Papa são da lavra dele, e não do Concílio. As mesmíssimas bobagens irenistas, aliás, multiplicam-se amiúde nos nossos dias, e é importante que elas sejam corrigidas. Seria ingenuidade – o próprio anglicano reconhece – achar que a unidade dos cristãos seria alcançada de outra maneira que não por uma estrada “longa e difícil”. O Vaticano II não se propôs a isso, e é aquele que falou ao Papa em nome dos observadores-delegados ao fim do Concílio que o atesta. Vale ainda destacar que o herege tem consciência de que o seu papel no Concílio é o de observador. E eu, particularmente, fico feliz em ver um herege anglicano chamando o Papa de “Vossa Santidade” e de “Santíssimo Padre”…