Os Poderes Públicos diante dos maus hábitos e das virtudes

Descobri na leitura desta notícia três coisas que me deixaram estarrecido. A primeira: a zoofilia é legalizada na Alemanha desde 1969 (!), seja lá o que isto signifique. A segunda: há mais zoófilos na Alemanha (a «comunidade zoófila da Alemanha [é] estimada em mais de 100 mil pessoas», segundo a notícia) do que gays em San Francisco. E a terceira é que esta depravação só está sendo combatida «como parte de uma emenda à lei de proteção aos animais do país» – como se o horror do bestialismo estivesse não no homem que avilta sua própria dignidade ao cometê-lo, mas no animal que pode estar sofrendo maus tratos!

A faculdade sexual do ser humano (como a de todos os animais) está obviamente ordenada à perpetuação da espécie humana, assim como a faculdade alimentar está evidentemente ordenada à preservação do indivíduo. A negação desta verdade cristalina só se tornou possível depois da cortina de fumaça moderna, que passou a confundir deliberadamente os fins objetivos do aparelho reprodutor com os gostos e desgostos subjetivos dos que o empregam para outras finalidades menos nobres. Assim, a contracepção, o sexo livre, o homossexualismo, a zoofilia, a necrofilia e todas as outras taras sexuais humanas imagináveis têm, todas, um só e o mesmo vício de fundo, que é uma radical negação da sexualidade humana.

Entenda-se: o que é apanágio dos nossos tempos não são estas depravações em si, mas a recusa mesma de considerá-las depravadas. Naturalmente, estes maus hábitos sempre existiram, porque desde que o mundo é mundo o Pecado Original encontra terra fértil na natureza humana decaída para degenerar em toda sorte de flores fétidas e frutos pútridos. Acontece que a valoração moral de um ato humano deve ser feita a partir da sua adequação maior ou menor à ratio divina (ou à Lei Natural, como prefiram os mais preconceituosos), e não tomando por base meramente a sua ocorrência ao longo da história humana. O fratricídio é tão antigo quanto Caim e Abel, e nem por isso se vêem (ao menos não ainda) os “doutos” dos nossos tempos pleiteando a sua legalização por se tratar de prática onipresente na humanidade.

Certos hábitos, conquanto sejam maus, devem ser tolerados pelos poderes públicos: assim, p.ex., o onanismo, mesmo sendo uma flagrante deturpação do ato conjugal, não precisa ser tipificado em nenhum Código Penal positivo. A maus hábitos alimentares, p.ex., de ordem privada, a legislação positiva pode e até deve fazer vista grossa. O problema ocorre quando um grupo confunde os seus vícios com direitos legítimos e passa a exigir à sociedade que lhes conceda absoluto amparo legal. Maus hábitos sempre existiram; mas a insistência doentia em tratá-los (e à força) como virtudes é degradantemente moderna.

Não existe nenhuma obrigação imposta aos homens de serem virtuosos, afora aquela de ordem moral sentenciada pessoalmente por Deus e da qual ninguém pode jamais se furtar. O Estado não está aí para forçar os homens à prática das virtudes e, portanto, é razoável e legítimo que certos vícios “possam” (no sentido de não serem puníveis legalmente) ser praticados pelos cidadãos; não obstante, o mesmo Estado tem o dever de facilitar aos seus súditos o exercício das virtudes e, portanto, é legítimo e razoável que reprima os vícios. É esta a razão pela qual uma coisa pode [e muitas vezes deve] simultaneamente ser tolerada enquanto prática individual e condenada enquanto ideologia pública. Do fato de não ser Deus o Estado, segue-se que um homem tem um certo “direito” de se degradar; do fato do Estado existir em vistas ao bem comum, segue que tem um certo dever de proteger os seus cidadãos daquilo que é degradante. Agir de outra maneira é trair o seu papel de Estado e converter-se em uma estrutura voltada não para o bem, mas para o prejuízo dos que vivem sob ela.

E, aqui, deve-se opôr à tagarelice moderna a autoridade dos fatos e do bom senso. Não se pode admitir, sob o pretexto de respeito às liberdades individuais, que as coisas evidentes sejam postas em discussão e – pior ainda! – que o nonsense chegue ao cúmulo de orientar a vida política de um país. Se uma pessoa não consegue entender que (p.ex.) a coprofagia ou o bestialismo são degradantes, isto é problema dela; mas se esta mesma pessoa quer ditar a organização da vida em sociedade conforme a sua (peculiaríssima) visão de mundo, isto é problema de todos. Há uma oposição radical e irreconciliável entre vícios e virtudes, que não desaparece se gente fingir que ela não existe ou passar a chamar de virtudes o que vícios são. Sem este entendimento claro ninguém pode governar legitimamente, por mais que digam o contrário os “intelectuais” modernos – que, na verdade, não são mais do que bárbaros em franco e aberto ataque à civilização; e que, como tais, devem ser combatidos.

O reino dos papa-bostas

Durante muito tempo as pessoas souberam a diferença entre o início e o fim do sistema digestório humano. Desde tempos imemoriais as crianças aprendiam – na escola e no dia-a-dia – que uma coisa era a comida que elas botavam para dentro e, outra coisa, os dejetos que elas botavam para fora. Em hipótese alguma era permitido confundir essas duas coisas.

Também desdes tempos imemoriais, contudo, alguns indivíduos pareciam não se adaptar àquele exigente estilo de vida. Sempre houve aquelas pessoas que, por razões quaisquer, desenvolviam uma compulsão por ingerir os próprios dejetos ou os de outras pessoas. O hábito, nojento e repugnante, sempre foi repudiado com veemência pela sociedade. Ser papa-bosta era um sinal de infâmia e de vergonha, e os que padeciam de tão estranho prazer queriam se libertar dele mais do que qualquer outra coisa no mundo. Havia também, contudo, aqueles que não conseguiam se libertar de seus hábitos alimentares; estes, comiam fezes somente às escondidas, às escuras, sozinhos, como quem comete uma espécie de crime do qual as demais pessoas não podem tomar ciência.

Um dia isso mudou. Não se sabe bem por qual motivo, um dia os papa-bostas cismaram que tinham o direito de comer bosta mesmo e ai de quem não gostasse. Pior: todos tinham que gostar. Disseram que tinham direito de escolher o que comiam, que a boca era deles mesmo e, nela, eles colocavam o que melhor entendessem. Disseram que com isso não estavam fazendo mal a ninguém, e era um absurdo injustificável que, em pleno século XXI, os degustadores de detritos (o primeiro dos nomes pomposos que se auto-atribuíram) fossem discriminados.

As pessoas normais reagiram com estranheza. Como alguém poderia se orgulhar de ser um papa-bosta?! No entanto, toleraram. Pensavam: “eles que comam a bosta deles para lá!”. Não sabiam, no entanto, que eles queriam muito mais do que isso.

Por serem olhados com estranheza, passaram a dizer que eram vítimas de preconceito e de tratamento desumano pelo simples fato de terem gostos alimentícios diferenciados. Passaram a combater com virulência a comidanormatividade alimentícia! E mais: a injustiça era ainda mais gritante porque o gosto por fezes, como é óbvio, não era uma escolha e sim uma condição. A pessoa nascia gostando (ou não) de comer detritos! Não era justo discriminar uma pessoa por aquilo que ela é: mulher, negro ou papa-bosta… Aliás, este termo passou a ser rapidamente considerado ofensivo e indigno de uma sociedade civilizada. Os degustadores de detritos, agora, queriam ser chamados escatófagos.

Muitos reagiram: “Sim, é verdade que cada um come o que quiser, mas eu não quero passar pela experiência desagradável de estar num restaurante e ver alguém comendo bosta na mesa ao lado, nem quero que meu filho adquira estes hábitos por conviver com gente assim”. Os papa-bostas urraram: escatofagofobia! Escatofagofobia! O termo (recém-cunhado) designava, segundo os seus inventores, o ódio irracional pelas pessoas que, ao fim e a cabo, gostavam de comer bosta. Era inadmissível que os seus gostos alimentares fossem considerados inferiores aos dos demais. Era intolerável existir alguém que não tolerasse um escatófago.

Rapidamente, jurisprudências em favor dos papa-bostas foram estabelecidas. Se alguém entrasse em um estabelecimento qualquer comendo bosta e fosse maltratado, o dono do estabelecimento era punido. A escatofagofobia, argumentavam os papa-bostas, matava centenas de milhares de escatófagos por ano. Se um pai descobria que a babá contratada por ele para tomar conta do seu filho era papa-bosta, e a demitia, os tribunais o condenavam a pagar pesadas indenizações. Ninguém podia nem mesmo recusar-se a contratar um candidato para um emprego pelo fato dele ser um papa-bosta. Os hábitos alimentares, diziam, não influenciavam nada na capacidade de exercer a sua função. O resto era puro preconceito.

As pessoas ficaram perplexas, mas pouco fizeram. Os papa-bostas passaram a se organizar em grandes manifestações de ruas, chamadas paradas, onde as pessoas lambuzavam-se publicamente com as fezes umas das outras. Faziam uma grande festa, atraíam muitas pessoas, dançavam e bebiam e papavam bosta e diziam que isso era tudo muito natural. Reivindicavam a criminalização da escatofagofobia, i.e., que nenhum papa-bosta fosse tratado como um ser humano inferior. Que fossem presos os que pensassem diferente.

Grupos mais conservadores rapidamente começaram a dizer que isto era errado. Os papa-bostas reagiram chamando-os de escroques fundamentalistas e retrógrados, escatofagofóbicos calhordas, dizendo que a única base que eles possuíam para dizer que era errado degustar detritos era um livro velho escrito há milhares de anos que continha um monte de proibições absurdas que, hoje, não eram levadas a sério por ninguém. A violência da reação foi tão grande que os conservadores, no primeiro momento, se retraíram. Os papa-bostas comemoram publicamente.

Foi iniciada uma campanha de inclusão cidadã da escatofagia. Nas escolas, as crianças eram apresentadas a materiais educativos que diziam ser normal comer fezes. A experiência escatofágica era estimulada. Os papa-bostas eram apresentados como pessoas de bem, modelos famosas, executivos de sucesso, bons pais de família, excelentes cidadãos. A figura da mãe obrigando o filho a comer verduras era pintada como se fosse o supra-sumo da opressão alimentar, uma violência sem precedentes e que não podia ser tolerada. Psicólogos renomados subscreviam esta tese. Um escatófago – diziam – não ia deixar de sentir vontade de comer fezes porque sua mãe lhe forçara a comer verduras. Ao contrário, o que ele devia fazer era se assumir, sair do banheiro e ser feliz.

Os conservadores, percebendo as dimensões que a loucura estava tomando, resolveram se manifestar. Mas a tropa dos papa-bostas já tinha tomado grande parte das estruturas de poder social, da imprensa aos órgãos de governo. Quando um conservador dizia que comer bosta fazia mal, rapidamente diziam que isto era puro preconceito dele. Quando ele mostrava a maior incidência de infecções intestinais em pessoas que tinham o hábito de comer bosta, os escatófagos rapidamente diziam que isto era justamente devido ao preconceito social que os papa-bostas sofriam – que os forçava a praticarem a escatofagia em ambientes e condições pouco adequados. Quando um conservador dizia que a boca foi feita para alimentar o corpo, os papa-bostas o ridicularizavam dizendo que as pessoas já há muito comiam para ter prazer, e não somente para se nutrir. Ousaram dizer que era anti-natural comer bosta, só para ouvirem os escatófagos listarem as inúmeras ocorrências de animais que comiam as próprias fezes, provando assim que a escatofagia era, na verdade, uma exigência da natureza.

No fim, foram vencidos. Humilhados impiedosamente, foram se tornando cada vez mais odiados pelas novas gerações. Muitos se renderam aos “novos tempos” e passaram até mesmo a gostar dos papa-bostas. De vez em quando, para não serem olhados com muita estranheza, aceitavam participar de uma degustação fecal. Outros tantos foram presos por escatofagofobia, e não se sabe ao certo o que aconteceu com eles. Alguns outros simplesmente foram embora, buscando algum rincão do mundo onde pudessem simplesmente se estabelecer e viver em paz; onde pudessem educar os seus filhos ensinando-lhes que é errado comer bosta, da forma como eles próprios foram ensinados. A verdade é que, no fim, quase nenhuma voz dissidente restou. E eles deixaram para trás um mundo sem preconceitos: onde ninguém era tratado como um inferior por gostar de comer detritos. Deixaram para trás um mundo moderno e civilizado, de ruas fétidas, pessoas de mau hálito e doentes. E todos se julgavam felizes por terem conseguido dar mais este importante passo na erradicação do preconceito da humanidade.

Este texto é de ficção.
Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.