O Magistério não favorece heresias

Foi tornada pública no último sábado uma Correctio Filialis De Haeresibus Propagatis «assinada por 40 clérigos católicos e acadêmicos leigos» e endereçada ao Santo Padre. Os signatários da carta pretendem encontrar um “favorecimento” a sete heresias — no documento discriminadas — tanto na Amoris Laetitia quanto nas subsequentes palavras, atos e omissões do Papa Francisco.

A estrutura do documento, basicamente, é a seguinte: primeiro são listadas as passagens problemáticas da Exortação Apostólica (pp. 3-5); depois são elencadas as palavras, atos e omissões do Papa que «estão servindo para propagar heresias dentro da Igreja» (pp. 5-8). Em seguida as sete proposições errôneas são apresentadas (pp. 8-9). Finalmente, tenta-se explicar essas heresias como possuindo duas fontes: o Modernismo (pp. 10-13) e a teologia de Lutero (pp. 13-18). Este o documento. O que dizer dele?

Antes de qualquer outra coisa, o que causa mais estranheza é a ausência dos nomes dos cardeais das dubia entre os signatários da tal Correctio. O Cardeal Burke já há meses vinha dizendo que seria necessário fazer uma correção formal ao Papa Francisco; vindo a lume agora esta carta, e nela não constando o nome do Card. Burke, nem aliás de nenhum outro cardeal, nós ficamos sem saber ao certo se este documento é ou não é a correção formal anteriormente anunciada. Parece que não.

E ainda, a carta parece que não tem o peso que deveria ter. O próprio Rorate Caeli afirmou que muitos estão diminuindo o alcance da iniciativa, embora insista em afirmar que ela é apenas a primeira peça do quebra-cabeças e que muito ainda esteja por vir. O Papa Francisco, ao que parece, simplesmente bloqueou o acesso ao site a partir dos computadores do Vaticano. As primeiras reações ao documento não tiveram o alcance desejado — o que é muito de se lamentar. Porque, embora a carta meta os pés pelas mãos ao acusar publicamente o Magistério da Igreja de favorecer heresias (!), tem pontos positivos que merecem atenção e cuidado.

As sete proposições listadas na Correctio são, de fato, proposições errôneas (com talvez a exceção da quarta cujo sentido eu não consegui captar muito bem — mas se deixe isso de lado por ora), e elas estão de fato sendo propagadas no interior da Igreja, e é urgente que isso cesse. A salvação das almas assim o exige. Diante disso, muito mais correto do que apontar o dedo para o Vigário de Cristo, assim — muito mais importante do que sair à busca de culpados –, é reconhecer a existência do problema e lutar para que ele seja corrigido. Isso é o que é fundamental.

Sim, a carta acerta ao dizer que os inimigos de Cristo estão propagando heresias dentro da Igreja (e, verdade se diga, com um descaramento talvez inaudito), e, sim, é notório que eles o fazem pinçando trechos dos documentos do Magistério e se valendo das alegadas intenções progressistas do Papa Francisco. Só isso já é motivo mais do que suficiente para pôr os católicos em guarda, sem que seja necessário enveredar pelo tortuoso caminho de perscrutar as intenções do Soberano Pontífice ou acusar o Cristo-na-Terra de beneficiar heresias.

Porque a estratégia adotada pela Correctio pode muito bem ter o efeito contrário ao esperado. Note-se: se um grupo de pessoas está dizendo que o Magistério da Igreja defende as heresias ‘a’, ‘b’ e ‘c’, alguém pode perfeitamente concluir que, dado que o Magistério não ensina heresias, então as proposições ‘a’, ‘b’ e ‘c’ não são heréticas. E, de repente, aqueles que tentavam combater doutrinas errôneas terminam por chancelá-las com o mais alto grau de confiabilidade ao dizerem que elas são ensinadas pelo Magistério Católico. Um verdadeiro tiro pela culatra de consequências trágicas: pessoas normais, que não acreditariam jamais nestas heresias, podem cogitar levá-las a sério se se convencerem de que elas constam dos documentos da Santa Igreja.

Não nos enganemos: a forma mais eficaz de conferir respeitabilidade, por exemplo, a idéia de que «[u]m fiel católico pode ter pleno conhecimento de uma lei divina e voluntariamente escolher violá-la, mas não estar em estado de pecado mortal como resultado desse ato» (proposição 3 da Correctio) é dizer que tal idéia encontra amparo no Magistério da Igreja Católica e nos ensinamentos do Soberano Pontífice. A maneira mais fácil de fazer as pessoas acreditarem nisso é dizendo ser este o ensinamento do Papa e da Igreja! Mas, ora, o Magistério não favorece heresias: estas proposições, portanto, se verdadeiramente heréticas, não se fundamentam realmente nos documentos eclesiásticos: fazem-no apenas falsamente.

Acerta, portanto, a Correctio em apontar proposições heréticas disseminadas na Igreja. Erra em fazê-las derivar do Magistério Católico. É justamente porque as proposições apontadas são errôneas que elas não decorrem do Magistério eclesiástico, que não pode disseminar o erro; e isso é tão forte que, se tais proposições estivessem realmente fundamentadas em documentos magisteriais, seria legítimo antes questionar a própria heterodoxia delas que a ortodoxia do Papa — aliás, mais que legítimo!, seria a coisa mais óbvia a ser feita.

Mas as proposições apontadas na carta são realmente errôneas. Por serem errôneas, não estão presentes no Magistério da Igreja, antes o contrariam. E, por serem errôneas e contrariarem o Magistério, devem ser combatidas com tanto mais veemência quanto mais aleivosamente se afirmarem baseadas em documentos pontifícios. Esta é a apologia de que a Igreja precisa.